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A (im)possibilidade de análise do artigo 52, X, da Constituição Federal à luz do fenômeno da mutação constitucional

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12/02/2010 às 00:00
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5 Conclusão

À luz de toda a modificação sofrida pelo sistema de controle de constitucionalidade brasileiro principalmente nos últimos anos, parece inegável que aquele sistema difuso, inaugurado em 1891, vem perdendo terreno para o sistema concentrado, inaugurado na vigência da Constituição de 1946. A tradição constitucional nos mostra que o sistema é híbrido, apesar do movimento pendular que ora põe um ou outro modelo em evidência.

Os argumentos sustentados por aqueles que defendem a mudança de sentido do art. 52, X são, até certo momento do raciocínio, válidos. Institutos como a possibilidade de suspensão, em sede de liminar em ADI, de um ato normativo, a ampliação dos legitimados para propositura de ação direta de inconstitucionalidade, a possibilidade de modulação de efeitos em controle difuso e o afastamento da cláusula da reserva de plenário quando a matéria já houver sido apreciada pelo STF, todos eles conduzem a uma inegável abstrativização do controle de constitucionalidade.

O que não nos parece correto, todavia, e aqui reside a proposta de contribuição do presente artigo, é que se tente, de uma vez por todas, igualar os efeitos oriundos das decisões em sede de controle concentrado e difuso através do fenômeno da mutação constitucional.

Voltando ao conceito de mutação constitucional, tem-se que tal fenômeno reflete uma forma difusa de "reforma" da Constituição, através da qual a realidade social, dinâmica, impõe a releitura de determinado dispositivo constitucional com o fim de lhe atribuir novo sentido, sem contudo modificar-lhe o texto. Os limites a esta reforma se resumem a dois: não se pode transbordar a essência do próprio texto e há que se observar os princípios estruturantes do sistema constitucional.

O que se observa, no presente caso, é que a tentativa de se atribuir à resolução do Senado Federal uma (nova) função de mera publicação da decisão do STF fere ambos os limites.

De um lado, a tentativa de tornar superada a função de conferir efeitos gerais a uma decisão que só é dotada de efeitos "inter partes", através da mutação do art. 52, X, esbarra nos limites traçados pelo próprio dispositivo. Em outros termos, não há, dentre todos os sentidos possíveis retiráveis do texto, nenhum que permita a conclusão pretendida.

Além disso, a aplicação da mutação, neste caso, acaba por violar os princípios constitucionais da separação de poderes e do devido processo legal (e legislativo, uma vez que a função de reformar a Constituição é atribuída ao poder constituinte derivado, não a um órgão jurisdicional). Sobre este ponto, Streck posiciona-se: "Cabe ao Supremo Tribunal Federal ‘corrigir’ a Constituição? A resposta é não. Isso faria dele um poder constituinte permanente e ilegítimo" (2007, p. 27). Endossa o posicionamento aqui esposado o magistério de Canotilho:

Uma coisa é admitirem-se alterações do âmbito ou esfera da norma que ainda se podem considerar suscetíveis de serem abrangidas pelo programa normativo (Normprogramm) e, outra coisa, é legitimarem-se alterações constitucionais que se traduzam na existência de uma "realidade constitucional inconstitucional", ou seja, alterações manifestamente incomportáveis pelo programa da norma constitucional (CANOTILHO, 2002, p. 1242).

Desse modo, entende-se que, em respeito ao atual sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, os únicos meios legítimos de se conferir eficácia "erga omnes" e efeito vinculante a uma decisão proferida pelo STF em controle difuso são a utilização do art. 52, X tal como previsto na Constituição ou a edição de súmula vinculante sobre a matéria, respeitados os pressupostos e requisitos previstos no art. 103-A da CR/88 e na Lei 11417/06. Privilegia-se, assim, tanto a tradição de um sistema híbrido quanto os princípios constitucionais da segurança jurídica e da separação de poderes.

Outra alternativa para uma maior similitude entre os controles concentrado e difuso, como parecem desejar os defensores da mutação do art. 52, X, seria a revisão constitucional, alterando ou suprimindo o texto em questão. Sob tal reforma, exercida pelos reais detentores do poder constituinte derivado, jamais recairia a pecha da ilegitimidade. Por meio dela, sim, seria possível a modificação não só do sentido do dispositivo em comento, mas do seu próprio texto. Sobre a questão, bem observou Konrad Hesse que "a problemática da revisão constitucional começa ali onde terminam as possibilidades da mutação constitucional" (1983, p. 25).

Conclui-se, assim, que, ainda que inegável uma crescente abstrativização do controle de constitucionalidade pátrio, o mesmo continua sendo híbrido, devendo, para tanto, continuarem a existir diferenças relacionadas aos efeitos decorrentes das decisões proferidas em controle concentrado ou incidental. Dessa forma, a técnica da mutação constitucional não se presta a modificar o sentido do art. 52, X de modo a conferir à resolução do Senado Federal uma função meramente publicitária. A mutação constitucional serve para que os textos constitucionais evoluam de acordo com a tradição da sociedade, e não para que essa mesma tradição seja bruscamente rompida. A esse fim se prestam outros mecanismos, dentre os quais talvez o mais apropriado para a problemática em comento seja o da revisão constitucional enquanto método formal de reforma do texto constitucional.

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5 Referências

BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 1990.

BULOS, Uadi Lammêgo. Manual de interpretação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.

BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra (Portugal): Livraria Almedina, 2000.

FILHO, Accioly. Parecer 154, de 1971, da Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Revista de informação legislativa. 48:268.

HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 25.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.

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MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008.

PELAYO, Manuel García. Derecho constitucional comparado. 2.ed., Madrid, Revista de Occidente, 1951.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18. Ed., ver. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001.

STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

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ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.


Notas

  1. Segundo anota Bulos, lembrando Georges Burdeau (Traité de science politique, v. 4, p.247, 290 e SS), "é chamado de difuso porque não vem formalizado nas constituições".
  2. Parte da doutrina prefere a utilização do termo híbrido, nesse contexto, para que não haja confusão com uma outra classificação, que define como misto o sistema em que o controle é exercido tanto por órgãos políticos como por órgãos jurisdicionais (Suíça). Sob este aspecto, o sistema brasileiro não é misto, mas sim jurisdicional.
  3. Até a publicação deste texto, o julgamento está no seguinte ponto: "Após o voto-vista do Senhor Ministro Eros Grau, que julgava procedente a reclamação, acompanhando o Relator; do voto do Senhor Ministro Sepúlveda Pertence, julgando-a improcedente, mas concedendo habeas corpus de ofício para que o juiz examine os demais requisitos para deferimento da progressão, e do voto do Senhor Ministro Joaquim Barbosa, que não conhecia da reclamação, mas igualmente concedia o habeas corpus, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Ricardo Lewandowski. Ausentes, justificadamente, o Senhor Ministro Celso de Mello e a Senhora Ministra Cármen Lúcia. Presidência da Senhora Ministra Ellen Gracie. Plenário, 19.04.2007".
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Sobre o autor
Vitor Oliveira Magalhâes

Advogado, graduado em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto/MG, especialista em Direito público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÂES, Vitor Oliveira. A (im)possibilidade de análise do artigo 52, X, da Constituição Federal à luz do fenômeno da mutação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2417, 12 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14351. Acesso em: 18 abr. 2024.

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