O ensaio delineado a seguir decorre das observações e reflexões realizadas no Curso de Especialização em Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo quando, instados pelo Professor Jorge Luiz Souto Maior, percorremos os (des)caminhos da Praça da Sé e dialogamos com os personagens do marco zero da "Terra da Garoa". Ali, despretensiosamente, paramos diante de garis, advogados, desempregados, moradores de rua, estudantes etc [01]. Despimos-nos de nossos latinismos e de nossa linguagem rebuscada, para ouvir: O que é Direito? O que é Justiça? O que pensam das Faculdades e Juristas?
O material colhido em solo assaz fértil e heterogêneo deve necessariamente levar a uma reflexão sobre a função do Direito e da dogmática jurídica que o instrumentaliza. Afinal, pretendemos produzir Direito para que(m)? Problematizar tal questão implica correlacionarmos conceitos de Direito, Justiça e Democracia presentes no imaginário social [02] e quiçá (re)alinharmos nossas posturas teóricas e práticas. Todavia, apesar o fascínio causado pelas múltiplas análises leigas, a tarefa de relacioná-las com determinada(s) teoria(s) do Direito seria destinada a uma dissertação/tese, tal não é a nossa pretensão.
É possível afirmar que a maioria das pessoas ouvidas procurou conceituar Direito como sinônimo de lei, quando muito, como respeito às leis. Doutra banda, as concepções de justiça estiveram sempre ligadas à valoração moral, caminhando para conceitos supralegais de retidão, moralidade e ética [03]. Referida cisão entre Direito e Justiça leva a um claro descontentamento com o ordenamento jurídico e coloca o conceito que se tem sobre os pensadores do Direito num limbo: para uns, cúmplices das injustiças promovidas pelo sistema; para outros, vítimas de uma legislação afetada por interesses escusos de membros do Poder Legislativo [04].
Essas observações não parecem ser coincidências quando retomamos o esforço histórico do positivismo jurídico para segregar o conteúdo ético das legislações, legitimando-as apenas sob a perspectiva formal – emanar do Parlamento, nem sempre eleito democraticamente. Nessa linha, o pesquisador Boaventura de Sousa Santos [05] afirma que o Estado Liberal positivista tratou de transformar as aspirações e pretensões sociais em utopia, promovendo uma perda de legitimidade social no Direito e na Política. Tal medida visava imunizar a racionalidade moderna contra eventuais conceitos não capitalistas, transformando o Direito em instrumento de controle do Estado [06]. Logo, a pretensão de cientificidade no e do direito necessitava de um isolamento de seu objeto, garantindo-lhe um estudo sistemático sem perturbações morais, sociológicas, históricas etc. Porque, ainda que influentes na construção do Direito, referidas matérias deveriam ser estudadas em seus respectivos nichos acadêmicos – de acordo com a postura enciclopédica própria do positivismo de Comte. É perceptível como o Direito moderno posto modificou o seu pressuposto [07] de origem, calcado nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, que (em tese) dariam origem a uma sociedade sem as desigualdades do feudalismo.
Nessa ensancha, o inconformismo da população com o produto do parlamento e dos tribunais reflete, em larga medida, a necessidade de se resgatar os pressupostos do Direito moderno – para este subscritor, o tema do levante revolucionário do século XVIII que sepultou o feudalismo e deu origem ao(s) constitucionalismo(s) e ao Estado (Liberal) Moderno: liberdade, igualdade e fraternidade. Isso porque, o Direito como mero regulador não satisfaz as necessidades da sociedade, tampouco acalanta seu desejo de encontrar, na legislação e nas instituições jurídicas, formas de emancipação social tendentes a reduzir desigualdades sociais e propiciar um acesso às conquistas da modernidade, ainda restrita a um número de privilegiados. De tal sorte, antes de apontar qualquer conclusão, pretendemos com o presente ensaio suscitar a reflexão acerca da funcionalidade do Direito e da sua necessária aproximação com as carências sociais, trazendo a visão da sociedade para o campo hermético dos juristas.
Notas
- O autor, na companhia de seu respectivo grupo, ouviu 16 pessoas, incluindo-se na contagem os policiais militares, não autorizados pelo Comando a emitir juízo de valor pessoal sobre o direito. Incluímo-los na contagem, por entender referido silêncio deveras "eloqüente", se tomarmos em consideração que o Estado foi o único a não opinar, ou seja, auto-avaliar-se.
- "O conceito de imaginário social aqui adotado segue no mesmo sentido daquele inicialmente trabalhado por Cornelius Castoríadis, em seu L’Institution imaginaire de la Societé (1975), no qual evidencia a necessidade de se levar em consideração as seguintes ressalvas: (a) o imaginário social de que trata em nada tem a ver com o do paradigma psicanalítico; (b) todo pensamento, qualquer que seja ele e qualquer que seja seu ‘objeto’, é apenas um modo e não uma forma do fazer histórico-social; e (c) o fato de conhecer-se como tal não o faz sair dessa dimensão, mas pode permitir-lhe ser lúcido a respeito de si mesmo, elucidação encarada como o trabalho pelo qual os homens tentam pensar o que fazem e saber o que pensam". TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. (In)efetividade e imaginário social. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica (Direito, Estado e Democracia entre a (in)efetividades e o imaginário social), Porto Alegre, v. 1, n. 4, p. 7-13, 2006.
- Em larga medida é possível afirmar que os conceitos "leigos" de justiça em muito se parecem com o estandarte jurídico romano do suum cuique tribuere.
- Ao que parece, o conceito popular sobre os juízes tramita nas sendas legalistas que concebem o juiz – e os juristas – como a "boca da lei". A bem da verdade, resultado diverso seria surpreendente, pois tal postura positivista é notória em vários juízes e juristas reconhecidos nacional e internacionalmente.
- SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001. Volume 1. A Crítica da razão Indolente – contra o desperdício da experiência.
- Um Estado Leviatã que trocou o absolutismo da vontade divina do monarca pela vontade da lei, permanecendo sem controle.
- Para uma leitura das várias implicações entre direito posto e direito pressuposto, especialmente as condicionantes econômicas da produção do direito na modernidade capitalista, por todos, GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 43-83.