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Responsabilidade civil da administração pela guarda de pessoas e coisas

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25/02/2010 às 00:00
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04.

Entende, parte do pensamento jurídico nacional, que, sem embargos ao seu caráter objetivo, a responsabilidade civil da Administração, quando gerada por uma omissão, só se afirma se provada, pelo administrado, a culpa ou o dolo do causador do dano pendente de reparação.

Essa posição restou sufragada, em pelo menos uma oportunidade, pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, como evidencia o acórdão proferido na assentada em que se deu o julgamento do Recurso Extraordinário sob nº 140.270 – 9 – MG, relatado pelo Ministro Marco Aurélio, que pôs em ementa: "Se de um lado, em se tratando de ato omissivo do Estado, deve o prejudicado demonstrar a culpa ou o dolo, de outro, versando a controvérsia sobre ato comissivo – liberação, via laudo médico, de servidor militar, para feitura de curso e prestação de serviços – incide a responsabilidade objetiva." (cfr. DJU, 18.10.96).

Em outro precedente, mencionado órgão fracionário, em aresto conduzido pelo mesmo relator, afirmou, em tom peremptório, que a responsabilidade objetiva, como modelada pelas Constituições editadas a partir de 1946, alberga, sem qualquer ressalva, as comissões e as omissões administrativas: "A responsabilidade civil do estado é objetiva, dispensando, assim, indagação sobre a culpa ou dolo daquele que, em seu nome, haja atuado. Quer sob a égide da atual Carta, quer da anterior, responde o Estado de forma abrangentge, não se podendo potencializar o vocábulo "funcionário" contido no art. 107 da Carta de 1969. Importante é saber-se da existência, ou não, de um serviço e a prática de ato comissivo ou omissivo a prejudicar o cidadão. Constatada a confecção, ainda que por tabelionato não oficializado, de substabelecimento falso que veio a respaldar escritura de compra e venda fulminada judicialmente, impõe-se a obrigação do Estado de ressarcir o comprador do imóvel." (cfr. DJU, 26.02.99).

Presentes as diretrizes traçadas pela teoria do risco administrativo, revela-se impossível, de modo terminante, condicionar o deferimento da indenização à prova, pelo lesado, da culpa subjetiva, nos moldes estabelecidos pelo Código Civil.

Isto porque, a teoria em causa abrange todo e qualquer comportamento do poder público e leva, à conta de um indiferente jurídico, para fazer nascer o dever de indenizar, a natureza da posição assumida, em concreto, pelo agente público, que tanto pode exsurgir sob a forma de um fazer, quanto consistir em uma omissão indevida.

Sempre que sobrevier, ao particular, um dano resultante de uma atuação ou de uma omissão do Estado, desponta, em detrimento deste, o dever de indenizar, afigurando-se indiferente, para esse efeito, que seja identificada, ou não, a falta do funcionário, porquanto, em ambos os casos, a imputação é feita diretamente ao Estado.

Existe, no caso focalizado, uma impessoalização do ato danoso, que é atribuído imediatamente ao Poder Público, com todas as conseqüências daí decorrentes, em obséquio à responsabilidade objetiva, que contém a teoria da falta do serviço, elaborada pelo Conselho de Estado francês e estudada, ainda hoje, pela esmagadora maioria dos povos cultos.

A teoria da falta do serviço, em sua feição originária, que continua a prevalecer, repousa:

(i) no caráter primário da responsabilidade, que absorve a identidade do agente, convolando-o em uma mera peça da Administração, em cujo corpo se funde;

(ii) na inadequação dos órgãos do Estado e dos seus braços administrativos a determinadas necessidades coletivas ou mesmo individuais, de onde surge a má condição do serviço ou o seu funcionamento tardio ou defeituoso, como causa eficiente do prejuízo suportado pelo administrado; e

(iii) na eliminação, por força da sua completa inutilidade, da distinção entre falta funcional e falta pessoal, em benefício da falta do serviço, que se pode manifestar pela ausência de funcionamento, pelo funcionamento defeituoso ou pelo funcionamento tardio.

Os postulados em destaque, que informam a teoria da falta do serviço, elidiram, completamente, a procedência dos argumentos empolgados pelos que defendiam e ainda defendem, como solução para alguns casos, a teoria da culpa civil: "Na doutrina da culpa administrativa ou falta do serviço, não se cogita, por evidente inutilidade, da distinção entre falta funcional e falta pessoal. A falta do serviço se identifica em três categorias de faltas: mau funcionamento, ausência de funcionamento e funcionamento tardio do serviço. Digno de menção a este propósito é um aresto do Supremo Tribuna Federal. O dono de uma mercadoria, que se deteriorou em virtude do seu tardio desembaraço pela Alfândega, pretendeu indenização da Fazenda Nacional. O Ministro Orozimbo Nonato, divergindo do relator, pronunciou brilhante voto, em que mostrou a excelência da doutrina do risco administrativo sobre as demais soluções. Mas a espécie caracterizava nitidamente um caso de culpa administrativa, como a princípio se disse. A doutrina do risco administrativo, defendida pelos Ministros Orozimbo Nonato e Filadelfo Azevedo em votos magistrais, já fora esposada por Amaro Cavalcanti. Largos anos depois de publicada sua obra clássica, sente-se a palpitante atualidade de sua lição quando ensina que "...assim como a igualdade dos direitos, assim também a igualdade dos encargos é hoje fundamental no direito constitucional dos povos civilizados. Portanto, dado que um indivíduo seja lesado nos seus direitos, como condição ou necessidade do bem comum, segue-se que os efeitos da lesão, ou os encargos da sua reparação, devem ser igualmente repartidos por toda a coletividade, isto é, satisfeitos pelo Estado, a fim de que, por este modo, se restabeleça o equilíbrio da justiça comutativa." Muito tempo depois do nosso patrício, Paul Duez escrevia no mesmo sentido, argumentando: "...o prejuízo causado pelo funcionamento da empresa administrativa se analise em um encargo público, se a reparação pecuniária resulta em impô-la à coletividade, incontestavelmente o princípio da igualdade dos administrados relativamente aos ônus públicos exige a responsabilidade do poder público. O art. 15 do Código Civil não constitui óbice à aceitação dessa doutrina. Como ensina Savatier, a responsabilidade civil pode decorrer de mais de uma fonte. Se aquele dispositivo contempla o caso da representação conjugada ao elemento culposo, o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, sobre ele prevalente, autoriza a aplicação da doutrina objetiva ou solidarista." (cfr. José de Aguiar Dias, A Responsabilidade Civil do Estado, in Revista de Direito Administrativo, vol. XI, janeiro-março de 1948, págs. 24/25).

Assim, é fora de dúvida que a teoria do risco administrativo, como posta na Constituição Federal, art. 37, § 6º, alcança, a um só tempo, as omissões e as comissões perpetradas pelos agentes públicos, a menos que se deseje negar, às condutas omissivas, idoneidade para desencadear desdobramentos causais conducentes à produção de danos.

Isso não equivale, entretanto, a afastar, por inteiro, a culpa anônima ou do serviço como fonte de responsabilidade da Administração, pois, em alguns casos, os prejuízos, apesar de provocados por terceiros, deixam de ser evitados pelo aparato administrativo, que não funciona, ou funciona com ineficiências, em decorrência do posicionamento omissivo ou desidioso do agente público incumbido do dever de impulsioná-lo.

Na hipótese agora figurada, estão presentes duas realidades fáticas passíveis de aferição objetiva: (i) o dano ocasionado por terceiros ao patrimônio do administrado; e (ii) um serviço público preordenado à contenção do prejuízo, ou à redução dos seus efeitos a níveis suportáveis. Resta, então, averiguar se esse serviço, que deveria atuar eficientemente, não socorreu o particular em virtude do comportamento do agente público, que não cuidou do acioná-lo, cuidou de acioná-lo quando não mais podia debelar a ação predadora ou acudiu à situação com apenas parte dos recursos materiais e humanos colocados ao seu dispor, diminuindo, portanto, a sua eficiência.

Além dos danos provocados por movimentos multitudinários, não contidos eficientemente pelo aparelho policial, que a doutrina, de ordinário, cita como exemplo, medite-se no incêndio ocorrido em um edifício residencial, motivado por defeitos na distribuição de gás encanado, que o corpo de bombeiros, mesmo constatando com antecedência de um mês, não notificou o construtor, para que promovesse a sua correção.

Frise-se: na hipótese por último aventada, faz-se necessária a comprovação da culpa, não porque o prejuízo derivou de uma omissão, mas, convém frisar, para identificar, cumpridamente, as razões determinantes do imperfeito funcionamento do serviço, que não se mostrou eficiente para conter os efeitos danosos produzidos por um terceiro, que, como posto em destaque, era um estranho à Administração.


05.

Impende lembrar, antes do encerramento deste trabalho, que o Estado, no desempenho normal de sua atividade, cria situações de risco que, não com pouca freqüência, redundam em prejuízos para os administrados, como ocorre com a guarda de pessoas e coisas. Em tais hipóteses, o Estado, por atos comissivos seus, cria as situações determinantes ou propiciatórias da emergência dos danos que, por isso, aproximam-se dos prejuízos ocasionados pela atuação do Poder Público, atraindo, em conseqüência, a responsabilidade modelada pela teoria do risco administrativo.

Por outras palavras: se o Estado cria o risco, o dano, uma vez concretizado, em nada se distancia das situações em que o prejuízo é causado diretamente pelo atuar da Administração, pois a lesão vincula-se a um estado de fato por ela criado. Por conseguinte, embora não figure como autor, no quadro contextual em que se operou o evento lesivo, o Poder Público arca com os efeitos dele decorrentes, porquanto concorreu, com ato seu, para que se concretizasse a perda patrimonial sofrida pelo particular.

As pessoas, custodiadas pelo Estado, por vezes, singularizam-se pela sua predisposição ao crime, à semelhança do que se passa com os presos levados a uma penitenciária construída nas proximidades da área residencial ou comercial de um Município. Se, quando de uma evasão coletiva, tais pessoas depredam casas, edifícios ou lojas vizinhas a esse estabelecimento, a Administração é obrigada a indenizar, com base na teoria do risco administrativo, pois não evitou, como devia, danos perfeitamente previsíveis, que acabaram por concretizar-se.

Porém, se os evadidos, um ou dois dias após a fuga, invadem imóveis privados ou se apoderam, mediante violência, de móveis particulares, só será possível cogitar da responsabilidade substanciada na Constituição Federal, art. 37, § 6º, se restar provado, à saciedade, que, apesar de reunir condições para atuar, o Estado deixou de fazê-lo, por leniência ou indolência dos agentes a seu serviço.

Por razões e critérios idênticos, a responsabilidade objetiva aplica-se, à perfeição, aos danos sofridos pelas pessoas custodias pelo Poder Público, como ocorre com o detento que vem a falecer, em razão de golpes desferidos por um seu companheiro de presídio, com o emprego de instrumento cortante ou contundente, eis que os presidiários, isoladamente considerados, encontram-se expostos a uma permanente situação de risco, inerente à inquietação dos infratores com os quais convivem na ambiência da colônia penal.

Diga-se o mesmo dos alunos regularmente matriculados em escolas públicas, eis que, com a sua integridade corporal e mental, comprometem-se, irredutível e irresistivelmente, as pessoas jurídicas de direito público mantenedoras dos estabelecimentos educacionais. Portanto, se um estudante fere outro com um estilete, ou com uma lâmina que traz consigo a pretexto de apontar os lápis, o Estado obriga-se pela correspondente indenização, com base nos postulados da responsabilidade objetiva.

Não se ignora que o Supremo Tribunal Federal, em pelo menos três oportunidades, proclamou que o Estado tem a obrigação de indenizar os danos resultantes da morte de um apenado por outro, no interior de uma penitenciária, onde ambos cumpriam penas privativas de liberdade. As decisões proferidas a propósito desses casos, contudo, louvaram-se na denominada culpa anônima, que requesta a prova, pelo particular, de que o serviço (i) não funcionou, (ii) funcionou com deficiência ou (iii) não funcionou como e quando deveria (cfr. Recursos Extraordinários nº(s) 369820 – RS, 372472 – RN e 382054 – RJ, relatados pelo Ministro Carlos Velloso).

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Sem embargos às laboriosas construções empreendidas pelos votos que conduziram os julgamentos colacionados, é inquestionável que não deveriam ter sido exigidas, dos administrados, as comprovações a que se referiram os acórdãos, por um motivo destacado em desdobramento anterior deste trabalho: se as omissões foram atribuídas a agentes público, encontram-se, todas elas, cobertas pela responsabilidade administrativa, inscrita na Constituição Federal, art. 37, § 6º.

Por isso, melhor do que os precedentes referidos, viu essa relevante tese jurídica o acórdão originário da Primeira Turma do Colendo Supremo Tribunal Federal, quando chamada a julgar o Recurso Extraordinário sob nº 109615 – RJ (DJU, 02.08.96), cuja relatoria coube ao Minsitro Celso de Mello: "A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os seus agentes públicos houverem dado causa, por ação ou omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência do ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente da caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/356) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 – RTJ 71/99 – RTJ 91/377 – RTJ 99/1155 – RTJ 131/417). O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias – como o caso fortuito e a força maior – ou evidenciadoras de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 – RTJ 55/50). O Poder Público, ao receber o estudante em qualquer dos estabelecimentos da rede oficial de ensino, assume o grave compromisso de velar pela preservação de sua integridade física, devendo empregar todos os meios necessários ao integral desempenho desse encargo jurídico, sob pena de incidir em responsabilidade civil pelos eventos lesivos ocasionados ao aluno. A obrigação governamental de preservar a intangibilidade física dos alunos, enquanto estes se encontrarem no recinto do estabelecimento escolar, constitui encargo indissociável do dever que incumbe ao Estado de dispensar proteção efetiva a todos os estudantes que se encontrarem sob a guarda imediata do Poder Público nos estabelecimentos oficiais de ensino. Descumprida essa obrigação, e vulnerada a integridade corporal do aluno, emerge a responsabilidade civil do Poder Público pelos danos causados a quem, no momento do fato lesivo, se encontrava sob a guarda, vigilância e proteção das autoridades e dos funcionários escolares, ressalvadas as situações que descaracterizam o nexo de causalidade material entre o evento danoso e a atividade imputável aos agentes públicos." (Grifos do original)

Fica afastado o dever de indenizar, nas hipóteses e condições remarcadas, se um presidiário ou um estudante, sob guarda do Poder Público, em um presídio ou em uma escola, vierem a ser vitimados por raios, à míngua de conexão lógica entre as situações de risco, criadas pelo Estado (construção e manutenção em funcionamento do presídio e da escola), e os eventos da natureza (queda do raio), que não alcançam, rotineira ou costumeiramente, estabelecimentos escolares e prisionais.

Quando se ocupa de armazenar e distribuir inflamáveis, como se dá com os serviços de guarda em depósito e de fornecimento de gás, o Estado cria uma situação de risco, em ordem a fazer surgir a sua obrigação de indenizar, com base nos princípios consagrados pela teoria do risco administrativo, os donos dos terrenos que vierem a ser prejudicados por eventual explosão ou escapação dessa substância.

Pela mesma ordem de motivos, os depósitos construídos para a guarda, a bem do serviço de segurança pública, de armamentos e munições, podem transformar-se em fatos geradores da obrigação de indenizar, objetivamente, os danos oriundos de incêndios, provocados pela guarda displicente desses artefatos, pouco importando, para os fins cogitados, que o evento tenha sido ocasionado por omissão do agente público dotado de competência para esse cometimento.

Ainda no tocante à guarda de coisas, convém meditar sobre as conseqüências dos atos de apreensão judicial de móveis, que se realizam, com maior freqüência, em duas situações: (i) a pretexto de aperfeiçoar as penhoras levadas a efeito nos processos de execução; e (ii) para assegurar, à União, a concretização dos efeitos genéricos da condenação criminal, previstos no Código Penal, art. 91, II, "a" e "b".

Verdade, não se cogita, aqui, de coisas aptas à criação de riscos. Não é menos verdade, entretanto, que a apreensão, que se perfectibiliza com ordem judicial, tem eficiência para fazer nascer, em desfavor do Poder Público, o dever de indenizar.

A penhora é um ato de afetação patrimonial, pois, sem impedir a sua venda, pelo proprietário, vincula um bem integrado ao seu patrimônio à relação processual de execução, com uma finalidade certa e indestorcível: assegurar a liquidação do débito, uma vez encerrada a prestação da tutela jurisdicional.

Em estudo subordinado ao tema penhora, Humberto Theodoro Júnior (cfr. Processo de Execução, 6ª ed., Livraria e Editora Universitária do Direito, São Paulo, 1983, pág. 244) declina a sua tríplice função:

(i) individualizar bens destinados ao fim da execução;

(ii) conservar esses bens, para que não se deteriorem nem sejam desviados; e

(iii) criar preferência para o exeqüente, sem prejuízo das prelações de direito material anteriormente estabelecidas.

Depreende-se, destas observações, que o executado tem direito líquido e certo à preservação do bem, para que se mantenha inteiro e não sofra depreciação até o momento da sua alienação judicial e, assim, o seu patrimônio não sofra novo desfalque, determinado pela necessidade de reforço de penhora ou de nova constrição.

Pois bem: se, com o escopo de assegurar o resultado útil da execução, o juiz ordena, de ofício ou a requerimento do exeqüente, que os bens sejam recolhidos ao depósito judicial ou confiados a depositário particular, por ele designado (CPC, arts. 665, IV, e 666, I e II), o Estado, por ato do seu órgão judicante, se expõe ao dever de indenizar, caso a garantia do juízo venha a perecer ou a sofrer sensível redução, devido à falta de estrutura ou ao simples descaso dos auxiliares da justiça. Da afirmação dessa responsabilidade ocupou-se o Colendo Supremo Tribunal Federal, em passado bastante recuado, como se depreende do voto tomado do Ministro Hermes Lima, como relator da Ação Rescisória objeto do Processo sob nº 427 – Guanabara, com o qual anuíram, na assentada em que se deu o julgamento, levado a efeito em 29 de setembro de 1966, os demais integrantes da Corte.

O que se vem de dizer alenta-se na circunstância de que, se consentida pelo credor, a guarda dos bens pode ser cometida ao devedor que, não estando impedido de aliená-los a título oneroso, pode resolver vendê-los em condições vantajosas e, com o produto dessa operação, quitar a dívida que lhe está sendo exigida pela via executiva (CPC, art. 666, § 1º).

No que concerne às apreensões levadas a efeito no âmbito do processo penal, é inquestionável que os bens, de que são objeto, passam à custódia do Estado para que restem satisfeitos, com a sobrevinda do trânsito em julgado da sentença condenatória, os efeitos civis elencados pelo Código Penal, art. 91, II, "a" e "b", e pela Lei nº 9613, de 1998, I.

O Código Penal, art. 91, II, "b", e a Lei nº 9613, de 1998, I, reportam-se aos producta sceleris, que são os proveitos obtidos com a prática do ilícito. Tanto constitui proveito do crime o objeto material apreendido diretamente pelo seu autor, como os móveis provenientes do peculato, do furto, do roubo (proveito direto) e do exaurimento dos delitos formais ou de mera conduta (corrupção passiva, por exemplo), quanto os produtos finais obtidos por sucessiva especificação (transformação do ouro furtado em jóias) ou mediante alienação (dinheiro adquirido com a venda de móveis furtados, roubados ou receptados).

As situações hipoteticamente figuradas aproximam-se por um traço comum: o aumento da fortuna do delinqüente em razão da prática ilícita. E esse traço comum desponta como fato gerador da incidência, sobre as situações emergentes, do preceito substanciado no Código Penal, art. 91, II, "b", e na Lei nº 9613, de 1998, art. 7º, de modo que, sem uma prova escorreita de que esse aumento de fortuna adveio, direta ou indiretamente, do ilícito imputado ao réu, os bens alcançados por eventual busca e apreensão, ainda que convolada em seqüestro, com observância das disposições inscritas no Código de Processo Penal, arts. 125 a 130, devem volver ao seu patrimônio, no estado em que se encontravam, quando da realização da diligência, mesmo em caso de condenação (cfr. Magalhães Noronha, in Direito Penal, ed. Saraiva, 31ª ed., São Paulo, 1995, vol. I, parte Geral, pág. 294; Damásio Evangelista de Jesus, Direito Penal, ed. Saraiva, 27ª ed., São Paulo, 1997, pág. 638).

Fixado este ponto, é imperioso convir que, por idênticos motivos, o Estado se expõe ao dever de indenizar, pois ditos bens terão que se reincorporar ao acervo patrimonial do acusado, em caso de absolvição, ou na hipótese de condenação, se faltar, ao Ministério Público, a prova cumprida de que a sua aquisição deveu-se, imediata ou mediatamente, à perpetração do delito.

Concretizado que seja um dos casos aqui pensados, o jurisdicionado, pouco importando que se encontre sob a égide do juízo cível ou do juízo criminal, tem direito a que os bens se mantenham, durante todo o período de constrição, no estado em que se achavam quando apreendidos e recolhidos ao depósito judicial ou entregues à custódia do depositário particular, assistindo-lhe, portanto, o direito de vindicar indenização, se detectar, em tais objetos, desgastes que lhes diminuam o valor.

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Sobre o autor
Eduardo Antônio Dantas Nobre

Subprocurador Geral da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOBRE, Eduardo Antônio Dantas. Responsabilidade civil da administração pela guarda de pessoas e coisas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2430, 25 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14409. Acesso em: 23 abr. 2024.

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