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Análise jurídica do caso dos apostadores da mega sena de Novo Hamburgo

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27/02/2010 às 00:00
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6. Direito de regresso: a desconsideração da personalidade jurídica da casa lotérica

Uma vez condenada à reparação civil, consistente no pagamento do prêmio aos apostadores, a CEF terá legitimidade para, em direito de regresso, acionar a pessoa jurídica da casa lotérica. É isso que preconiza o art. 934 do CC, a saber:

"Art. 934. Aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente incapaz."

A CEF poderá acionar a casa lotérica em ação autônoma, ou na mesma ação em que é demandada. No segundo caso, poderá valer-se da denunciação à lide, conforme prevista no art. 70, III, do CPC, a saber:

"Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória:

III - àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda."

Como percebemos, o CPC não cuidou de definir o instituto da denunciação à lide, passando logo à sua enumeração. Segundo Daniel Assumpção Neves [12], trata-se de modalidade de intervenção de terceiros que se presta para que uma das partes traga ao processo um terceiro que tem responsabilidade de ressarci-la pelos eventuais danos advindos do resultado desse processo. O direito regressivo da parte contra terceiros é o fator principal que legitima a denunciação da lide.

Diferentemente da responsabilidade da CEF perante os apostadores, que é objetiva, a responsabilidade da casa lotérica em relação à CEF será subjetiva, com base no princípio geral de responsabilidade civil insculpido no já transcrito art. 186 do CC. Em outras palavras, para ressarcir-se, deverá a CEF, em ação de regresso, provar a culpa do administrador ou gerente da casa lotérica.

Ainda assim, como já dissemos supra, muito provavelmente a casa lotérica não terá lastro para fazer frente à tamanha reparação.

Sabemos também da existência de um princípio que vinha expresso no CC/16, mas não repetido no CC/02, de que o patrimônio da pessoa jurídica não se confunde com o de cada um de seus sócios. Falamos aqui do art. 20 da anterior codificação que assim dispunha:

"Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros."

Se não foi expressamente repetido pela atual codificação, esse princípio decorre do próprio sistema, já que a pessoa jurídica titulariza personalidade jurídica diversa da de cada um de seus sócios. Ademais, apenas a título de esclarecimento, a única hipótese de coexistência de patrimônio seria o caso do empresário individual, ou seja, do empresário pessoa natural que, ainda assim, destaca parte de seu patrimônio para emprego no exercício da empresa.

Em caso de abuso da personalidade da pessoa jurídica, caracterizada pelo abuso de sua finalidade, presumida esta em caso de confusão patrimonial, o juiz, a requerimento da parte interessada, ou do MP, quando lhe couber intervir nos autos, poderá desconsiderar a personalidade jurídica em relação a determinados atos.

É para coibir essa espécie de abuso que a doutrina desenvolveu a teoria da desconsideração da personalidade jurídicadisregard doctrine ou disregard the legal entity. No direito francês recebeu a denominação de abus de la notion de personnalité sociale e na itália, teoria do superamento della personalità giuridica.

Segundo essa teoria, o juiz poderá afastar a aplicação do princípio constante no art. 20 do CC/16, de que a pessoa jurídica tem existência distinta da de seus sócios, quando estes agirem de má-fé ou com fraude,para sujeitar o patrimônio dos sócios à satisfação das obrigações contraídas pela sociedade, mediante o levantamento do véu da personalidade jurídica – lifting the corporate veil.

Entretanto, a decisão judicial que desconsidera a personalidade da pessoa jurídica não desfaz seus atos constitutivos, nem extingue sua personalidade jurídica, porque tais atos são apenas suspensos provisoriamente, e para efeitos decorrentes do caso concreto. Em outras palavras, a desconsideração da personalidade jurídica tem natureza unicamente processual, de modo que é correto afirmar que desconsideração não importa em despersonificação.

O CC/02 disciplinou a desconsideração da personalidade jurídica em seu art. 50, dispondo que:

"Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica."

Primeiramente vale salientarmos que o simples inadimplemento de obrigações contraídas pela pessoa jurídica, desacompanhado de seu uso abusivo, não é fato suficiente a autorizar a desconsideração de sua personalidade. Caso bastasse o mero inadimplemento, a desconsideração, que deveria ser excepcional, passaria a tornar-se regra, o que certamente prejudicaria a segurança jurídica que deve sempre fazer-se presente nos negócios obrigacionais.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho [13] chamam a atenção para o fato de que a norma geral sobre a desconsideração da personalidade jurídica não se limita aos sócios, estendendo-a aos administradores da pessoa jurídica. Isso porque, muitas vezes, os administradores são os verdadeiros donos da pessoa jurídica que, por sua vez, é registrada em nome dos chamados "testas-de-ferro".

Ainda há um importante desdobramento acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que se faz oportuno esclarecermos.

Existem a teoria maior e a menor da desconsideração da personalidade jurídica. Segundo a teoria maior, o juiz fica autorizado a desconsiderar a personalidade jurídica para coibir fraudes e abusos praticados em seu nome. Como vemos, para essa teoria, a desconsideração só tem lugar em casos específicos.

Já a teoria menor autoriza o juiz a desconsiderar a personalidade jurídica em caso de mero prejuízo do credor. Trata-se de formulação muito mais elástica, e muito menos elaborada. Vem prevista no § 5º do art. 28 do CDC, nos seguintes termos:

"Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores."

Entre a CEF e a casa lotérica, deve ser adotada a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do citado art. 50 do CC, porquanto a relação jurídica travada entre ambas, de comitente e cometido, não se configura como de consumo. Caso os apostadores houvessem ingressado diretamente em face da casa lotérica, aí sim poderiam utilizar-se da teoria menor, porquanto entre estes configurada estaria a relação de consumo.

Fato é, no entanto, que quer utilizada a teoria da disregard pela CEF contra a casa lotérica, ou mesmo pelos apostadores contra ela, em nenhum caso acreditamos que seus sócios ou administradores terão lastro suficiente para o pagamento de uma indenização no importe de 52 milhões de reais.


7. Aspectos penais do ilícito civil: a configuração do delito de estelionato

É importante termos em mente que a prática de uma conduta tipificada como crime atinge o interesse de toda a sociedade, e por isso deve ser reprimida pelo Estado. Não menos verdade é, todavia, que essa mesma conduta pode atingir um interesse privado do ofendido, quer o prejuízo advenha em seu patrimônio, quer em seus direitos da personalidade.

Sabemos, outrossim, da relação de relativa independência das instâncias penal e civil, conforme disposto no art. 935 do CC, a saber:

"Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal."

Como já tivemos oportunidade de destacar, concomitantemente ao ilícito civil, pode ser configurado um ilícito penal, para tanto bastando que determinada conduta, levada a efeito, esteja descrita em alguma lei penal, como fato típico.

Informam Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly [14] que o direito comparado conhece dois sistemas de disciplina da interdependência entre as instâncias penal e civil, a saber:

a) sistema da união, pelo qual o juiz penal resolve sobre o crime e sobre a reparação do dano; e

b) sistema da separação, pelo qual a reparação deve ser pleiteada no juízo cível.

No Brasil vigora o sistema da separação, nos termos do art. 935 do CC, ao passo que, por exemplo, em Portugal, como regra, vigora o sistema da união por força do art. 71 de seu CPP.

Não nos esqueçamos, contudo, que a teoria geral do processo, dentre outros, é regida pelo princípio da unidade de jurisdição. Segundo esse princípio, a divisão da justiça em matérias especializadas tem unicamente caráter prático, possibilitando, do ponto de vista didático, melhor organização dos estudos, e do ponto de vista da atuação dos magistrados, uma maior especialização na matéria.

Nas explanações de Fredie Didier Júnior [15], por questão de conveniência, especializam-se setores da função jurisdicional. Distribuem-se as causas pelos vários órgãos jurisdicionais, conforme as suas atribuições, que têm seus limites definidos em lei. Limites que lhes permitem o exercício da jurisdição. A jurisdição é una, porquanto manifestação do poder estatal. Entretanto, para que mais bem seja administrada, há de ser feita por diversos órgãos distintos.

Então, quando falamos de instâncias criminal e civil, o fazemos em razão da competência material atribuída a cada juízo, sem perdermos de vista o princípio da unidade de jurisdição.

No caso em tela, uma das possibilidades é que tenha sido empregado meios fraudulentos para que houvesse obtenção de indevida vantagem econômica por parte de algum agente da casa lotérica.

Se essa hipótese restar comprovada, estaremos então frente à figura típica de estelionato, prevista no art. 171 do CP. Vejamos então o que preconiza o dispositivo:

"Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa."

Comentando o dispositivo, anota Rogério Greco [16] que "desde que surgiram as relações sociais, o homem se vale da fraude para dissimular seus verdadeiros sentimentos, intenções, ou seja, para, de alguma forma, ocultar ou falsear a verdade, a fim de obter vantagens que, em tese, lhe seriam indevidas".

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Para a configuração do estelionato é necessário que uma pessoa obtenha uma vantagem ilícita para si própria ou para outra, e que dessa vantagem decorra prejuízo para alguém e mais, que a conduta do estelionatário esteja dirigida finalisticamente para o prejuízo da outra. Em outras palavras, ao falarmos de estelionato, falamos do binômio vantagem/prejuízo.

Mas, para configuração desse delito, é necessária a prova de dolo do agente fraudador, pois do contrário o fato será atípico. Sua atipicidade, entretanto, em nada interfere nos reflexos civis da conduta, importando, tão-somente, no reconhecimento de irrelevância para o direito penal.

As autoridades policiais estão investigando se se trata de um fato isolado, ou se naquela lotérica a prática de não registrar apostas era corriqueira. Logicamente que aqueles apostadores assíduos que até hoje não foram contemplados no sorteio não se preocuparam, após cada concurso, em contatar a CEF para saberem se sua aposta foi ou não registrada. Em palavras simples, se configurada a reiteração da prática delitiva, podemos então dizer que a sorte da lotérica era o azar dos apostadores. Mas desta vez, o azar da lotérica foi a sorte dos apostadores.

Contudo, a imprensa vem noticiando que uma empregada da lotérica teria cometido um erro no registro da aposta. Se essa informação se confirmar, afastado estará o estelionato, pois diante de um erro, causado por um descuido, não se pode falar em dolo de quem quer que seja, quer direto, quer eventual. Isto porque o CP prevê no parágrafo único de seu art. 18 que ressalvadas as hipóteses expressamente previstas em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. E o estelionato só é punido na modalidade dolosa.


8.. Observações finais

Do que aqui sustentamos, segundo nossas primeiras impressões sobre o fato são no seguinte sentido:

a) Trata-se de responsabilidade objetiva impura, por fato de terceiro.

b) Ao condenado à indenização será possível regressar contra o verdadeiro culpado, quer em ação autônoma, quer mediante intervenção de terceiros, na modalidade de denunciação à lide.

c) Em direito de regresso, a responsabilidade será subjetiva, havendo o primeiro condenado que provar a culpa daquele contra quem se pretende ressarcir.

d) O fato causador de dano na esfera cível também pode refletir na seara criminal. Em que pese a jurisdição ser una, sua divisão especializada mostra-se interessante tanto para os jurisdicionados, como para os órgãos que efetuam a prestação jurisdicional.

e) Em tese, é possível que se verifique a prática do delito de estelionato. Este delito, no entanto, só é punido em sua forma dolosa. Como tudo indica que houve falha humana quanto a não efetivação do registro das apostas, caracterizada está a negligência.

f) A irrelevância penal do fato não repercute na esfera civil, que busca a reparação dos prejudicados.

g) Caracterizada a fraude, mediante utilização abusiva da personalidade jurídica, pode ser aplicada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica para se agredir o patrimônio dos sócios, se o da sociedade empresária não for suficiente.

h) Por fim, nossa idéia não é criticar ou prejudicar quem quer que seja. Propomo-nos apenas a analisar o fato social à luz das regras oferecidas pelo arcabouço jurídico. E pudemos perceber que nosso direito encontra-se satisfatoriamente aparelhado de normas – princípios e regras – capazes de solucionar, com justiça e presteza, o caso que ora estudamos.


9. Referências bibliográficas

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HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

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NEVES, Daniel Assumpção. Manual de direito processual civil. São Paulo: Método, 2009.


Notas

  1. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo curso de dirieto civil, v. 4, t. 2, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 562.
  2. Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Direito civil: direito das obrigações, São Paulo: Atlas, 2008, p. 190.
  3. Paulo Nader, Curso de direito civil, v. 3, 4 ed, Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 399.
  4. Roberto Senise Lisboa, Responsabilidade civil nas relações de consumo, 2 ed, São Paulo: RT, 2006, p. 177.
  5. Álvaro Villaça Azevedo, Proposta de classificação da responsabilidade objetiva: pura e impura, Cadernos de direito constitucional e ciências políticas, a. 4, n. 14, São Paulo: RT, 1996, p. 31.
  6. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Novos rumos da reparação satisfatória, (texto gentilmente cedido por e-mail pela própria autora).
  7. "Alguém é responsável não só pelo dano que causar por fato próprio, mas também como daquele causado pelo fato das pessoas pelas quais se deve responder, ou das coisas que se tem sob sua guarda. (...) pai e a mãe, enquanto exercem o direito de guarda, são solidariamente responsáveis pelo dano causado por seus filhos menores que com eles habitam; Os proprietários e os comitentes, pelo dano causado por seus empregados domésticos e prepostos nas funções para as quais são empregados; os mestres e artesãos, pelos danos causados por seus alunos e aprendizes."
  8. René Demogue, De La réparation civil des délits, Paris: Librairie Nouvelle de Droit ET de Jurisprudence, 1898, p. 71-72.
  9. Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Direito civil, cit., p. 97.
  10. Judith Martins-Costa, Diretrizes teóricas do novo Código Civil, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 199.
  11. Pablo stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo curso, v. 4, cit., p. 14.
  12. Daniel Assumpção Neves, Manual de direito processual civil, São Paulo: Método, p. 205.
  13. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo curso de direito civil, v. 1, 10 ed, São Paulo: Saraiva, 2006, p. 233.
  14. Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly, Curso de processo penal, 4 ed, Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 154.
  15. Fredie Didier Júnior, Curso de direito processual civil, v. 1, 7 ed, Salvador: JUSPODIVM, 2007, p. 93.
  16. Rogério Greco, Curso de direito penal, v. 3, 4 ed, Niterói: Impetus, 2007, p. 239.
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Sobre o autor
Fernando Gaburri

Graduado pelo Instituto Vianna Júnior de Juiz de Fora/MG. Mestre em direito civil comparado pela PUC/SP. Procurador do Município de Natal/RN. Professor da FARN e professor convidado em cursos de pós-graduação e em congressos jurídicos. Autor de obras e artigos jurídicos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GABURRI, Fernando. "Ganhamos mas não levamos".: Análise jurídica do caso dos apostadores da mega sena de Novo Hamburgo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2432, 27 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14424. Acesso em: 24 nov. 2024.

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