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Análise jurídica do caso dos apostadores da mega sena de Novo Hamburgo

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27/02/2010 às 00:00
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Uma vez condenada à reparação civil, consistente no pagamento do prêmio aos apostadores, a CEF terá legitimidade para, em direito de regresso, acionar a pessoa jurídica da casa lotérica.

1. Suporte fático: os apostadores do bolão de Novo Hamburgo

No sábado, 20.02.2010, um grupo de 40 apostadores de Novo Hamburgo/RS teria participado de um bolão e acertado todas as dezenas sorteadas no Concurso n. 1.155 da Mega Sena, cujo prêmio se encontrava acumulado em 52 milhões de reais.

No entanto, a aposta realizada na casa lotérica Esquina da Sorte não foi lançada no sistema de controle da Caixa Econômica Federal – CEF, o que os impediu de receber o milionário prêmio.

Em decorrência disso, para a CEF não houve acertadores das 6 dezenas, razão pela qual o prêmio teria acumulado para 61 milhões de reais.

O grupo de 40 apostadores tem apenas um papel comprovando os números da aposta, fornecido pela casa lotérica. Contudo, para a CEF somente o comprovante emitido pelo terminal de apostas é documento comprobatório para fins de recebimento de prêmios.

Segundo o gerente da casa lotérica, uma sociedade empresária terceirizada é quem cuidaria de fazer as combinações, e aquela apenas as apresentaria para os apostadores interessados. Aduz que poderia ter havido então algum erro gráfico, ou mesmo de digitação das apostas no sistema.


2. Relação jurídica: o contrato de aposta

A relação jurídica existente entre os apostadores do referido bolão e a casa lotérica guarda natureza contratual e caracteriza-se como uma aposta. Nas linhas que se seguem procuraremos oferecer os elementos fundamentais desta figura contratual.

De início, algumas distinções entre jogo e aposta fazem-se oportunas. Apesar de receberem o mesmo tratamento jurídico, em razão da enorme semelhança que apresentam entre si, pelo fato de ambos estarem sujeitos à sorte, dependendo a prestação de uma das partes a outra, da verificação de um resultado ou acontecimento incerto, jogo e aposta são contratos distintos.

No jogo, as partes participam ativamente para a realização do acontecimento ou resultado. Esta participação pode ser tanto de caráter físico quanto intelectual, ou ainda envolver atividades de ambos os gêneros.

Assim sendo, considera-se jogo o carteado, a dama, o xadrez etc., em que se verifica a participação direta das partes, de sorte a influenciar no resultado final.

Já a aposta é caracterizada pela não participação das partes, ou seja, pela não intervenção de ambas na eclosão do acontecimento ou resultado incerto. Há apenas emissão de opiniões divergentes entre as partes, sobre um fato ou acontecimento que não depende da ação humana, ou então que dependa da ação de terceiros, estranhos às partes.

Observamos, contudo, que jogo e aposta são figuras tão próximas, que às vezes, na linguagem coloquial, acabamos utilizando uma pela outra. Assim nos ensinam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho [01] que quando dois amigos resolvem apostar uma corrida entre si, em verdade estão praticando um contrato de jogo. Ao contrário, quando falamos em jogar na Mega Sena, na verdade não estamos jogando, estamos sim apostando porque nossa opinião quanto às seis dezenas em nada influencia na verificação do resultado.

Os jogos e apostas podem ser de três espécies: proibidos, tolerados e autorizados. Os autorizados são aqueles albergados em lei, como é o caso da aposta em concursos de prognósticos.

Basicamente, o que diferencia, de um lado os jogos proibidos e tolerados, e de outro os autorizados, é a exigibilidade jurídica da prestação em favor do contemplado no jogo ou na aposta. Enquanto que nos primeiros a prestação não é exigível juridicamente, no caso dos jogos e apostas autorizados, o vencedor tem ação para exigir o pagamento do prêmio.

Elucida Guilherme Calmon Nogueira da Gama [02] que na obrigação juridicamente inexigível (denominada de obrigação natural pelo CC/16) existem direito e obrigação, mas o credor não está munido da faculdade de promover seu adimplemento forçado. Há, portanto, o débito desacompanhado da responsabilidade.

Percebemos por isso que o direito dispensou especial atenção aos jogos e apostas autorizados, uma vez que, conforme leciona Paulo Nader [03], a par de sua conotação recreativa, são úteis às políticas públicas, pois beneficiam os setores envolvidos. É o caso do Regime Geral de Previdência Social – RGPS – que tem como uma de suas fontes de custeio, os valores recebidos dos apostadores em concurso de prognósticos, nos termos do art. 26 da Lei n. 8.212, de 24.07.1991, nestes termos:

"Art. 26. Constitui receita da Seguridade Social a renda líquida dos concursos de prognósticos, excetuando-se os valores destinados ao Programa de Crédito Educativo. § 1º Consideram-se concursos de prognósticos todos e quaisquer concursos de sorteios de números, loterias, apostas, inclusive as realizadas em reuniões hípicas, nos âmbitos federal, estadual, do Distrito Federal e municipal.

§ 2º Para efeito do disposto neste artigo, entende-se por renda líquida o total da arrecadação, deduzidos os valores destinados ao pagamento de prêmios, de impostos e de despesas com a administração, conforme fixado em lei, que inclusive estipulará o valor dos direitos a serem pagos às entidades desportivas pelo uso de suas denominações e símbolos.

§ 3º Durante a vigência dos contratos assinados até a publicação desta Lei com o Fundo de Assistência Social-FAS é assegurado o repasse à Caixa Econômica Federal-CEF dos valores necessários ao cumprimento dos mesmos."


3. Conduta ilícita: a não efetivação da aposta junto à Caixa Econômica Federal

Como vimos no tópico introdutório, os apostadores efetuaram o pagamento pelas apostas mediante bolão. A casa lotérica, por sua vez, não cuidou de fazer registrar aquela aposta junto à CEF. Uma vez anunciado o resultado, os apostadores do bolão não puderam receber o prêmio de R$ 52 milhões porque, para a CEF, a aposta seria inexistente.

Ora, percebemos que a conduta omissiva da casa lotérica violou direito dos apostadores, e causou-lhes dano. O fato ora narrado subsume-se à regra geral de responsabilidade civil, prevista no art. 186 do CC, a saber:

"Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito."

Estamos diante da regra geral de responsabilidade civil subjetiva, ou seja, que imprescinde da prova de culpa do causador do dano, para que este possa ser judicialmente compelido a indenizar.

Certamente que o ônus de fazerem a prova de culpa não seria interessante para os apostadores. Estes, de fato, têm em seu socorro o CDC, que prevê a responsabilidade civil objetiva por fato do serviço, já que a casa lotérica nada mais fez do que prestar um serviço para a CEF, defeituoso, digamos de uma vez.

Segundo explica Roberto Senise Lisboa [04], a distinção básica entre produto e serviço é a preponderância da atividade do fornecedor para a outorga de um bem material ou imaterial. Sob a ótica do CDC há duas espécies de serviço, o por natureza e o por definição legal. Dentre os serviços por definição legal, elencados no § 2º do art. 3º do CDC, estão os de natureza bancária. Caso as apostas em loteria não possam ser consideradas serviços de natureza bancária, cairão na vala comum que é a de serviço por natureza, assim entendido toda atividade fornecida no mercado de consumo mediante remuneração. Se esse serviço puder ser enquadrado na noção de serviço público, então a base da responsabilidade civil objetiva desloca-se para o § 6º do art. 37 da CF/88. Como podemos perceber, independentemente de qual seja o fundamento jurídico da responsabilidade civil da CEF, sua responsabilidade será objetiva.

Caberia aos apostadores, então, acionar a casa lotérica com base na responsabilidade objetiva do fornecedor de serviço, com fulcro no caput do art. 14 do CDC, que assim dispõe:

"Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos."

O § 1º do mesmo dispositivo determina a noção de defeito do serviço, nos seguintes termos:

"§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I - o modo de seu fornecimento;

II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III - a época em que foi fornecido."

De simples leitura dos textos consumeiristas supracitados, temos elementos mais do que suficientes para concluir que o risco que se poderia esperar da prestação do referido serviço era nenhum. Bastante seria que, após receber o valor da aposta, a casa lotérica providenciasse seu registro junto à CEF, por meio de simples alimentação de sistema informatizado.

Resolvida a questão de prescindibilidade do ônus da prova de culpa do fornecedor, que é a casa lotérica, caberia então aos apostadores ingressar em juízo contra si. Entrementes, é bastante provável que o patrimônio da casa lotérica não seja suficiente para fazer frente a uma indenização de R$ 52 milhões, o que poderá acarretar a abertura de seu processo de falência.

Se não a casa lotérica a pessoa jurídica mais indicada para o pagamento da indenização aos apostadores, quem então deverão acionar? Procuraremos, no tópico seguinte, demonstrar que a CEF responde objetivamente pelos atos da casa lotérica.


4. Responsabilidade objetiva impura: o comitente responde por ato do cometido

À luz da moderna doutrina, a teoria objetiva pode ser subdividida em pura e impura.

Segundo seu idealizador, Álvaro Villaça Azevedo [05], a responsabilidade objetiva, como regulada no CC, ainda guarda muito apego à teoria da culpa. Nesta ordem de idéias, a responsabilidade objetiva impura tem, sempre, como substrato, a culpa de terceiro vinculado à atividade do indenizador, enquanto que a teoria objetiva pura não se liga à culpa de quem quer que seja.

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka [06] expõe matizar-se a responsabilidade civil objetiva pura pelas cores da absoluta desimportância de se indagar a respeito da culpa, quer seja a do próprio agente obrigado legalmente a pagar, quer a da vítima, quer a de terceiro, seja ele quem for; e se matiza, também, pelas cores da esdrúxula fonte da qual se origina, vale dizer, a atividade licitamente desenvolvida, sob as ordens e exigências legais de toda a espécie, mesmo que a fonte próxima seja o próprio fato jurídico causador dos danos.

Em nossas sínteses, diríamos que na responsabilidade objetiva impura a pessoa que indeniza o faz sem que tenha necessariamente agido com culpa; indeniza-se por culpa de outrem. Já na objetiva pura, não interessa se há culpa de alguém, indeniza-se porque a lei assim o determina. No caso sob exame, falamos da teoria objetiva impura, por fato de terceiro. Não há culpa da CEF, mas esta indeniza, objetivamente, por culpa de terceiro por quem responde por força de lei.

Assim, para acionarem a CEF, os apostadores podem se valer da teoria da responsabilidade objetiva por fato de terceiro, nos moldes do art. 932, III, do CC, nestes termos vazados:

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"Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele".

Essa responsabilidade do comitente, por ato de seu cometido será objetiva, por força do que dispõe o art. 933 do CC, a saber:

"Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos."

A teoria da responsabilidade por fato de terceiro tem origem no Code Napoléon que, em seu art. 1.384 assim dispõe:

"On est responsable non seulement du dommage que l´´on cause par son propre fait, mais encore de celui qui est causé par le fait des personnes dont on doit répondre, ou des choses que l´´on a sous sa garde. (...)

Le père et la mère, en tant qu´´ils exercent le droit de garde, son solidairement responsables du dommage causé par leurs enfants mineurs habitant avec eux.

Les maîtres et les commettants, du dommage causé par leurs domestiques et préposés dans les fonctions auxquelles ils les ont employés;

Les instituteurs et les artisans, du dommage causé par leurs elèves et apprentis pendant le temps qu´´ils sont sous leur surveillance. [07]"

Ensina René Demogue [08] que a condição de preposto caracteriza-se essencialmente por Sua dependência, subordinação e obediência, necessárias à direção, supervisão e outras ordens do comitente. Após afirmar que são os prepostos quem representam uma pessoa de modo permanente, exemplifica com o agente de seguro, representante comercial, administrador etc.

O esforço argumentativo que se segue é no sentido de demonstrarmos que a CEF é responsável por ato da lotérica, porquanto esta agiu por conta e no interesse daquela.

Não teria a CEF como manter em todos os bairros de cada cidade do país aparato físico, tampouco pessoal suficiente concursado como empregados públicos, para se dedicarem à realização de apostas. Em face dessa carência técnica, física e financeira, a CEF delega a algumas sociedades empresárias o exercício da função de arrecadar e repassar o dinheiro das apostas, bem como registrá-las em sistema informatizado. Essas pessoas jurídicas empresárias são, em sua maioria, as conhecidas casas lotéricas, mas não as únicas. Sabemos também de alguns provedores de internet credenciados para receber apostas e efetuar descontos em boletos de mensalidade de prestação do respectivo serviço de acesso à internet.

Verificada que está essa necessidade da CEF de pulverizar os pontos de apostas pelas lotéricas espalhadas por todo o país, é ela, CEF, a responsável por atos de seus cometidos que, nesta qualidade, causarem danos a terceiros.

A jurisprudência pátria, inclusive, conhece que se pode estender a noção de preposto de uma pessoa jurídica a outra pessoa jurídica, senão vejamos:

"INDENIZATÓRIA. LOCAÇÃO DE IMÓVEL NO LITORAL. PAGAMENTO DA METADE DO ALUGUEL ANTECIPADO. INQUILINA QUE, NA DATA PREVISTA PARA O INÍCIO DO CONTRATO, DEPARA COM OUTRAS PESSOAS OCUPANDO O IMÓVEL. CELEBRAÇÃO DO CONTATO PELA CORRETORA DO IMÓVEL À REVELIA DA PROPRIETÁRIA, SEM PODERES PARA TANTO. RESPONSABILIDADE INDIRETA E OBJETIVA DA ADMINISTRADORA PELOS ATOS PRATICADOS POR SUA PREPOSTA, AINDA QUE TENHA HAVIDO ABUSO DE FUNÇÕES. ARTS. 932, III, C/C 933 DO CC.

1) Proprietária do imóvel que deve ser responsabilizada apenas pela devolução do valor do aluguel que recebeu, mesmo sem autorização, via depósito em conta corrente. Ausência de responsabilização pelos danos materiais ou morais sofridos pela autora, pois não houve culpa da dona do imóvel, que não havia dado poderes à corretora para celebrar contratos em seu nome.

2) Administradora de imóveis que, na condição de comitente da corretora, responde pela integralidade dos prejuízos suportados pela vítima, mesmo que tenha havido abuso de funções por parte da preposta, ficando-lhe assegurado o exercício de direito de regresso. (...)" (TJ/RS – 3ª t. rec. – Recurso Inominado n. 71002298297 – Rel. Eugênio Facchini Neto – j. 28.01.2010 – v.u).

Para os apostadores prejudicados é vantagem o ingresso de demanda em face da CEF, em razão de sua maior solvabilidade. Caberá então à CEF ressarcir-se junto à casa lotérica, sua cometida, conforme explanaremos a seguir.


5. O único documento válido é o comprovante de aposta: a alegação da própria torpeza confronta com o princípio da boa-fé

A CEF aduz que o único documento válido para legitimação do recebimento do prêmio é o comprovante de aposta, emitido em nome de uma única pessoa. Em outras palavras, para a CEF, o documento emitido pelas lotéricas pelos chamados bolões não tem nenhum valor jurídico. Ora, toma-nos de assalto uma tal informação, pois não era de sua ignorância que essa prática sempre existiu e, digamos com todas as letras, sempre lhe trouxe vultoso retorno. O que pretende a CEF agora, após por tantos anos ter se beneficiado das apostas feitas em bolões, negar-lhes reconhecimento?

Frente a tal argumento, em nosso entender completamente infundado, algumas palavras sobre o princípio da boa-fé objetiva devem ser trazidas.

A boa-fé objetiva é uma cláusula geral que determina um padrão ético, de comportamento a ser observado no caso concreto, tendo-se em vista o que se espera do homem mediano frente a cada situação, particularmente considerada. Não se leva em conta o estado psicológico do sujeito, mas se lhe exige que siga um padrão de conduta socialmente aceito e eleito como correto.

Sintetiza Guilherme Calmon Nogueira da Gama [09] que a boa-fé objetiva é parâmetro de correção de conduta leal, proba e honesta. Já a boa-fé subjetiva é considerada como estado anímico representado pela ignorância de determinado aspecto relevante da avença, proporcionando a crença pessoal de se estar agindo conforme ao direito.

Para identificarmos a boa-fé objetiva, devemos saber como o homem mediano agiria, como pensaria, o que dele se poderia esperar, em determinada situação, e de acordo com as circunstâncias que a envolvem, como idade, sexo, condição social, região do país etc. Respondendo a essas indagações, ou a outras análogas, é que encontraremos a definição de boa-fé objetiva e, como já podemos perceber, seu sentido poderá variar, de acordo com cada situação, concretamente considerada. Daí dizermos que a despeito de seu caráter principiológico, a boa-fé objetiva é também uma cláusula geral, cujo sentido fica na dependência de ser preenchido pelo intérprete, para possibilitar que o princípio maior, da eticidade, seja atendido.

Deste modo, como cláusula geral, a boa-fé objetiva apresenta sentido móvel, permitindo que o magistrado o ajuste às particularidades do caso concreto, tais como o local onde se entabula o negócio, a natureza do contrato, bem como o grau de instrução dos contratantes.

Segundo Judith Martins Costa [10], a boa-fé objetiva é um mandamento de cooperação intersubjetiva e de consideração aos interesses do parceiro contratual. Podemos dizer que se trata de um padrão de conduta, de um comportamento reto, leal, honesto e de colaboração, que atenda às justas expectativas da outra parte.

Conforme nos ensinam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho [11], ao lado do dever jurídico principal, consubstanciado em prestação de dar, fazer ou não fazer, existem os deveres laterais, anexos ou satelitários, como querem os professores citados, decorrentes da boa-fé objetiva, e consistentes em lealdade, confiança, assistência, informação, confidencialidade, sigilo, dentre outros.

Esse princípio concretiza o princípio da eticidade, que, ao lado da operabilidade e sociabilidade, norteia todo o CC.

Do princípio da boa-fé objetiva decorrem outros subprincípios, dentre os quais de perto nos interessa o tu quoque. É expressão retirada da conhecida frase Tu quoque Bruti filli mi? – até tu Brutus, meu filho? – proferida por Júlio César.

Trata-se da vedação pelo direito da utilização de uma faculdade, que foi obtida ilicitamente. Ou seja, aquele que infringiu uma norma jurídica não pode invocá-la em proveito próprio.

Configura-se na proibição de o interessado valer-se da própria torpeza para pleitear direitos.

Em arrimo ao entendimento aqui esposado, trazemos à lume o seguinte julgado:

"NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO CUMULADA COM REPETIÇÃO DE INDÉBITO. APELAÇÃO CÍVEL. Restando comprovado que a autora se beneficiou com o valor do empréstimo em discussão e, considerando que o banco responde pelos atos praticados por seus prepostos no exercício do trabalho que lhes competir, conforme artigo 932, inciso III, do CPC, a manutenção da sentença, que julgou parcialmente procedente o pedido, é medida que se impõe. Apelações desprovidas." (TJ/RS – 11ª C. Civ. – A.C. 70031598337 – Rel. Des. Voltaire de Lima Moraes – j. 25.11.2009 – v. u.).

Entendido que inexiste arrimo para que alguém se socorra da própria torpeza, analisemos, no tópico que se segue, a situação da CEF, caso seja condenada a prestar a indenização aos apostadores do bolão.

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Sobre o autor
Fernando Gaburri

Graduado pelo Instituto Vianna Júnior de Juiz de Fora/MG. Mestre em direito civil comparado pela PUC/SP. Procurador do Município de Natal/RN. Professor da FARN e professor convidado em cursos de pós-graduação e em congressos jurídicos. Autor de obras e artigos jurídicos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GABURRI, Fernando. "Ganhamos mas não levamos".: Análise jurídica do caso dos apostadores da mega sena de Novo Hamburgo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2432, 27 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14424. Acesso em: 24 abr. 2024.

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