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O princípio da aptidão para a prova e a inversão do ônus probatório no processo do trabalho

02/03/2010 às 00:00

Resumo:


  • A legislação estabelece diretrizes gerais para a distribuição do ônus da prova, mas na prática trabalhista, a dinâmica de atribuição desse ônus é influenciada pelo princípio da aptidão para a prova, que pode resultar na inversão do encargo probatório.

  • O empregador, devido aos seus poderes de direção e fiscalização, geralmente tem o dever de preconstituir provas das obrigações trabalhistas cumpridas, o que justifica a inversão do ônus da prova em favor do empregado em muitos casos.

  • A aplicação da inversão do ônus da prova no Processo do Trabalho visa garantir a isonomia substancial entre as partes, protegendo a parte com maior dificuldade em provar seu direito e assegurando a efetividade do contraditório.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

É fundamental saber que relativamente à distribuição do ônus da prova, a legislação de regência traça tão-somente diretrizes gerais para a orientação básica dos atores processuais. Assim é que a atenuação dessas diretivas, fundada no princípio da aptidão para a prova, vem a cada dia ganhando destaque no foro trabalhista.

Dito de outro modo, enquanto os artigos 818 da CLT e 333 do CPC disciplinam a distribuição estática do ônus da prova, a práxis forense preconiza a repartição dinâmica do encargo probatório, para que por via dela se evitem julgamentos injustos, nos quais uma parte, não obstante possuir razão em uma contenda, veja inviabilizada a obtenção do bem da vida perseguido judicialmente em virtude da impossibilidade de produzir uma prova para ela difícil, improvável ou mesmo impossível (probatio diabolica), enquanto que a contraprova do seu adversário seria de tranquila veiculação.

Ao contrário do que se possa imaginar, o princípio da aptidão para a prova, do qual decorre a técnica de inversão do encargo probatório, não se trata de tema novo na doutrina, valendo realçar, no pertinente, a lição de César P.S Machado Jr, que bebendo nas fontes de Carnellutti, afirma que o processualista italiano aludia "à conveniência de atribuir a prova à parte que esteja mais provavelmente em situação de dá-la." [01]

Dessarte, numa perspectiva menos dogmática e mais racional, o juiz deverá, em algumas situações emblemáticas, atribuir o ônus da prova àquela parte que esteja em melhores condições de produzi-la, independentemente do balizamento dos artigos 818 da CLT e 333 do CPC.

A utilização desta técnica dinâmica de repartição do ônus da prova no Processo do Trabalho baseia-se, no mais das vezes, na constatação de que o empregador, em virtude de deter na relação de emprego os poderes de direção e de fiscalização, possui a obrigação de previamente constituir provas do desvencilhamento das obrigações laborais a que esteja jungido.

A bem da verdade, nem mesmo os positivistas poderiam, atualmente, refutar a óbvia conveniência de adoção pretoriana desta conduta. Ocorre que o artigo 6º, VIII, do CDC, elenca como um dos direitos básicos do Consumidor a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências.

A questão a ser enfrentada, assim, é a da aplicabilidade, ou não, desta norma no âmbito do Processo do Trabalho. A resposta me parece trivial, já que existe quanto ao tema uma notória lacuna axiológica na processualística laboral, que pode e deve ser colmatada pela disposição consumerista.

Quanto ao afirmado no parágrafo anterior, aliás, não custa destacar a Súmula 66 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, a dizer que "diante do atual estágio de desenvolvimento do processo comum e da necessidade de se conferir aplicabilidade à garantia constitucional da duração razoável do processo, os artigos 769 e 889 da CLT comportam interpretação conforme a Constituição Federal, permitindo a aplicação de normas processuais mais adequadas à efetivação do direito. Aplicação dos princípios da instrumentalidade, efetividade e não-retrocesso social".

À guisa de argumentação, ainda que o artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor não existisse ou não pudesse ser aplicado no âmbito processual trabalhista, o princípio da aptidão para a prova com o seu consectário da inversão do encargo probatório poderiam ser reverenciados pelo Juiz do Trabalho. Colho, a propósito, as notáveis palavras de Eduardo Cambi:

"O legislador brasileiro, com auxílio do juiz, tem se valido desta técnica, tal como prevê o artigo 6º, VIII, do CDC. Entretanto, essa técnica pode ser utilizada pelo juiz, desde que haja critérios para estabelecer uma discriminação justa, mesmo na ausência de uma lei que expressamente consagre a inversão do ônus da prova, por se tratar de um modo de concretização do princípio constitucional da isonomia, em sentido substancial, e de efetivação da garantia constitucional do contraditório." [02]

Aceita, seja legal ou doutrinariamente, a incidência da inversão do ônus da prova no Processo do Trabalho, resta assentar as condições básicas do seu aproveitamento. Assim, para que o ônus da prova seja invertido, o juiz deverá, segundo as regras ordinárias de experiências, tomar a alegação da parte por verossímil ou enquadrá-la como hipossuficiente (artigo 6º, VIII, do CDC). É de se discutir, nesse contexto, o que se deve entender por regras ordinárias de experiências, verossimilhança e hipossuficiência.

Segundo o artigo 335 do CPC, em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial. Este preceito não passa da tradução legal da antiga máxima de que o ordinário se presume e o extraordinário se comprova.

As regras da experiência comum povoam a cabeça do julgador, que, com o correr dos tempos, estribado na sua experiência pessoal e profissional, adquire uma percepção bastante sensível e apurada da maneira como os fatos do cotidiano trabalhista se desenrolam.

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Já as regras da experiência técnica, muito embora a rigor não se insiram no universo cognitivo do julgador, geralmente formado tão-somente em direito, podem ser apreendidas pela repetição de casos corriqueiros como aqueles relativos a insalubridade, periculosidade ou redução da capacidade laborativa do trabalhador, ressalvada, sempre, a colaboração de um perito da área, cuja atividade será imprescindível para que a causa seja adequadamente solucionada. Sintetizando, quando a matéria depender de prova técnica, o fundamental para o desate do imbróglio será a realização de perícia, podendo as máximas da experiência técnica apreendidas pelo magistrado no exercício da sua profissão serem utilizadas concomitantemente, até mesmo para fins de inversão do ônus da prova.

De sua vez, a verossimilhança deve considerar, dentre outros requisitos: a) o valor do bem jurídico ameaçado de lesão; b) a dificuldade de se provar a alegação; c) a credibilidade, de acordo com as regras de experiência, da alegação. [03]

Por óbvio, a verossimilhança não deve se assentar em um juízo absoluto de verdade, até porque este é impossível de ser alcançado na sua máxima complexidade, ainda que em procedimento de cognição exauriente. Aliás, se a verossimilhança é um elemento de inversão do ônus da prova, é porque ela não se mostra plena enquanto critério de verdade. Deve provir, portanto, da confiabilidade da arguição, lastreada, no mais das vezes, nas máximas da experiência, subministradas pelo que ordinariamente acontece.

A hipossuficiência, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não se trata de um conceito propriamente econômico, sendo relativo, no contexto probatório, à fragilidade probante daquele a quem incumbiria, a princípio, dar a prova em juízo. Não se pode fechar os olhos, entretanto, para o fato de que não raro a hipossuficiência econômica afetará a capacidade comprobatória do agente, que reprimido pelas vicissitudes financeiras experimentadas ao longo da vida, nem sempre possuirá condições de carrear a juízo um acervo consistente de provas.

Devidamente apresentadas essas imprescindíveis premissas, é chegado o momento de trazer a lume alguns exemplos jurisprudenciais de inversão do ônus da prova no Processo do Trabalho. Dois dos mais eloquentes deles estão catalogados nos incisos I e III da Súmula 338 do TST, a saber:

I - É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário.

III - Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir.

No primeiro caso, ainda que o réu se restrinja a negar o fato constitutivo do direito do autor, qual seja, a jornada por ele alegada na petição inicial, não se preocupando em esgrimar um outro que seja impeditivo, extintivo ou modificativo do interesse obreiro, deixando de trazer para os autos, caso mantenha mais de dez empregados, os cartões de ponto alusivos à jornada praticada pelo trabalhador, o ônus da prova lhe será dirigido por inversão típica.

Consoante pontuado algures, a utilização da técnica dinâmica de repartição do ônus da prova no Processo do Trabalho geralmente se baseia nos poderes de direção e de fiscalização que o Direito do Trabalho atribui ao empregador, situação esta que lhe impõe a obrigação a preconstituir provas, principalmente em situações que tais, onde o seu dever está expresso § 2º do artigo 74 da CLT. Desse modo, diante da notória aptidão do reclamado para a produção da prova, o encargo probatório ser-lhe-á direcionado, prevalecendo, caso dele não se desincumba, a jornada articulada na primígena.

Já na segunda hipótese, a jurisprudência parte da premissa de que um cartão de ponto contendo anotação invariável de jornada não se mostra digno de credibilidade, vez que as máximas da experiência, subministradas pelo que ordinariamente acontece, eloquentemente indicam que tais anotações sejam fraudulentas, tão-somente se prestando a sobreporem formas à realidade, em manifesta afronta a um dos mais reverenciados princípios de Direito Material do Trabalho.

Inúmeros outros exemplos poderiam ser apresentados. O fundamental nesta matéria, entretanto, é que o operador tenha em mente que a técnica de inversão do ônus da prova almeja transportar o processo do campo da igualdade formal para o da isonomia substancial, protegendo no plano prático e ético, em honra do contraditório, o interesse daquele que teria especial dificuldade em provar o seu direito.


Notas

  1. O ônus da Prova no Processo do Trabalho, 3ª ed., São Paulo: LTr, 2001, p. 145.
  2. Direito Constitucional à Prova no Processo Civil, 1ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 134.
  3. Nesse sentido, Luiz Guilherme Marinoni et al, in Código de Processo Civil Comentado Artigo por Artigo, 1ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 271.
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Sobre o autor
João Humberto Cesário

Juiz titular da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT), doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino, mestrando em Direito Ambiental, professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CESÁRIO, João Humberto. O princípio da aptidão para a prova e a inversão do ônus probatório no processo do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2435, 2 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14433. Acesso em: 9 dez. 2024.

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