RESUMO: O presente texto se destina a analisar a validade jurídica da atribuição conferida aos concessionários de serviço público de distribuição de energia elétrica por parte do Decreto n. 54.177, de 31 de março de 2009, do Estado de São Paulo, de responsabilidade tributária sobre o Imposto de Circulação de Mercadorias – ICMS incidente nas operações de comercialização de energia realizadas no ambiente de contratação livre – ACL.
Palavras-chave: Concessão de serviço público de distribuição de energia elétrica; comercialização de energia no ambiente de contratação livre – ACL; substituição tributária; Imposto sobre Circulação de Mercadorias - ICMS.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Responsabilidade tributária: vinculação ao fato gerador. 2.1. O instituto da substituição tributária: ligeira abordagem. 2.2. Comercialização de energia no ambiente de contratação livre – ACL e o papel do concessionário de distribuição de energia. 2.3. Inconstitucionalidade da substituição tributária lateral. 3. Serviço público federal: impossibilidade de interferência estadual. 4. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O Estado de São Paulo publicou, em 31 de março de 2009, o Decreto n. 54.177, que alterou a redação de artigos do Decreto n. 45.490, de 30 de novembro de 2000, que aprovou o Regulamento do ICMS, relacionados ao fornecimento de energia elétrica.
O artigo 425 do aludido Regulamento [01] veio a dispor que as concessionárias do serviço público de distribuição de energia passassem a ser responsáveis pelo lançamento e recolhimento do ICMS, mesmo quando o tributo incidisse nas operações de comercialização de energia elétrica realizadas no ambiente de contratação livre – ACL.
A eleição das concessionárias de serviço público de distribuição de energia elétrica como substitutas tributárias do ICMS incidente sobre a comercialização de energia no ACL será analisada sob duas perspectivas.
Em primeiro, sob o ponto de vista do Direito Tributário, verificar-se-á a validade jurídica da substituição tributária (mudança de sujeito passivo da obrigação tributária) instituída pelo Decreto n. 54.177/2009 do Estado de São Paulo.
Em segundo, sob o viés constitucional-administrativo, avaliar-se-á a validade jurídica da substituição tributária no que toca aos efeitos produzidos sobre a prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica.
A análise que se segue, portanto, é estritamente dogmática.
2. Responsabilidade tributária: vinculação ao fato gerador
Nos termos do art. 150, I, da Constituição Federal de 1988, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios "exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça". O § 7° desse mesmo art. 150, a sua vez, prevê que
lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.
Assim, segundo disposição constitucional expressa, todos os contornos para a exação tributária devem estar definidos em lei formalmente editada, inclusive a atribuição de responsabilidade de terceiro pelo pagamento de tributos (a chamada substituição tributária).
Nos termos do art. 121 do Código Tributário Nacional – CTN, sujeito passivo da obrigação tributária é a pessoa obrigada ao pagamento do tributo ou da penalidade, e possuirá a qualificação de contribuinte quando tiver relação pessoal e direta com o fato gerador (aufere renda, presta serviço, circula mercadoria, importa ou exporta produtos, promove a produção industrial, etc.) e de responsável quando, mesmo não possuindo relação pessoal direta com o fato gerador, haja sido indicado por lei.
O art. 128 do CTN complementa o conceito de responsável ao especificar que a indicação, por lei, de pessoa para figurar como substituto deve recair em quem esteja vinculado ao fato gerador da obrigação. Assim, não é qualquer pessoa que pode ser indicada por lei para ser responsável pelo crédito tributário: apenas poderá sê-lo aquele que possua vinculação com o fato gerador.
E o que é estar vinculado ao fato gerador da obrigação?
Para Amaro (2005, p. 312), "não é qualquer tipo de vínculo com o fato gerador que pode ensejar a responsabilidade de terceiro". Esse autor defende que, para ser possível a atribuição de responsabilidade tributária, "é necessário que a natureza do vínculo permita a esse terceiro, elegível como responsável, fazer com que o tributo seja recolhido sem onerar seu próprio bolso" [02].
De mais a mais, a atribuição da responsabilidade tributária apenas pode se dar por meio da edição de lei no sentido formal, nos termos do art. 97, III, do CTN.
Feita essa singela delimitação, cabe restringir a análise à substituição tributária, que é uma espécie de responsabilidade tributária, e possui duas modalidades.
A primeira modalidade é a substituição tributária regressiva, ou "para trás", que ocorre quando a legislação atribui a responsabilidade pelo recolhimento do tributo a pessoa que se encontra na fase final da cadeia econômica e em relação aos fatos geradores ocorridos nas fases anteriores.
Paulo e Alexandrino (2006, p. 149) pontuam que essa modalidade "é, na verdade, hipótese de diferimento de pagamento de tributo, ou seja, adiamento do seu recolhimento".
Ainda segundo Paulo e Alexandrino (2006, p. 149), a substituição tributária regressiva
existe quando o legislador, visando a conferir maior eficácia e segurança à fiscalização e arrecadação tributárias, especialmente nas cadeias de produção-circulação em que ocorre concentração (menor número de estabelecimentos na ponta final da cadeia), prevê que a obrigação de pagar os tributos relativos às etapas anteriores do ciclo seja do estabelecimento que realize etapa posterior.
Melo (2005, p. 166) possui percepção similar a respeito da substituição tributária regressiva:
Na substituição regressiva, a lei atribui a responsabilidade ao adquirente de uma determinada mercadoria, por razões de comodidade, praticidade ou pela circunstância de o real contribuinte não manter organização adequada de seus negócios.
Nas operações com sucata (restos, resíduos e fragmentos de metais, tecidos, vidros, etc.), é comum exigir-se o ICMS em etapa posterior, em lugar do próprio sucateiro (contribuinte). Caracteriza-se o fenômeno do diferimento, ou seja, a postergação da exigência tributária para momento ulterior do ciclo mercantil (saída para outro Estado, saída para o exterior, entrada em estabelecimento industrial, etc.). O diferimento também poderá alcançar as operações de importação.
Essa primeira modalidade encontra amparo normativo direto no próprio art. 128 do CTN: de fato, a pessoa que se encontra na fase final da cadeia econômica está vinculada, de forma indireta, aos fatos geradores ocorridos nas fases anteriores.
A segunda modalidade é a substituição tributária progressiva, ou "para frente", que é mais polêmica em razão do surgimento da responsabilidade e do crédito tributários antes da concretização do fato gerador, cuja ocorrência se considera presumida [03].
Como na substituição tributária "para frente" a constituição do crédito tributário ocorre em momento anterior à ocorrência do fato gerador, que se presume ocorrido, deverá haver a restituição dos valores pagos caso o fato gerador, por qualquer razão, não venha a se concretizar.
O amparo normativo para a substituição tributária "para frente" se encontra no art. 128 do CTN e no art. 150, § 7° [04], da Constituição Federal de 1988. Após severa polêmica doutrinária e jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou sobre a constitucionalidade da substituição tributária progressiva, tendo assim decidido:
É constitucional o regime de substituição tributária ‘para frente’ – em que se exige do industrial, do atacadista, ou de outra categoria de contribuinte, na qualidade de substituto, o recolhimento antecipado do ICMS incidente sobre o valor final do produto cobrado ao consumidor, retirando-se do revendedor ou varejista, substituído, a responsabilidade tributária [05].
Enfim, o que importa salientar é que, tanto na substituição tributária regressiva quanto na progressiva, a eleição do responsável tributário deve recair em quem possua vinculação com o fato gerador, vinculação essa entendida no sentido de que a natureza do vínculo lhe permita recuperar integralmente os valores pagos em substituição. Ademais, ainda será necessário que a eleição do responsável tributário se dê por meio de lei formalmente editada.
2.2. Comercialização de energia no ambiente de contratação livre – ACL e o papel do concessionário de distribuição de energia
A Lei n. 10.848, de 15 de março de 2004, instituiu a comercialização de energia elétrica mediante contratação regulada – reservada para a aquisição de energia pelos concessionários de distribuição de energia elétrica por meio de leilões – e mediante contratação livre.
Nos termos do art. 47 do Decreto n. 5.163/2004, a comercialização de energia no ambiente livre, que é a que interessa para a presente análise, ocorre mediante operações entre agentes concessionários, permissionários e autorizados de geração, comercializadores, importadores e exportadores de energia e consumidores livres. Nesse ambiente, como o próprio nome denuncia, se pratica a livre negociação de energia elétrica.
Cabe assinalar que a Lei n. 9.648, de 27 de maio de 1998, já houvera inaugurado a livre negociação de energia elétrica, ainda que sua implementação estivesse prevista para ocorrer gradualmente, e dissociado a comercialização de energia elétrica do acesso e do uso dos sistemas de transmissão e de distribuição.
Assim, desde a Lei n. 9.648/1998, a aquisição de energia elétrica é independente de seu transporte e deve ser contratada separadamente. São necessárias, em regra, duas contratações: a de compra e venda de energia elétrica, entre o consumidor livre e o gerador, e a contratação do acesso e do uso dos sistemas de transporte de energia. É o que prevê, atualmente, aliás, o art. 54, § 2°, do Decreto n. 5.163/2004.
O que deve ficar claro, então, é que (i) os concessionários de distribuição de energia elétrica integram necessariamente o ambiente de contratação regulada e, assim, adquirem energia exclusivamente por meio dos leilões promovidos pelo Governo Federal, e que (ii) a comercialização de energia elétrica no ambiente livre é realizada exclusivamente entre agentes concessionários, permissionários e autorizados de geração, comercializadores, importadores e exportadores de energia e consumidores livres.
É importante realçar que a relação entre as distribuidoras de energia e o ambiente de contratação livre é exclusiva quanto ao transporte da energia transacionada nesse ambiente.
De fato, os agentes geradores ou consumidores livres que possuam ponto de conexão na rede de distribuição deverão firmar com o concessionário de serviço público de distribuição de energia elétrica o contrato de conexão ao sistema de distribuição – CCD e o contrato de uso dos sistemas de distribuição – CUSD.
Assim, no ACL, o concessionário de serviço público de distribuição de energia elétrica apenas atua na conexão ao Sistema Interligado Nacional – SIN do vendedor e do comprador da energia.
No entanto, a energia entregue aos consumidores livres não é fornecida comercial nem juridicamente pelo distribuidor, mas pelo vendedor de energia no ACL, o qual pode ser produtor independente de energia, autoprodutor ou simplesmente comercializador.
2.3. Inconstitucionalidade da substituição tributária lateral
Diante dos elementos de comercialização de energia apresentados no item anterior, observa-se, em primeiro, que as distribuidoras de energia não integram a cadeia econômica de circulação de energia em relação às contratações realizadas no ACL.
Isso porque, como visto, os contratos de comercialização de energia são firmados e cumpridos pelos agentes de geração, comercializadores e consumidores livres. O único papel da distribuidora nessa relação de circulação de energia elétrica, como já afirmado, é a participação no seu transporte.
Ademais, exatamente por não fazer parte da cadeia econômica da comercialização de energia no ambiente livre, o concessionário de serviço público de distribuição de energia elétrica, nessa situação de substituto tributário do ICMS incidente sobre as operações de comercialização de energia no ACL, incorrerá no risco de suportar o custo do tributo, sem que possa agir, de forma direta, com a finalidade de se ressarcir quanto ao tributo pago.
Caso não haja o adimplemento voluntário por parte do substituído, a única via existente para a recuperação dos valores pagos a título do ICMS em substituição será o ingresso em juízo.
Ao que se observa, portanto, do ponto de vista da legislação tributária, a eleição, pelo fisco estadual, dos concessionários de distribuição como substituto tributário do ICMS incidente sobre a comercialização de energia elétrica no ACL violaria os artigos 150, I e § 7°, da Constituição Federal e os artigos 97, III, 121 e 128 do CTN.
A violação aos artigos 150, I e § 7°, da Constituição Federal e ao artigo 97, III, do CTN estaria configurada em razão de que a eleição dos concessionários de distribuição como substitutos tributários não se deu por lei formalmente editada, mas por decreto do Poder Executivo.
A violação ao artigo 150, § 7°, da Constituição Federal e aos artigos 121 e 128 do CTN estaria presente, a uma, frente à constatação de que as concessionárias de distribuição não possuem nenhuma relação com a cadeia econômica de comercialização de energia no Ambiente de Contratação Livre – ACL, e, a duas, dada a impossibilidade de os concessionários de distribuição possuírem mecanismo, de aplicação direta sobre os substituídos, de recuperação dos valores pagos em substituição.
A propósito, o que se observa é que a legislação do Estado de São Paulo, longe de estabelecer uma substituição tributária regressiva ou progressiva, terminou por criar, por meio de decreto, uma substituição tributária lateral, ao atribuir a responsabilidade tributária a uma pessoa que se encontra ao lado da cadeia econômica sobre a qual incide o tributo.
3. Serviço público federal: impossibilidade de interferência estadual
A Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL desenvolveu estudo, consolidado na Nota Técnica nº 357/2009-SFF/ANEEL, no qual se constata que a substituição tributária instituída pelo Estado de São Paulo tem o efeito, em relação às concessionárias de serviço público de distribuição de energia elétrica, de majorar a base de cálculo das contribuições sociais ao PIS/PASEP e à COFINS e, assim, aumentar o custo tributário.
Daí decorre que as concessionárias de distribuição vivenciarão o aumento de seu custo tributário, o que fatalmente conduzirá a pleitos de recomposição tarifária.
Nesse momento é que se pode fazer uma conexão em linha direta da instituição da substituição tributária em questão com o aumento das tarifas de energia elétrica para o consumidor cativo, por força do que do que dispõe o art. 9°, § 3°, da Lei n° 8.987/1995.
§ 3º Ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso.
Assim, um efeito secundário da substituição tributária lateral em questão é que, com o aumento do custo tributário para a atividade de distribuição de energia elétrica no Estado de São Paulo, as concessionárias desse serviço público fatalmente requererão a realização de revisão tarifária extraordinária com vistas à manutenção do equilíbrio econômico e financeiro da concessão. Na seqüência, é provável a repercussão econômica sobre as tarifas de uso da rede e de fornecimento de energia elétrica.
Partindo dessas constatações técnico-econômicas, faz-se pertinente avaliar a juridicidade das alterações promovidas na legislação tributária do Estado de São Paulo frente à competência privativa da União para legislar sobre energia elétrica e exclusiva para gerir os contratos de concessão de serviço público de distribuição de energia.
De um lado, nos termos do art. 21, XII, "b", da Constituição Federal de 1988, compete exclusivamente à União explorar, seja diretamente, seja mediante concessão, permissão ou autorização, os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água.
Mesmo após a abertura do setor de energia no Brasil, a atividade de distribuição, juntamente com a de transmissão, permaneceu ostentando a qualificação de serviço público, notadamente em razão das características de monopólio natural. A propósito, a Lei n. 10.848, de 15 de março de 2004, em seu art. 1°, § 2°, manteve a atividade de distribuição como serviço público.
A execução da atividade de distribuição, a sua vez, não tem sido feita diretamente pela União, mas, em regra, mediante concessão e, excepcionalmente, mediante permissão ou autorização. Mesmo quando a atividade de distribuição de energia é executada por entes estatais, tal se dá por meio da assinatura de contrato de concessão entre a União e o ente estatal.
De outro lado, em complemento à competência exclusiva para explorar ou promover a exploração dos serviços e instalações de energia elétrica, a União possui competência privativa para legislar sobre energia.
Nesse particular, é importante registrar que a competência legislativa para legislar sobre energia apareceria mesmo como um complemento da competência material para explorar os serviços e instalações de energia: é que, possuindo o contrato de concessão natureza híbrida, ou seja, estatutária e contratual, os elementos estatutários são definidos unilateralmente pelo Poder Concedente, no exercício de sua competência legislativa (art. 22, IV, CF/88).
Por fim, cabe ressaltar que a competência material exclusiva e a competência legislativa privativa da União refletem a opção do constituinte pelo federalismo dual, no qual as faixas de atribuições dos entes da federação são definidas de forma segmentadas, diferentemente com o que ocorre com o modelo de federalismo de cooperação, em que há uma verdadeira comunhão de competências legislativas e materiais por parte dos distintos entes da federação (BULOS, 2009).
No que importa, a competência da União para gerir o serviço de distribuição de energia e para legislar sobre energia é uma clara opção da CF/88 a respeito da adoção do federalismo dual. Assim, resulta evidente que sobre tais faixas de competência atribuídas à União não deve haver qualquer interferência por parte dos demais entes políticos.
Outro ponto que merece ser considerado é que a definição da política tarifária no setor de energia é um desdobramento da competência da União para gerir o serviço público de distribuição e legislar sobre ele. Tanto é assim que o art. 175, parágrafo único, da CF/88 prevê que lei disporá, entre outros elementos, sobre política tarifária.
A propósito, pronunciando-se sobre a questão que ora vem sendo enfrentada em tese, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de reconhecer a impossibilidade de os Estados membros interferirem nos serviços públicos de competência da União e nas relações jurídico-contratuais a eles relativas, como é o caso dos contratos de concessão [06][07].
Fica bastante claro, portanto, que o efeito produzido pela legislação do ICMS do Estado de São Paulo, acima descrito, sobre os contratos de concessão de distribuição representa a subversão do modelo de federalismo dual previsto constitucionalmente para a gestão do serviço público de distribuição e para a competência legislativa da União para legislar sobre energia e sua política tarifária.
Assim, sob esse ponto de vista, o Decreto n. 54.177, do Estado de São Paulo, seria inconstitucional, por violação aos artigos 21, XII, "b", 22, IV, e 175, parágrafo único, da Constituição Federal.