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Na rota da violência: crianças em contexto armado

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Canalização cultural, subjetividade e a utilização de crianças no crime

Sob o ponto de vista psicológico, é interessante analisar os dados das pesquisas anteriormente descritas com base na compreensão dos motivos e significados que orientam criança, adolescentes e adultos, nesses contextos de violência, em suas relações uns com os outros. Para tanto, é necessário articular elementos das dimensões coletiva e individual, por meio da análise das interações sociais, das narrativas levantadas a partir das entrevistas com os sujeitos, de forma a destacar a cultura como elemento integrante do sistema de funções psicológicas desenvolvidas pelo indivíduo na organização histórica de seu grupo social, conforme destacado por Valsiner (2007). Sob esse ponto de vista, a cultura oferece aos indivíduos significados historicamente localizados, coletivamente negociados, o que estabelece limites e possibilidades para as suas ações. Apesar disso, cada pessoa, ao reconstruir estes significados, ao criar suas versões pessoais e externalizá-las, pode superar os supostos limites e ampliar as possibilidades, agindo de acordo com suas próprias orientações para objetivos e crenças (Branco, 2003, 2006), que podem ser distintas daquelas que predominam nos contextos socioculturais em que a pessoa está inserida.

A concepção co-construtivista enfatiza os aspectos dinâmicos e processuais da construção da subjetividade de forma descentrada, constituída e transformada continuamente nos sistemas culturais que a envolvem, em articulação com o caráter ativo do sujeito em sua capacidade de influir decisivamente nas construções de suas versões pessoais e da sociocultura (Valsiner, 2007). Ao analisar a narrativa de crianças e adolescentes levantadas pelas pesquisas anteriormente mencionadas, busca-se compreender a articulação conjunta do papel ativo do sujeito e a importância da cultura coletiva na construção da subjetividade e da ação (Valsiner 1998, 2007). Para isto, é necessário identificar e analisar o uso de significações (representações) coletivas para a construção do próprio sistema de significados durante as vivências, pessoais e coletivas, no contexto sociocultural em que cada qual se insere. De uma perspectiva dialógica indivíduo-sociedade (Gone, Miler & Rappaport, 1999; Hermans, 1996; Hermans, Kempen & Van Loon 1992; Sampson, 1985), a pessoa vai se constituindo em um processo dinâmico e fluído que prevê a ação conjunta de processos que levam à auto-organização e à inovação, ou desenvolvimento.

Na perspectiva adotada, utiliza-se um modelo bidirecional, co-construtivista de desenvolvimento no qual instrumentos de mediação semiótica coletivos são percebidos como guias sociais, que permitem a construção pessoal de significados, ao mesmo tempo em que possibilitam a modificação das práticas e bens simbólicos oferecidos pela cultura coletiva (Valsiner, 1998).

Os dados anteriormente apresentados indicam o quanto a conceituação (e significação) de infância e dos motivos que levam crianças e adolescentes a aderirem a grupos criminosos é dependente do contexto sociocultural. Os motivos que são expressos pelos sujeitos para sua adesão aos grupos seguem lógicas semelhantes. Machel (1996), quando se refere às crianças em conflitos armados, relata que a busca pela sobrevivência é o principal motivo. De fato, em países devastados por guerras civis, muitas vezes envolvendo genocídio e extermínio étnico, não há muito espaço para outras motivações que não estejam ligadas à própria sobrevivência. No entanto, existem narrativas que expressam motivos diferentes como a vontade de lutar por causas sociais ou religiosas, conforme podem ser encontradas nas informações trazidas por Machel no mesmo relatório.

Diferente cenário, no entanto, encontra-se no contexto de utilização de crianças nas organizações criminosas. A pesquisa conduzida pela equipe do Observatório de Favelas (2006) informa que existem alguns paradoxos que foram levantados a partir das entrevistas realizadas. Os três principais motivos indicados pelos participantes da pesquisa para a adesão de adolescentes e crianças ao tráfico de drogas foram: (1) ganhar muito dinheiro, 33%; (2) ajudar a família, 23%; (3) dificuldade em conseguir qualquer outro emprego, 9.1%. A soma percentual dessas categorias perfaz um total de 65.1% das respostas dos entrevistados. É possível perceber que os principais motivos apresentados são de ordem econômica e diretamente ligados aos canalizadores culturais referentes ao consumo de bens e serviços. Existe, portanto, uma grande expectativa em alcançar autonomia econômica.

No entanto, os dados apresentados pelo Observatório de Favelas (2006) indicam que podem existir alguns mitos com relação às atividades do tráfico de drogas, como por exemplo que todo e qualquer integrante desses grupos criminosos ganha muito dinheiro. O levantamento realizado durante a pesquisa revela que a renda média de, aproximadamente, 75% dos entrevistados não ultrapassa os 3 salários mínimos. Para tanto, suas atividades são exercidas em péssimas condições, conforme relataram 60% dos sujeitos que trabalham, por exemplo, mais de 10 horas por dia, com escalas de serviço que podem variar de 12 a 24 horas, sem descanso ou garantias adicionais.


Escola e trabalho

A análise de entrevistas (Observatório de Favelas, 2006) também revela que a dificuldade para estudar não foi um motivo relevante para os sujeitos, já que apenas 1.3% deles indicaram esse item como razão pela qual aderiu às organizações criminosas. Este é um aspecto interessante, pois, diz a referida pesquisa, é freqüente que se atribua à falta de oportunidade para ingresso na escola uma das causas para a adesão de crianças ao tráfico de drogas. Dowdney (2003) argumenta que existe, nas comunidades, uma percepção geral de que o tráfico é mais atraente em razão da ausência de possibilidades alternativas de emprego, de ascensão social, de status e de conseguir recursos financeiros. Nas palavras de um morador de favela:

É a falta de esperança porque é tudo difícil, já moram num lugar que não é nada bom [...] aí já tem aquela convivência [com os traficantes...] na visão deles eles acham que tráfico é a opção mais fácil. (Dowdney, 2005, p.123)

Esse dado é especialmente relevante, pois as perspectivas futuras e os valores assumidos no processo decisório são reguladores da evocação de possibilidades de ação (Valsiner, 2007). A exigüidade de perspectivas futuras colabora para o intenso quadro de privação de participação em diferentes referenciais simbólicos que poderiam regular uma diversidade maior de possibilidades de ação. Nesses contextos, nem a educação formal, nem a família conseguem indicar possibilidades futuras promissoras. As relações dos entrevistados com o espaço público demonstram que a falta de perspectiva, presente em suas narrativas, são elementos fundamentais para a compreensão da fixação nas ações de curto prazo em comparação com planos e possibilidades futuras de médio e longo prazos.

Também parece haver confusão no que diz respeito à questão laboral, pois quando quase 10% dos sujeitos levanta a dificuldade de conseguir emprego como motivo para sua iniciação nas atividades criminosas, se considerada a sua idade de entrada nas organizações criminosas, encontra-se um novo paradoxo. No Brasil, o trabalho é expressamente proibido pela Constituição Federal até a idade de 16 anos, admitindo-se a situação de aprendiz a partir dos 14 anos. É sabido, no entanto, que, na prática, não há espaço no mercado de trabalho formal antes dos 18 anos de idade por causa do excesso de adultos em condições de serem empregados. Especialmente quando consideradas as condições especiais que devem ser oferecidas ao adolescente e a proximidade da apresentação para o serviço militar, tudo isto podendo ser visto como uma desvantagem pelo empregador. Deve-se considerar que essa foi uma opção realizada pelos legisladores brasileiros: crianças devem freqüentar a escola ao invés de trabalhar. No entanto, a escola, sua importância e a suposta influência positiva para evitar a adesão de crianças às organizações criminosas do tráfico de drogas não se fez visível nas narrativas dos sujeitos. Este "silêncio" em relação ao papel da escola em suas vidas, ou da possível contribuição que a educação possa oferecer em contraposição às ofertas das organizações criminosas, é suficiente para indicar que são necessárias investigações adicionais para desvelar os elementos encobertos pelo silêncio. Os dados são alarmantes (Observatório de Favelas, 2006) no que tange aos índices de abandono escolar (93%), o uso de drogas (89%) e a idade em que predomina o ingresso nas quadrilhas (46% entre 11 e 14 anos). No entanto, quando levantam as dificuldades para deixar o tráfico, alegam a baixa escolaridade, talvez fazendo referência formal ao discurso social que vincula as oportunidades de trabalho ao grau de estudo atingido. É necessário, portanto, investigar com profundidade as circunstâncias que contextualizam o abandono escolar nessa população.

Todas as pesquisas anteriormente discutidas, dão conta que existem certos fatores de ordem subjetiva tais como "adrenalina", "sensação de poder", e o "prestígio" que estão sempre presentes nas narrativas de integrantes dessas organizações, quando se expressam sobre os motivos que os mantém em atividade. Uma das narrativas mais freqüentes se relaciona à posse e utilização de armas de fogo pelas crianças e adolescentes, como anteriormente descrito. Esses fatores de ordem subjetiva funcionam, em sua expressão coletiva, como canalizadores culturais. O "prestígio" parece ser o exemplo mais claro, pois depende das significações de um coletivo de pessoas e pode representar o valor relativo que determinado indivíduo e suas ações alcançam na avaliação dos demais integrantes do grupo.

As canalizações culturais se evidenciam quando contextos extremamente carentes de todo tipo de recurso são analisados. A chave para o entendimento dessa canalização não consiste em se analisar o grau da carência de recursos, mas sim a forma como os indivíduos e a coletividade significam a carência. As pesquisas informam que, na interpretação dos entrevistados, eles se consideraram alvo de injustiças, que são moduladas por um intenso sentimento coletivo de falta de perspectiva. A importância dessa observação se baseia no fato de que significações como esta podem servir de razão e de elemento de justificativa para as ações do indivíduo: baseia sua motivação e argumentos na reciprocidade em relação àqueles que perpetram as injustiças contra ele. Em nível da subjetividade, as mesmas experiências podem assumir significados diferentes dependendo dos contextos e das próprias pessoas (Branco, 1993, 2006).

A injustiça serve como um dos princípios mediadores centrais para justificar as ações recíprocas de violência. Essa canalização cultural, que pode ter origem em situações reais, como a falta de investimentos do Estado na comunidade, pode também ser fruto de uma dificuldade de análise do contexto mais amplo, o que gera significações radicais e de qualidade reativa e imediatista, coletivamente construídas pelo grupo. Uma demora na construção de um hospital ou de uma escola pode ser, entretanto, legitimamente considerada ausência do Estado, ou indicador da pouca importância que determinada comunidade tem no conjunto do município.

A esse cenário se somam outras ameaças, que são explicitadas nas pesquisas e que, depois de significadas, passam a ter o seu valor simbólico próprio como canalizador cultural. Uma das mais lembradas pelos sujeitos é a violência policial e de grupos rivais.

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Um morador de favela afirma para Dowdney (2003, p. 83) que "a polícia não respeita ninguém que mora no morro. Quem mora no morro não presta. Para eles não existe trabalhador". Sobre esse tema, o Observatório de Favelas (2006) mostra que 67% dos entrevistados tiveram confrontos com a polícia e cerca de 53% com grupos rivais. Ademais, a ação das forças de segurança do Estado é percebida como ilegal e, freqüentemente, ligada à motivações escusas, relatadas por 73% dos entrevistados como prática de violência física e por 53% como extorsão. A ação policial é entendida como uma forma de abrir oportunidade para extorsão ao invés de realizar as detenções sob a lei e encaminhar as crianças e os adolescentes às instituições competentes. Esta forma de operar colabora decisivamente para que tanto as crianças, quanto adolescentes, não deixem os limites territoriais da comunidade, o que promove a territorialidade dos grupos, bem como o isolamento de seus intergrantes. Dowdney (2003) chegou à proporção semelhante quando levantou que 47% consideram os policiais corruptos e desonestos e que 17% consideram que a polícia não respeita os moradores. É isto que relata um morador de favela (p. 84):

A violência policial é uma coisa muito séria. Quando meu irmão era menor, se envolvia nisso [tráfico]. Ele tinha 12 anos. Não esqueço uma vez que o policial entrou na minha casa e meu irmão não estava. Ele virou para minha mãe e falou assim: ‘se eu pegar o seu filho na pista eu vou matar seu filho, vou encher a cara dele de tiro...

Tal percepção também encontra apoio nos dados que relatam as prisões em comparação com as ocorrências policiais registradas. Os relatos sobre as prisões são trazidos por cerca de 54% dos entrevistados, enquanto os registros de entrada nas instituições não atingem 29%. Esta diferença serve de indicador da possível veracidade dos relatos de extorsão. Por que as forças de segurança executariam prisões sem o devido registro?

Existe uma intensa territorialidade (Dowdney, 2003, 2005; Observatório de Favelas, 2006) na organização dos grupos criminosos, com restrições à possibilidade de deslocamento de pessoas nessas áreas. É comum que não seja permitida a permanência de transeuntes desconhecidos. Esta prática, em articulação à intensa violência das forças de segurança, à fragilidade do sistema familiar e ao abandono escolar cria um cenário que converge para o isolamento das crianças e adolescentes de outros referenciais interpretativos mais construtivos que poderiam, sob o ponto de vista coletivo, representar aumento das possibilidades de saída das atividades criminosas.

Até aqui, diversos canalizadores culturais foram levantados para mostrar as sugestões sociais (Valsiner, 2007) que podem influir na entrada de crianças e adolescentes nas organizações criminosas. Resta agora, analisar outros aspectos importantes da canalização cultural e o papel construtivo do próprio sujeito nos processos de envolvimento e participação em tais contextos.

Na pesquisa do Observatório de Favelas (2006), apenas 24,3% dos entrevistados se consideraram satisfeitos com a vida que levam no tráfico. Este é um dado relevante, pois indica um grau elevado de insatisfação e de reflexão acerca das suas condições de vida. As canalizações culturais que cooperam para a permanência dos sujeitos nas atividades criminosas concorrem com outras que influenciam no sentido contrário. Ao destacarem que desenvolvem a atividade criminosa para ajudar a família, isso não implica, necessariamente, que a ajuda seja bem recebida quando o grupo familiar toma conhecimento de que o sustento provém do crime, por exemplo. Esses conflitos também se constituem em elementos da elaboração pessoal e coletiva e do embate de argumentações e fatores emocionais que podem ser relevantes quando se deseja promover a saída de crianças e adolescentes das atividades criminosas. A pesquisa também informa que, por ocasião do término do levantamento de dados, mais de 40% dos sujeitos entrevistados haviam deixado, voluntariamente, as atividades criminosas. Apesar do cuidado que este tipo de dado possa inspirar, é claro que revela uma disposição ativa dos sujeitos em refletir sobre os problemas inerentes a sua situação, levando-os a tomar, de forma autônoma, alguma medida para solucioná-los. Dowdney (2003, p. 219) revela o que, nas palavras de um morador de favela, falta para que seja possível retirar crianças e adolescentes do tráfico: "Tá faltando pessoas que trabalhem com projetos na comunidade, ouvir a comunidade" (grifo nosso).

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Sobre os autores
Sergio Fernandes Senna Pires

Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados, Psicólogo, Bacharel em Ciências Militares e Doutor em Psicologia pela Universidade de Brasília.

Angela Uchoa Branco

Doutora em Psicologia, Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, coordenadora do Laboratório de Microgênese nas Interações Sociais e pesquisadora do CNPq.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Sergio Fernandes Senna ; BRANCO, Angela Uchoa. Na rota da violência: crianças em contexto armado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2447, 14 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14507. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Originalmente publicado em "Athenea Digital", v. 13, pp. 153-169, 2008.

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