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Mínimo existencial e patrimônio mínimo.

O equívoco da pré-constitucionalidade

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13/03/2010 às 00:00
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4. A AMBIGUIDADE PRÉ-CONSTITUCIONAL

Superadas as incursões preambulares, cumpre rumar ao âmago do questionado. Todavia, é preciso que se tenha em mente que as colocações até aqui expressas não devem ser compreendidas para fora de um contexto constitucional. Impende, assim, não perder a bússola da teoria das constituições como orientação nas considerações tecidas, de forma a alinhavar os conceitos e críticas a fim de amplo entendimento do tema.

Amplitude de compreensão, que não dispensa questionamentos e posicionamento crítico.

Não se almeja, porém, que o leitor tome partido deste ou daquele entendimento. O que se intenta aqui é suspender o véu por sobre as teorias que se põem a defender um patrimônio mínimo ou um mínimo existencial. Para além do discurso, é preciso que se as interroguem de sua natureza, fundamento e objetivo. E neste nada modesto objetivo, as linhas têm continuidade.

Ora, dizer que o mínimo existencial é uma categoria de direitos pré-constitucionais é dizer que sua existência precede a própria Constituição; é, ainda mais, afirmar que há valores, direitos que não cadenciam, ainda que novo Diploma Fundamental venha a existir.

Estas elucubrações, dizem seus autores, se apoiam na dignidade humana, valor fundamental do Estado Democrático de Direito, elevam a pessoa a categoria maior da ordem jurídica, propiciando a realização da existência em toda sua amplitude.

Mas se realmente o patrimônio mínimo fizesse parte de uma axiologia principiológica que colocasse a pessoa em valor fundamental, se realmente fosse ele um direito pré-constitucional, como estaria alicerçado numa ordem capitalista? Tendo em vista que apenas neste é que o trânsito de bens e serviços, bem como sua alienação, de que forma poder-se-ia estruturar sobre uma sólida base teorética esta argumentação?

Antes de prestar resposta ao questionado, impende que se esclareça a natureza dos direitos pré-constitucionais, sua existência, extensão e limites. Para tal, mister analisar pensamentos de teóricos modernos, como John Rawls e Jürgen Habermas.

4.1. A DOUTRINA DE RAWLS

Em Rawls, reestrutura-se o contrato social, assim como havia em Hobbes. Para o autor, que adota uma concepção individualista e liberal do homem em que a racionalidade é o maior dos seus distintivos da condição humana, saindo deste estado de naturalidade racional e pacificidade, os homens celebram um contrato social, estando, contudo, sob o véu da ignorância, desconhecendo quais serão suas posições neste acordo, dando relevo apenas à organicidade do funcionamento da sociedade e da distribuição de bens.

Neste esteio, superada esta etapa elaborativa do contrato social, suspenso o véu da ignorância, os homens podem se preocupar com mais diversas concepções da vida social, na maioria das vezes incompatíveis entre si. Não significa, é claro, que a sociedade que emerge deste contexto será acrítica em relação a valores, mas apenas que cada um poderá se dedicar ao que mais atender aos seus interesses, consubstanciando elemento individualizador. [24]

Desta forma, não estabelecidos valores do que seja justo ou injustos, postula o eminente teórico a possibilidade da resolução destes conflitos de valores por meio de um procedimento capaz de conduzir a um resultado que seja minimamente equânime, vale dizer, que não gere injustiças.

Este procedimento, como já exposto, estará norteado pela racionalidade, sem se preocupar em estruturar condições mínimas para a realização deste esquema de raciocínio na práxis.

De outro lado, Rawls – muito embora não coloque postulados práticos da aplicabilidade e das condições desta aplicação – apresenta seu conceito de mínimo social como decorrência lógica da sua concepção procedimental. Este patamar material mínimo serve para impedir que durante o procedimento decisório formem-se opiniões destoantes da realidade. [25]

Não se almeja neste trabalho, esmiuçar a doutrina de Rawls, à qual o amplo debate com Habermas e tantos outros autores à nível mundial não pôde ainda esgotar, mas apenas tocar este ponto do mínimo social, que ganha dimensões parecidas ao mínimo existencial, constituindo uma esfera mínima para o exercício livre do procedimento democrático.

4.2. A DOUTRINA DE HABERMAS.

Na linha de uma teoria democrática, apoiado na herança da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, o maior herdeiro de Theodor Adorno e Max Horkheimer estruturou sua teoria da democracia com base na ética pragmático-discursiva, visando estruturar o procedimento democrático sobre os alicerces da razão comunicativa.

Reconstruindo a evolução das concepções teóricas de linguagem e identidade nacional, o autor chega à conclusão do esvaziamento da razão moral prática que tem agora sua vinculação a postulados de felicidade individual e realização de planos pessoais. Tomando esta perspectiva, identifica que a razão comunicativa pode mediar a tensão existente no interior do discurso, podendo, igualmente, ser aplicada aos postulados de seu procedimento democrático. [26]

Com vistas a esta conclusão, entende Habermas que, assim como no giro linguístico, a formulação da comunidade de investigadores de Peirce pode ser adotada como verdadeira na construção do procedimento democrático. Mais que isso, entende ele é justamente neste alargamento do auditório de intérpretes ad infinitum, aliada aos postulados de verdade, correção e veracidade são capazes de possibilitar internamente as condições para um procedimento democrático adequado á realidade moderna. [27]

Fora da estrutura interna do procedimento, Habermas engendra ainda pressupostos externos ao procedimento, divididos em grupos que devem necessariamente ser considerados para a obtenção do desiderato ao qual se presta sua teoria da democracia, em que o direito é o mediador da tensão entre facticidade e validade. [28]

Estas categorias de direitos das quais se utilizam o autor podem ser resumidas em dois grandes grupos. O primeiro é o dos que garante as liberdades públicas de ação e o segundo é daqueles que garante a liberdade subjetiva de ação, vale dizer, o primeiro deles se direciona à coletividade e o segundo aos indivíduos atomizados. Em ambos os casos, é possível relacionar estes direitos à concepção de mínimo existencial, posto que representam um patamar mínimo que possibilitam uma atuação dos cidadãos no âmago do procedimento democrático.

4.3. A PRÉ-CONSTITUCIONALIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL E A CONSTITUCIONALIDADE DO PATRIMÔNIO MÍNIMO.

Esposados os sentidos preliminares do debate, cumpre estabelecer o espaço à disposição de posicionamentos. Neste sentido, insta esclarecer sobre a pré-constitucionalidade ou a constitucionalidade do mínimo existencial e do patrimônio mínimo, ao que agora nos dedicaremos.

Ora, se os pressupostos democráticos, tanto em Rawls quanto em Habermas constituem elementos substanciais para a formulação do procedimento democrático, então não se pode negar de sua natureza pré-constitucional, posto que sem estes estaria predisposto à irregularidade o próprio núcleo formativo do sistema constitucional democrático.

A problemática se instaura, contudo, quando se quer dar ao patrimônio mínimo o mesmo emblema que se insere no seio do mínimo existencial. Afinal, ainda que um patrimônio mínimo possa ser inserido numa concepção de um mínimo a ser concedido, este não pode de forma alguma ser igualado ao mínimo existencial.

Isso, porque o substrato mínimo para a vida em sociedade pré-existe à própria ordem capitalística, que é o pressuposto ao patrimônio mínimo, cujo fundamento ademais, repousa na própria formação de valores decorrentes do procedimento democrático.

É neste sentido que mesmo a Constituição pré-existe ao texto constitucional. Porque os valores ali engendrados são vividos pela sociedade cotidianamente, estando ali exarados por motivo de afirmação de uma ordem jurídica. Por isso mesmo entende Häberle que a constituição não é apenas interpretada, mas vivida por todos na sociedade, não podendo ser ignorada a interpretação particular do Diploma Majoris, ainda que apenas a interpretação judicial venha a adquirir força normativa. [29]

A ideia de um patrimônio mínimo, contudo, surge dos eflúvios do mercado, da explosão do tráfico social de bens e serviços, que reduz, nadifica, na expressão de Hannah Arendt, reifica os sujeitos [30], devendo, por isso, ser preservada uma zona do patrimônio mínimo, indispensável à vida digna. Mas esta indispensabilidade não o converte em direito pré-constitucional, vale dizer, a pressuposto do procedimento democrático.

Assim, pode-se concluir que, se é possível afirmar que o mínimo existencial constitui categoria de direitos pré-constitucionais, necessários à higidez do procedimento democrático nas bases de Habermas ou de Rawls, igualmente não ocorre com o patrimônio mínimo, posto que sua existência é corolário dos valores constitucionais a amoldar a ordem do capital.


5. EXPRESSÕES FINAIS.

As palavras, na lição de Michel Foucault, jamais esgotarão o sentido das coisas, o ilustre J. J. Calmon de Passos ensinava que nada está prévia e definitivamente dado, o hoje e o amanha são frutos da atividade humana. Assim, nenhum pensamento é conclusivo, mas diversamente, inclusivo, pois abre o espaço do diálogo à atuação do outro. Nesta linha, abandonamos à expressão conclusão, comum na maioria dos trabalhos, suplantando-a por expressões finais, vale dizer, nossas expressões finais, abrindo o espaço do discurso às outras manifestações.

Neste trabalho foram caracterizados por sua natureza jurídico-axiológica o mínimo existencial, como sendo a categoria de direitos fundamentais indispensáveis à vida digna, conditio sine qua non para o exercício do procedimento democrático e, – por sua anterioridade ao procedimento – assim, constitui categoria de direitos pré-constitucionais.

O mínimo existencial, oriundo da concepção de dignidade humana e respeito constitucionalmente apregoados, manifesta-se como direito constitucionalmente constatável, mas não tem natureza pré-constitucional, servindo apenas de contrapeso à ordem capitalista numa axiologia constitucional.

Assim, esposamos nosso entendimento no sentido de que jamais poderão se igualar patrimônio mínimo e mínimo existencial, porque um é requisito ao procedimento democrático, o outro é decorrente deste e assim como não se pode igualar a árvore aos frutos, não se pode igualar um direito originário com um decorrente.

O mínimo existencial é um direito originário, vale dizer, embora seja constitucionalmente protegido, se configura como antecedente à ordem constitucional, se abeirando ao naturalismo. O patrimônio mínimo é decorrente, guarda vinculação com os diplomas normativos que se lhe outorgam existência e para fora de uma ordem capitalista pode deixar de existir.

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Eis que consideramos atingido o desiderato deste escrito de elucidar a diversidade existente entre o mínimo existencial e o patrimônio mínimo. Contudo, resta elucidar que, embora em níveis diversos na ordem constitucional, ambas as concepções têm sua realização como imprescindíveis à realização de uma sociedade livre, justa e solidária.

Tais construções devem ser entendidas como instrumentos de emancipação social, sem os quais mais distante estaria a ideia de dignidade de todos na sociedade.

Assim, à guisa de conclusões, vale lembrar a poética do ímpar Castro Alves:

"Presa nos elos de uma só cadeia,

A multidão faminta cambaleia,

E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece,

Outro, que de martírios embrutece,

Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra.

E após fitando o céu que se desdobra

Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros:

"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

Fazei-os mais dançar!..."


5. FONTES.

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Sobre o autor
Paulo Ramon da Silva Solla

Assessor Técnico do Governo do Estado da Bahia, na área de Licitações, Contratos Administrativos, Convênios e Contratos de repasse destinados a execução de obras e serviços de engenharia.<br>Pós Graduando em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça pela Universidade Federal da Bahia.<br>Avaliador de diversos periídicos, tais como: Revista Jurídica da UERJ, Revista Jurídica da UNISINOS, Revista Jurídica da PUC-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOLLA, Paulo Ramon Silva. Mínimo existencial e patrimônio mínimo.: O equívoco da pré-constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2446, 13 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14508. Acesso em: 4 nov. 2024.

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