3 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA: em busca da concretização de direitos fundamentais
A crescente importância do Poder Judiciário e do sistema jurídico na mediação das relações sociais, políticas e econômicas para a garantia de direitos fundamentais e a conservação da democracia deu guarida ao fenômeno da juridicização ou judicialização da política.
No Brasil, este fato pode ser observado, com notável clarividência, a partir da Constituição Cidadã de 1988, que, dotada de uma força normativa vinculante para todos os Poderes Estatais (HESSE, 2001), materializou inúmeros direitos, antes relegados ao plano político-formal.
Seguindo os ensinamentos de Gunther Teubner, expostos em apertada síntese neste artigo, saltam aos olhos a existência de uma comunicação entre o direito e as relações sociais, admitindo-se, inclusive, a incorporação de instrumentos políticos, econômicos, etc. ao subsistema jurídico, através do processo de juridificação.
É preciso deixar claro que, a linha de raciocínio aqui desenvolvida tem como standard a filosofia pós-positivista, haja vista o pensamento positivista puro não mais fornecer uma explicação consistente do fenômeno jurídico. De fato, a concepção sistêmica aberta e autopoiética do direito se insere no panorama pós-moderno e pós-positivista.
Existem divergentes avaliações a respeito da repercussão do papel invasivo do direito nas instituições políticas. Há um eixo procedimentalista, representado por Jurgen Habermas e Antoine Garapon, em defesa de um Judiciário com poderes mais limitados, e um eixo substancialista, associado às obras de Mauro Cappelletti e Ronald Dworkin, que preconiza uma participação mais efetiva do Judiciário nas democracias contemporâneas. (OLIVEIRA; CARVALHO NETO, 2009)
De acordo com o eixo procedimentalista, a igualdade, ao reclamar mais Estado em nome da justiça distributiva, favorece a privatização da cidadania. A democratização social tem como conseqüência a estatização dos movimentos sociais, a decomposição da política e a judicialização da mesma. O gigantismo do poder Judiciário gerou um desestímulo a um agir orientado para fins cívicos, tornando o juiz e a lei como as únicas referências para indivíduos socialmente perdidos.
[...]
Para o eixo substancialista, o redimensionamento do papel do Judiciário e a invasão do direito nas sociedades contemporâneas soam como uma extensão da tradição democrátiva a setores ainda pouco integrados à sua ordem. Nesse sentido, ele valoriza o ativismo judicial. (OLIVEIRA; CARVALHO NETO, 2009)
Em um viés substancialista, o jurista norte-americano Ronald Dworkin (2001, p. 27) acastela a transferência de questões políticas para o Poder Judiciário a fim de preservar e concretizar direitos individuais. "Estou afirmando agora apenas que os legisladores não estão, institucionalmente, em melhor posição que os juízes para decidir questões sobre direitos".
[...] Dworkin enxerga a prática jurídica norte-americana na atualidade de um contexto democrático, no qual os membros do Poder Legislativo desempenham um papel de grande relevância – mas não de hegemonia – na medida em que foram eleitos para concretizar políticas públicas ditadas pela comunidade. (APPIO, 2009, p. 3)
Conforme Dworkin, o deslocamento de conflitos políticos para o Judiciário exige que os litígios sejam solucionados com fundamentos jurídicos e não políticos. É dizer: os juízes devem ser guiados por argumentos de princípios e não de política [02]. "Minha visão é que o Tribunal deve tomar decisões de princípio, não de política – decisões sobre que direitos as pessoas têm sob o nosso sistema constitucional, não decisões sobre como se promove o bem-estar geral". (DWORKIN, 2001, p. 101)
No entendimento deste jurista, o controle judicial dos atos políticos democratiza a tomada de decisões, devido a existência de indivíduos que não têm seus direitos garantidos através da atuação política dos Poderes Legislativo e Executivo. Deste modo, ilustre-se:
Sem dúvida, é verdade, como descrição bem geral, que numa democracia o poder está nas mãos do povo. Mas é por demais evidente que nenhuma democracia proporciona a igualdade genuína de poder político. Muitos cidadão, por um motivo ou outro, são inteiramente destituídos de privilégios. O poder econômico dos grandes negócios garante poder político especial a quem os gere. [...] Essas imperfeições no caráter igualitário da democracia são bem conhecidas e, talvez, parcialmente irremediáveis. Devemos levá-las em conta ao julgar quanto os cidadãos individualmente perdem de poder político sempre que uma questão sobre direitos individuais é tirada do legislativo para o judiciário. (DWORKIN, 2001, p. 31)
[...] Se os tribunais tomam a proteção de direitos individuais como sua responsabilidade especial, então as minorias ganharão em poder político, na medida em que o acesso aos tribunais é efetivamente possível e na medida em que as decisões dos tribunais são efetivamente fundamentadas. (DWORKIN, 2001, p. 32)
Não se pretende defender uma aplicação integral da teoria postulada por Ronald Dworkin no Ordenamento Jurídico Brasileiro, uma vez que há inúmeras diferenças institucionais e jurídicas entre os Estados Unidos e o Brasil. Entretanto, de certa maneira, alguns dos ensinamentos proferidos por Dworkin se encaixam no mosaico jurídico do Brasil, servindo de subsídio para a realização da Constituição Federal.
Isto é claramente demonstrável quando decisões de controle de constitucionalidade adentram em questões eminentemente políticas para garantir direitos fundamentais ou na judicialização de políticas públicas de saúde, educação, moradia, segurança, etc.
Com efeito, a judicialização da política é reflexo de um modelo democrático e intervencionista de Estado, que propende à efetivação de direitos e o arrefecimento das desigualdades sociais.
O contexto sócio-político do Brasil, coordenado por uma Constituição Dirigente, repleta de valores, permite o redimensionamento do papel do Judiciário, com a consequente judicialização da política, afeta inicialmente ao Legislativo ou ao Executivo, em prol da garantia dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito.
A judicialização no Brasil decorre do modelo constitucional brasileiro e, portanto, em alguma medida ela é inevitável. Constitucionalizar é tirar uma matéria da política e trazê-la para dentro do Direito. E, portanto, existem prestações que o Judiciário não pode se negar a apreciar - e é muito bom que seja assim. Porém, a judicialização tem uma óbvia faceta negativa. É que, na medida em que uma matéria precise ser resolvida mediante uma demanda judicial, é sinal que ela não pôde ser atendida administrativamente; é sinal que ela não pôde ser atendida pelo modo natural de atendimento das demandas, que é, por via de soluções legislativas, soluções administrativas e soluções negociadas. A faceta positiva é que, quando alguém tem um direito fundamental e esse direito não foi observado, é muito bom poder ir ao Poder Judiciário e merecer esta tutela. (BARROSO, 2009)
Sob este enfoque, opta-se pela vertente substancialista e se admite a judicialização da política sempre que os poderes Legislativo ou Executivo não tenham em vista o cumprimento do desígnio insculpido na Lex Maxima, em frontal agressão ao princípio representativo, ou para proteção dos direitos fundamentais.
É cediço que a meta e o alcance do bem-estar e justiça social, preconizados na Carta de Direitos, através do asseguramento dos direitos à prestação por intermédio do Estado, devem balizar as escolhas dos governantes e gestores. Não podem, neste contexto, os gestores, lançar mão do princípio da discricionariedade administrativa ou escolhas governamentais, sob o pálio da procuração popular outorgada através do voto. Corroborando tal entendimento, ensina Robert Alexy (2008, p. 450):
[...] em virtude de normas de direitos fundamentais, todos encontram-se em posições de direitos a prestações que são, do ponto de vista do direito constitucional, tão importantes que a decisão sobre elas não possa ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar simples.
Ainda nesta linha, é importante asseverar que, se o Legislativo ou Executivo não atender às metas constitucionais, tanto por omissão legislativa, como por ausência de implementação de políticas públicas ou má utilização dos recursos públicos (ineficiência ou imoralidade administrativa), o Poder Judiciário estará legitimado a intervir, desde que provocado, para efetuar o controle jurídico destes atos e omissões em prol da concretização do texto constitucional.
Marcos Faro Castro (2009), no artigo "O Supremo Tribunal Federal e a Judicialização da Política" adverte:
A judicialização da política ocorre porque os tribunais são chamados a se pronunciar onde o funcionamento do Legislativo e do Executivo se mostram falhos, insuficientes ou insatisfatórios. Sob tais condições, ocorre uma certa aproximação entre Direito e Política e, em vários casos, torna-se difícil distinguir entre um ‘direito’ e um ‘interesse político’.
Um relevante trabalho sobre judicialização da política no Brasil é o de Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palácios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos (1999, p. 22), em que se evidencia a função Jurisdicional "para a agregação do tecido social e mesmo para a adjudicação de cidadania".
O judiciário, assim, não substituiria à política, mas preencheria um vazio, que, nas sociedades de massa com intensa mobilização social (como a brasileira), poderia vir a conceder ‘consistência democrática a um excedente de soberania popular que escapa à expressão do sufrágio’. (WERNECK VIANNA; CARVALHO; MELO; BURGOS, 1999, p. 258).
Malgrado a importância da judicialização da política para resguardar direitos fundamentais, no Brasil o fenômeno precisa ser materializado substancialmente, porém, com parâmetros, para que o Judiciário atue com critérios de racionalidade e eficiência. Ou seja, há a necessidade de construção de um juízo justo, e, ao mesmo tempo, assentado no quadro da ordem vigente.
Observa-se, na realidade, um "hiperdimensionamento do caráter procedimental" e um "hipodimensionamento do caráter substancial" (CARVALHO, 2009, p. 121). Explique-se: apesar da difusão de procedimentos judiciais em campos de deliberação política, ainda não há um comportamento amplo do Judiciário no sentido de concretizar, com racionalidade, direitos fundamentais, em detrimento de determinadas políticas governamentais.
Note que não se tenciona um ativismo judicial indiscriminado, mas uma judicialização da política baseada concomitantemente na racionalidade das decisões judiciais – com uma análise prévia e ponderada dos impactos de suas deliberações para a sociedade – e na afirmação de direitos fundamentais e ampliação da cidadania.
Registre-se que os limites deste artigo impõem passar ao largo de assuntos relevantes em tema de judicialização, como a legitimidade democrática do Judiciário, a análise da discricionariedade administrativa, o controle judicial de escolhas orçamentárias etc.
Ao se lançar um olhar sobre a realidade nacional, verifica-se que a judicialização política em temas como saúde e educação, por exemplo, faz parte do cenário jurídico atual [03]. Entretanto, é mister uma racionalização da judicialização de modo a garantir o princípio democrático.
Deve-se reconhecer que, na solução de questões que envolvem política de Estado ou de Governo, há a exigência de que as decisões sejam fundamentadas com conhecimentos de outras áreas, além do direito, tais como economia, políticas públicas e regulação de atividades econômicas ou serviços públicos delegados a particulares, a fim de que as deliberações sejam aptas a promover os valores constitucionais em jogo.
Para o alcance deste desiderato, sugere-se a criação de assessorias técnicas nas diversas áreas para balizar as decisões judiciais (SARLET, 2009). Ademais, é necessário cobrar dos magistrados a motivação de suas decisões e um exame criterioso dos casos concretos, sob pena de responsabilidade.
A questão da judicialização da saúde, por exemplo, é alvo de inúmeros debates doutrinários e jurisprudenciais. Nos meses de abril e maio de 2009, foi realizada uma audiência pública com diversos setores da sociedade civil e do Estado, em busca de soluções para os problemas do sistema único de saúde (SUS) e sua judicialização [04].
A importância da audiência pública em um Estado Democrático de Direito é lapidar, uma vez que está em consonância com a nova hermenêutica constitucional, voltada para a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição (HABERLE, 1997).
Naquela ocasião, foram expostas doutrinas, técnicas, e maneiras de atuação política, por pessoas de distintas áreas de conhecimento, em busca de estratégias a serem utilizadas pelo Poder Judiciário na decisão de conflitos, que envolvessem a saúde pública.
O ministro Carlos Alberto Menezes Direito (2009), por exemplo, avaliou que uma possível solução, já em prática em alguns estados, é a realização de reuniões periódicas de juízes com as autoridades de saúde do estado de modo a estabelecer um critério razoável de atendimento.
Em relação a políticas públicas na área de saúde, que atendem a um determinado grupo ou segmento, em detrimento de outros, pondera Luís Roberto Barroso (2009):
[...] neste caso, o debate deve ser convertido, de um debate individual, para um debate coletivo. A partir deste momento, o que se deve decidir não é se uma pessoa deve merecer o provimento da sua postulação judicial; o que o Judiciário tem que decidir é se todas as pessoas que estão naquela situação merecem ser atendidas, porque, aí, em vez de se atender uma pessoa, cria-se uma política pública para atender àquela necessidade.
Infere-se, portanto, a busca de uma judicialização racionalizada da política pública de saúde, a partir de debates e táticas para a otimização das decisões judiciais, em atendimento aos princípios e valores constitucionais.
Esta perspectiva precisa ser alargada para alcançar a solução de conflitos judiciais que envolvam outras políticas públicas, como educação, segurança, moradia, etc. Inelutavelmente, a racionalidade na judicialização da política está em concordância com as novas tendências da teoria do direito e é seminal para a garantia dos direitos fundamentais, e, consequentemente, do Estado Democrático de Direito.