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O papel da Constituição para o processo de criação e desenvolvimento do ordenamento jurídico

10/04/2010 às 00:00
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Análise minimamente responsável do papel da Constituição para o processo de criação e desenvolvimento do ordenamento jurídico não prescinde de precisa conceituação do que sejam Constituição, Ordenamento Jurídico e Hermenêutica Constitucional, para se definir a natureza de cada um desses elementos e, apenas posteriormente, avaliar as suas interpenetrações e as conseqüências destas.

De logo se impõe apontar as diferenças entre Constituição e Norma Fundamental. Para KELSEN, a norma fundamental, justamente por se quedar situada na base do ordenamento jurídico [01], "há de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por nenhuma autoridade [...]; aquela norma, enfim, cuja validade não pode ser derivada de outra e cujo fundamento não pode ser posto em questão" [02]. Essa Norma, criada ficcionalmente pela razão lógico-jurídica, confere fundamento de validade não apenas à primeira Constituição, mas a todas as normas do ordenamento – estas que, por sua vez, também encontram validade na Constituição.

Alinhavada, ainda que sucintamente, a natureza jurídica da norma fundamental, passa-se agora ao delineamento do conceito de Constituição ou Lei Fundamental. Ressalta-se, contudo, que a referida conceituação é dinâmica e varia de acordo com o estágio evolutivo da sociedade e os valores por ela consagrados. Assim, em síntese que pretende afastar as variações possíveis, em virtude das opções políticas de cada Estado, pode-se dizer que a Constituição é a lei básica de organização do estado e do seu povo.

Em sociedades democráticas, a Lei Fundamental necessariamente deve prever, como conteúdo mínimo, sob pena de não se poder considerá-la como tal, a tripartição das funções estatais e os direitos fundamentais do homem.

Em verdade, como já afirmado, o conteúdo de uma Constituição varia grandemente com as opções políticas realizadas. Destarte, alguns Estados possuem o que se chama de Lei Fundamental sintética (ou concisa) [03], enquanto outros promulgaram Constituições analíticas (ou prolixas) [04].

Essas lições preliminares, ora apostas, não esgotam a complexidade do que é efetivamente uma Constituição, porque, no geral, tais textos adotam expressões vagas e abertas – o que não poderia ser diferente, tendo em vista o mar de situações que precisam ser reguladas. Para tanto, ao invés de normas, é natural que os textos constitucionais prefiram se valer de princípios.

Nesse ponto, a Hermenêutica Constitucional – conjunto de princípios gerais que se há de seguir para aplicação da norma posta – se apresenta para, com seus métodos e conceitos próprios, desnudar e conformar o texto constitucional, de forma a apresentar hipóteses de aplicação razoáveis, sem distorcer o verdadeiro conteúdo da norma contida na lei fundamental.

A Hermenêutica Constitucional não difere, em larga medida, da ciência da interpretação infra-constitucional; apenas faz uso de elementos próprios inerentes à aplicação das normas constitucionais, sobretudo no que diz respeito à sua natureza principiológica. Por isso, também as demais normas do ordenamento jurídico carecem de serem interpretadas, pois, apesar apresentarem maior normatividade, ainda gozam de abstração e generalidade, que impedem sua direta aplicação.

Quanto às demais normas do ordenamento jurídico, situadas hierarquicamente abaixo da Constituição [05], a sua interpretação imperiosamente deve se guiar pelos nortes fornecidos por esta última, na qual encontram seu fundamento de validade, sob pena de nulidade por inconstitucionalidade.

O Ordenamento Jurídico, que, na lição de BOBBIO, consubstancia "um contexto de normas com relações particulares entre si" [06], nos Estados democráticos, é necessariamente guiado pelos valores albergados na Constituição, porque esta representa os anseios plurissubjetivos da sociedade.

Nesse ponto, metaforicamente, imperioso registrar que a Constituição é o timão do navio do ordenamento jurídico. Por isso a relevância da hermenêutica constitucional, para trazer à luz os verdadeiros conteúdos dos textos constitucionais, de observância obrigatória pelo legislador.

Aqui, descortina-se o verdadeiro papel da Constituição na criação do ordenamento jurídico. É justamente na Lei Fundamental que estão previstas as espécies legislativas, o processo legislativo; em síntese, a forma de criar o direito está estabelecida no texto constitucional, de forma que só adentrarão validamente no ordenamento os preceitos que formalmente seguirem os ritos dispostos na Lei Fundamental e que materialmente não dispuserem em contrário ao seu texto, nos termos dos seus verdadeiros conteúdos apresentados pela hermenêutica.

O desenvolvimento do ordenamento, por sua vez, também deverá observar o farol representado pelos valores empunhados pelo constituinte, na medida em que a Constituição servirá grandemente como norte e como vetor das transformações sociais, cujas conseqüências, cedo ou tarde, serão transformações jurídicas, alterações no ordenamento até então posto pelo Estado e em vigor.

Para concluir, ante a natureza sintética deste trabalho: a Constituição serve, de um lado, como fundamento de validade, a balizar os limites inovadores do legislador; de outra banda, a Lei Fundamental apresenta os destinos a serem buscados, em virtude das políticas acolhidas pelo constituinte (em representação do povo), tudo com base no verdadeiro conteúdo das normas que se extraem do texto constitucional, através da hermenêutica constitucional.

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Notas

  1. Conceito de Ordenamento Jurídico será apresentado em seguida.
  2. Apud COELHO, Inocêncio Mártires. Ordenamento jurídico, Constituição e Norma Fundamental. Material da 1ª aula da Disciplina da Teoria da Constituição e Hermenêutica Constitucional, ministrada no Curso de Pós-Graduação – UNISUL/REDE LFG/IDP.
  3. Exemplo clássico: Estados Unidos da América.
  4. A Constituição da República Federativa Brasileira de 1988.
  5. No clássico modelo piramidal de KELSEN.
  6. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10 ed. Brasília: Editora UnB, 1999. p. 19.
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Sobre o autor
Geraldo de Azevedo Maia Neto

Procurador Federal. Especialista em Direito Público pela UnB. Especialista em Direito Constitucional pelo IDP/UNISUL. Procurador-Geral do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Foi Subprocurador-Geral do Instituto Chico Mendes (ICMBio). Foi Subprocurador-Regional Federal da 1ª Região. Foi membro da Câmara Especial Recursal do CONAMA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIA NETO, Geraldo Azevedo. O papel da Constituição para o processo de criação e desenvolvimento do ordenamento jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2474, 10 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14638. Acesso em: 5 mai. 2024.

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