Considerações Finais
A ideologia neoliberal e o avanço da tecnologia transformaram o Planeta numa "aldeia global", sendo que dentro dela os padrões de comportamento e de atuação, seja dos indivíduos, das instituições e até mesmo dos Estados, passaram a ser estabelecidos quase que exclusivamente pelos detentores do capital.
Nesse novo contexto, a força do mercado econômico e financeiro, sobretudo diante dos padrões competitivos impostos pelos países asiáticos, vem exigindo dos Estados a implementação de uma política voltada para a revisão dos direitos sociais, resultando daí uma sistemática redução do nível de qualidade de vida daqueles que dependem basicamente da força do seu trabalho.
Esse novo perfil (neo)liberal do Estado vem acarretando o sucateamento dos serviços públicos voltados para a concretização dos direitos sociais, sendo que a amplitude do atendimento e a qualidade dos serviços de saúde, educação, assistência e previdência social, por exemplo, diminuem a cada ano.
O Estado está de joelhos, revelando-se impotente diante do poderio dos gigantescos conglomerados empresariais, aos quais vem se submetendo, resultando dessa pífia atuação do Poder Público um quadro lastimável de exclusão social, além de índices cada vez mais alarmantes de violência e criminalidade.
De se observar, ainda, que quanto menos efetivo no cumprimento de seu dever de garantir ao indivíduo o acesso aos direitos fundamentais, mais policialesco e penitenciário tem se mostrado o Estado, fazendo com que, em pleno século XXI, as prisões se assemelhem às masmorras da Idade Média, caracterizando-se como verdadeiros depósitos de seres humanos.
Diante desse quadro, não se revela surpreendente a crise de credibilidade que atinge de forma contundente a classe política brasileira, resultando daí a clara impressão de que as instituições que devem dar sustentação ao Estado Democrático de Direito, como os Poderes Executivo e Legislativo, são descartáveis.
Por certo, esse mesmo nível de descartabilidade ronda o Poder Judiciário e, para que seja afastado, demandará um esforço de todos os operadores do Direito, sobretudo dos magistrados, para que uma nova concepção a respeito das estratégias de distribuição de justiça seja alcançada, tornando realidade as previsões do texto constitucional pertinentes aos direitos fundamentais.
As novas formas de interpretação, que valorizam os princípios e trazem para o universo jurídico a compreensão de que o direito processual deve estar voltado para a concretização do direito material, deixando para trás concepções extremamente formalistas, devem ser valorizadas.
Os dispositivos constitucionais pertinentes aos direitos sociais não devem ser encarados como normas despidas de eficácia jurídica ou como meras promessas constitucionais inconsequentes.
As normas constitucionais definidoras dos direitos fundamentais sociais devem ter aplicação imediata, tudo de acordo com o que deixa claro o art. 5º, § 1º, da Constituição Federal, dispositivo este que, até mesmo por sua posição dentro do ordenamento jurídico, não pode ter sua eficácia postergada ou simplesmente afastada.
No mundo globalizado, a atuação do mercado deve ser combinada com a intervenção do Estado, e é o texto constitucional quem assegura essa possibilidade por meio das normas que consagram os direitos sociais e regulamentam a ordem econômica.
O caminho a ser percorrido em busca da concretização dos direitos fundamentais é longo e repleto de dificuldades. Entretanto, o fim almejado é justo e recompensador, sendo que somente poderá ser alcançado por intermédio da mobilização da sociedade e do comprometimento dos Poderes do Estado, tendo no Ministério Público o ponto de apoio e de fomento, encontrando no Judiciário a certeza da justiça social, exatamente aquela proclamada por Jesus Cristo, cujo símbolo indelével é a partilha do pão – o "o pão nosso" que na Oração pedimos ao Pai que nos seja ofertado a cada dia, ao mesmo tempo em que suplicamos o perdão por nossas faltas, entre as quais está, sem dúvida entre as mais graves, a indiferença para com aqueles que têm fome e sede, sobretudo de justiça.
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Notas
Aqui, a lição de Daniel Sarmento: "Neste cenário, surgem, dos mais variados flancos, críticas ao liberalismo econômico, sob cuja égide se criara e se nutria o capitalismo selvagem. O marxismo, o socialismo utópico e a doutrina social da Igreja, sob perspectivas diferentes, questionavam o individualismo exacerbado do constitucionalismo liberal. Para o marxismo, os direitos humanos do liberalismo compunham a superestrutura ligada à dominação econômica exercida pela burguesia sobre o proletariado. Eram uma fachada, que visava conferir um verniz de legitimidade a uma relação de exploração, que só teria fim com a implantação do comunismo e o fim das classes sociais. [...] O socialismo utópico, de pensadores como Charles Fourier, Robert Owen e Louis Blanc, também questionava o liberalismo, considerando-o incapaz de resolver a questão social, mas não propunha, como solução, que os proletários tomassem o poder pela força, parecendo acreditar na possibilidade de convencimento da burguesia da necessidade de promoção de reformas sociais. [...] Já a doutrina social da Igreja, embora discordando radicalmente da idéia marxista de luta de classes, abria-se para a questão operária, defendendo a instituição de direitos mínimos para o trabalhador, a partir da Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, editada em 1891. Nessa Encíclica, a Igreja criticava o individualismo exacerbado do liberalismo, e defendia a assunção pelo Estado de uma posição mais ativa na sociedade, em defesa dos mais pobres. Posteriormente, o Papa Pio XII dá continuidade a esta pregação na Quadragesimo Anno, de 1931, e o tema será revisitado em vários outros documentos pontifícios, como as Encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), de João XXIII e Populorum Progressio (1967) e Humanae Vitae (1969), de Paulo VI". (SARMENTO, 2006, p. 17)
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Importante observar, entretanto, que a previsão constitucional dos direitos econômicos e sociais não significou uma imediata implementação do ponto de vista fático. Neste sentido, o posicionamento de Robert Alexy: "Poder-se-ia achar que com a codificação dos direitos do homem por uma Constituição, portanto, com sua transformação em direitos fundamentais, o problema de sua institucionalização esteja resolvido. Isso não é, todavia, o caso. Muitos problemas dos direitos do homem agora somente tornam-se visíveis em toda sua dimensão e novos acrescem por seu caráter obrigatório, agora existente". (ALEXY, 1999, p. 62)
Com a ressalva de Ingo Wolfgang Sarlet: "Ainda na esfera dos direitos de segunda dimensão, há que se atentar para a circunstância de que estes não englobam apenas direitos de cunho positivo, mas também as denominadas ‘liberdades sociais’. [...] A segunda dimensão dos direitos fundamentais abrange, portanto, bem mais do que os direitos de cunho prestacional, de acordo com o que ainda propugna parte da doutrina, inobstante o cunho ‘positivo’ possa ser considerado como o marco distintivo desta nova fase da evolução dos direitos fundamentais". (SARLET, 2007, p. 57)
Explicitando essa ideia, o comentário de José Eduardo Faria: "A característica básica dos direitos sociais está no fato de que, forjados numa linha oposta ao paradigma kantiano de uma justiça universal, foram formulados dirigindo-se menos aos indivíduos tomados isoladamente como cidadãos livres e anônimos e mais na perspectiva dos grupos, comunidades, corporações e classes a que pertencem." (FARIA, 1994, p. 54)
Na expressão de Fábio Konder Comparato, o arremate desse entendimento: "É o princípio da solidariedade que constitui o fecho de abóbada de todo o sistema de direitos humanos". (COMPARATO, 2007, p. 337)
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Sobre as consequências da globalização, mostram-se oportunos os apontamentos de José Augusto Lindgren Alves: "Uma das contradições evidentes de nossa época consiste no vigor com que os direitos humanos entraram no discurso contemporâneo como contrapartida natural da globalização, enquanto a realidade se revela tão diferente. Não é necessário ser ‘de esquerda’ para observar o quanto as tendências econômicas e as inovações tecnológicas têm custado em matéria de instabilidade, desemprego e exclusão social. Inelutável ou não, nos termos em que está posta, e independentemente dos juízos de valor que se lhe possa atribuir, a globalização dos anos de 1990, centrada no mercado, na informação e na tecnologia, conquanto atingindo (quase) todos os países, abarca diretamente pouco mais de um terço da população mundial. Os dois-terços restantes, em todos os continentes, dela apenas sentem, quando tanto, os reflexos negativos. [...] Enquanto para a sociedade de classes, da ‘antiga’ modernidade, o proletariado precisava ser mantido com um mínimo de condições de subsistência (daí o welfare State), para a sociedade eficientista, da globalização pós-moderna, o pobre é responsabilizado e estigmatizado pela própria pobreza. Longe de produzir sentimentos de solidariedade, é associado ideologicamente ao que há de mais visivelmente negativo nas esferas nacionais, em escala planetária: superpopulação, epidemias, destruição ambiental, vícios, tráfico de drogas, exploração do trabalho infantil, fanatismo, terrorismo, violência urbana e criminalidade. As classes abastadas se isolam em sistemas de segurança privada. A classe média (que hoje abarca os operários empregados), num contexto de insegurança generalizada, cobra dos legisladores penas aumentadas para o criminoso comum. Ou, sentindo os empregos e as fontes de remuneração ameaçadas, recorre a ‘bodes expiatórios’ na intolerância contra o ‘diferente’ nacional – religioso, racional ou étnico – ou contra o imigrante estrangeiro (às vezes simplesmente de outra região do país). Anulam-se, assim, os direitos civis". (ALVES, 2005, p. 26-27)
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A respeito das consequências da adoção do modelo neoliberal em países de modernidade tardia, como o Brasil, as observações de Lenio Luiz Streck: "Evidentemente, a minimização do Estado em países que passaram pela etapa do ‘Estado providência’ ou welfare State tem conseqüências absolutamente diversas da minimização do Estado em países como o Brasil, onde não houve o Estado social. O Estado interventor-desenvolvimentista-regulador, que deveria fazer esta função social, foi – especialmente no Brasil – pródigo (somente) para com as elites, enfim, para as camadas médio-superiores da sociedade, que se apropriaram/aproveitaram de tudo deste Estado, privatizando-o, dividindo/loteando com o capital internacional os monopólios e os oligopólios da economia [...]. No Brasil, a modernidade é tardia e arcaica. O que houve (há) é um ‘simulacro de modernidade’. Como muito bem assinala Eric Hobsbawn, o Brasil é um ‘monumento à negligência social’, ficando atrás do Sri Lanka em vários indicadores sociais, como mortalidade infantil e alfabetização, tudo porque o Estado, no Sri Lanka, empenhou-se na redução das desigualdades. Ou seja, em nosso País as promessas da modernidade ainda não se realizaram. E, já que tais promessas não se realizaram, a solução que o establishment apresenta, por paradoxal que possa parecer, é o retorno do Estado (neo)liberal. Daí que a pós-modernidade é vista como a visão neoliberal. Só que existe um imenso déficit social em nosso País, e, por isso, temos que defender as instituições da modernidade contra esse neoliberalismo pós-moderno. [...] É evidente, pois, que em países como o Brasil, em que o Estado social não existiu, o agente principal de toda política social deve ser o Estado. As políticas neoliberais, que visam a minimizar o Estado, não aportarão para a realização de tarefas antitéticas a sua natureza. Veja-se o exemplo ocorrido na França, onde, recentemente, após um avanço dos neoliberais, a pressão popular exigiu a volta das políticas típicas do ‘Estado providência’. Já em nosso País, ao contrário disto, seguimos na contramão, é dizer, quando países de ponta rediscutem e questionam a eficácia (social) do neoliberalismo, caminhamos, cada vez mais, rumo ao ‘Estado absenteísta’, ‘minimizado’, ‘enxuto’ e ‘desregulamentado’ (sic) [...]. É este, pois, o dilema: quanto mais necessitamos de políticas públicas, em face da miséria que se avoluma, mais o Estado, único agente que poderia erradicar as desigualdades sociais, se encolhe! Tudo isso acontece na contramão do que estabelece o ordenamento constitucional brasileiro, que aponta para um Estado forte, intervencionista e regulador, na esteira daquilo que, contemporaneamente, se entende como Estado Democrático de Direito. O Direito recupera, pois, sua especificidade. No Estado Democrático de Direito, ocorre a secularização do Direito. Desse modo, é razoável afirmar que o Direito, enquanto legado da modernidade – até porque temos uma Constituição democrática – deve ser visto, hoje, como um campo necessário de luta para a implantação das promessas modernas". (STRECK, 2005, p. 24-27)
A respeito de uma das principais características do neoliberalismo, a abordagem de Anthony Giddens: "O antagonismo ao welfare State é um dos traços neoliberais mais característicos. O welfare State é visto como a fonte de todos os males, de maneira muito parecida àquela como o capitalismo era visto outrora pela esquerda revolucionária. [...] O que provê o bem-estar social se o welfare State deve ser desmantelado? A resposta é um crescimento econômico conduzido pelo mercado. Welfare deveria ser entendido não como benefícios estatais, mas como maximização do progresso econômico, e, portanto, riqueza geral, permitindo-se aos mercados operar seus milagres". (GIDDENS, 2005, p. 23)
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A respeito do tema, as palavras esclarecedoras de Rolf Kuntz: "As políticas públicas de pleno emprego estão falidas, admite-se por toda parte; fala-se em redução da semana de trabalho, mas a proposta mais freqüente é tornar as relações de emprego ‘mais flexíveis’. Na Espanha, os socialistas tomam a iniciativa de pôr em debate mudanças desse tipo, como estímulo à sustentação do emprego. Os padrões de competição impostos pelo Extremo Oriente acabam ganhando o status de ‘normalidade’. Enquanto o drama não se resolve, e não se resolverá tão cedo, fecham-se as fronteiras, tenta-se frear a imigração e, de vez em quando, torram-se algumas famílias de estrangeiros. A combustibilidade, como descobriu a nova geração alemã, é uma das propriedades químicas mais interessantes dos povos morenos. Os turcos, porém, nada têm a ver com as decisões de cúpula da Volkswagen, da Kodak, da Nestlé, da Peugeot ou Mitsubishi. Por isso, enquanto as famílias de imigrantes fornecem um alvo à estupidez organizada, os grupos transnacionais prosseguem na sua rearticulação, dando novo formato aos mercados e jogando pela borda milhões de trabalhadores. Se há algo fora de dúvida, quanto a essa reorganização do capital, é o seu caráter excludente e concentrador. Os novos padrões de tecnologia e de gerência criam multidões de excedentes, alargam a distância entre as maiores e as menores remunerações e deixam aos planejadores e políticos um novo problema: descobrir um meio de reincorporar milhões de trabalhadores à atividade produtiva". (KUNTZ, 2005, p. 145) Em complementação, a oportuna abordagem de José Murilo de Carvalho: "A exigência de reduzir o déficit fiscal tem levado governos de todos os países a reformas no sistema de seguridade social. Essa redução tem resultado sistematicamente em cortes de benefícios e na descaracterização do ‘Estado do bem-estar’. A competição feroz que se estabeleceu entre as empresas também contribuiu para a exigência de redução dos gastos via poupança de mão-de-obra, gerando um desemprego estrutural difícil de eliminar. Isso por sua vez, no caso da Europa, leva a pressões contra a presença de imigrantes africanos e asiáticos e contra a extensão a eles de direitos civis, políticos e sociais. O pensamento liberal renovado volta a insistir na importância do mercado como mecanismo auto-regulador da vida econômica e social e, como conseqüência, na redução do papel do Estado. [...] Diante dessas mudanças, países como o Brasil se vêem frente a uma ironia. Tendo corrido atrás de uma noção e uma prática de cidadania geradas no Ocidente, e tendo conseguido alguns êxitos em sua busca, vêem-se diante de um cenário internacional que desafia essa noção e essa prática". (CARVALHO, 2007, p. 225-226)
Com a observação de Michel Foucault, deixando claro que esta não é a melhor estratégia no combate à violência e à criminalidade: "se há um desafio político global em torno da prisão, este não é saber se ela será não corretiva; se os juízes, os psiquiatras ou os sociólogos exercerão nela mais poder que os administradores e guardas; na verdade ele está na alternativa prisão ou algo diferente de prisão. O problema atualmente está mais no grande avanço desses dispositivos de normalização e em toda a extensão dos efeitos de poder que eles trazem, através da colocação de novas objetividades". (FOUCAULT, 1991, p. 268)
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Pedro Demo aponta alguns horizontes voltados para o enfrentamento da pobreza: "Em primeiro lugar, torna-se claro que, para enfrentar a pobreza, é mister acertar seu fulcro político, e isto quer dizer, sem tirar nem pôr, que não é possível fugir do confronto. Esse termo parece excessivamente agressivo, mas quer apenas denotar sua dialética intrínseca política. Se o pobre não souber confrontar-se, entra no cenário como massa de manobra e disso não sai mais. Confrontar-se é a habilidade da cidadania democrática, feita dentro de regras de jogo do Estado de Direito, mas plantada na capacidade do pobre de fazer história própria. Não se combate a pobreza sem o pobre no comando desse processo. Em segundo lugar, não basta distribuir, é imprescindível redistribuir renda, tocando decisivamente no espectro das desigualdades vigentes. Os pobres não são pobres apenas porque produzem pouco, são desqualificados, heterogêneos, mas principalmente porque são ‘desiguais’, ou seja, espoliados, marginalizados, imbecilizados. É preciso tocar nessa chaga e virar o sentido histórico do acesso às oportunidades. Redistribuir renda implica necessariamente retirar de quem tem demais, equalizar oportunidades, privilegiar os desprivilegiados, o que coloca outro sentido ao debate sobre focalização das políticas sociais. Quando feita de cima, a focalização acaba em coisa pobre para pobre, inapelavelmente. Quando o pobre é figura central e comanda a focalização, pode ter como resultado iniciativas redistributivas de renda e poder. Sobre esse pano de fundo, o combate à pobreza poderia ser organizado em três dimensões hierárquicas e essenciais: a) primeiro, é mister haver assistência social, porque o direito à sobrevivência é um direito radical; sem ele, não há nada depois; todavia, o mais imediato nem sempre é mais importante; b) segundo, é mister haver inserção no mercado, para que o pobre se auto-sustente, ande com pernas próprias, tenha projeto de vida; c) terceiro, é mister haver cidadania, para que o pobre assuma seu destino com devida autonomia". (DEMO, 2006, p. 35-36)