RESUMO: O texto fará uma análise crítica acerca da receptividade, no Brasil, do movimento da Lei e da Ordem, abrangendo sua faceta mais popular – o programa Tolerância Zero – como ícone a ser implementado pelo Estado em resposta ao incremento da criminalidade na sociedade ocidental contemporânea. A partir de uma análise da legislação penal brasileira, principalmente, a partir da década de 90, visa constatar que a recepção favorável deste movimento no Brasil tem menos a ver com sua suposta eficiência na redução dos crimes do que com sua eficácia simbólica no reforço de estereótipos correntes na sociedade brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: políticas públicas; tolerância zero; simbolismo; política criminal brasileira.
1.DISCURSO HEGEMÔNICO SOBRE SEGURANÇA PÚBLICA NO MUNDO CAPITALISTA OCIDENTAL: adequação à sociedade brasileira
Iniciemos lançando questionamentos sobre o modo genuinamente brasileiro de apropriar-se do discurso hegemônico sobre segurança pública no mundo ocidental, que se baseia na "privatização da responsabilidade pelo fenômeno da criminalidade". [01] Para tanto, far-se-á uma análise prévia da receptividade, no Brasil, do movimento da Lei e da Ordem, abrangendo sua faceta mais popular – o programa Tolerância Zero – como ícone a ser implementado pelo Estado em resposta ao incremento da criminalidade na sociedade ocidental contemporânea.
A tônica de tais discursos hegemônicos entra em consonância com a tônica da sociedade de consumo contemporânea, ao privilegiar soluções rápidas que, longe de propor mudanças estruturais, lançam uma série de medidas paliativas e superficiais. Programas nos moldes do Tolerância Zero, proposto inicialmente em Nova York, baseados numa criminologia conservadora – que identifica criminalidade com exclusão social e, portanto, confunde o combate à criminalidade com o controle dos excluídos – amoldam-se perfeitamente ao período de descrédito e desmantelamento que marca o Estado de bem-estar na maioria dos países desenvolvidos do ocidente, reflexo de uma sociedade extremamente individualista, na qual o Estado vem desempenhando uma função basicamente penal.
A lógica por detrás desses programas imediatistas é absurda. Na prática, o programa Tolerância Zero, por exemplo, implica jogar criminosos leves nas malhas da justiça, por entender que pequenas infrações afetam a qualidade de vida e acabam por disseminar um terreno fértil de atração de toda sorte de criminalidade, constituindo um chamariz natural à ação dos bandidos mais perigosos. Tais medidas foram implementadas nos países desenvolvidos como um claro reflexo de desmantelamento do Estado de bem-estar, entretanto, a estrutura social dos países desenvolvidos – a assistência ainda que reduzida prestada pelo Estado, aliada ao crescimento econômico e às atividades perpetradas pela sociedade civil organizada, através das organizações privadas, fundações, igrejas, entidades filantrópicas, etc. – em que pese um menor envolvimento efetivo do Estado, garante-lhes uma rede de proteção mínima.
Acontece que em países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, essa rede de proteção mínima não atinge a maioria da população. Assim, a realidade mostra-se um tanto mais complexa. Importar tais programas à realidade brasileira implica maquiar com ares de novidade padrões antigos.
Diante das várias contestações e desmistificações que o programa Tolerância Zero sofreu, inclusive, dentro dos Estados Unidos [02], constata-se que a recepção favorável no Brasil tem menos a ver com sua suposta eficiência na redução dos crimes do que com sua eficácia simbólica no reforço de estereótipos correntes na sociedade brasileira. Parte-se de algumas idéias falaciosas e chega-se a conclusões que legitimam políticas públicas igualmente falaciosas. Partindo-se da idéia de que pobres, negros e favelados são naturalmente propensos ao crime, sobressaem os discursos que apóiam políticas assertivas, inclusive, aceitando a violência policial como uma ferramenta legítima da defesa da sociedade. No caso da sociedade brasileira, a violência ganha incremento expressivo por conta da truculência policial ilegítima.
A ideologia por trás desse discurso encaixa-se perfeitamente ao individualismo exacerbado inerente à sociedade de consumo contemporânea, para o qual o único responsável pelo crime é o próprio criminoso. Quando se deixa de acreditar na possibilidade de reabilitação e, principalmente, quando se perdem de vista as causas sociais da criminalidade, o Estado libera-se para canalizar seus esforços nesse campo para a vigilância e a repressão. Desse modo, longe de implementar uma instituição de segurança pública que promova a cidadania, essa linha de ação é extremamente falaciosa, vez que, na prática, implica a substituição do terror imposto pela criminalidade violenta, em geral pelo terror imposto pela polícia.
A apropriação que se faz no Brasil do rótulo da Tolerância Zero revelaria, de um lado, coincidência em relação à visão de mundo dominante nos países ocidentais desenvolvidos – no que diz respeito aos aspectos ideológicos subjacentes à nova forma de gestão da segurança pública – e, de outro, um ambiente de relações sociais altamente propício à incorporação do discurso modernizante associado a tal rótulo. O individualismo exacerbado nos une aos países centrais, enquanto nossa desigualdade estrutural, refletida nas relações sociais hierárquicas, confere às novas estratégias de combate à criminalidade lá formuladas uma repercussão inusitada em terras nacionais, assumindo a função de legitimar, com seu discurso travestido em postulados que reivindicam o estatuto de ciência, a ilusão de que se está diante de uma mudança substantiva em relação aos padrões do passado. [03]
Tais soluções, perpetuando a estrutura de dominação, mostram-se extremamente cômodas diante da abissal desigualdade brasileira: por um lado, no que tange à criminalidade de rua, apresenta-se uma política criminal que, de forma míope, centra o âmago de suas ações no endurecimento das leis penais e numa política de segurança pública que exorta o uso da truculência policial, alcançando os pequenos delitos e limpando as áreas nobres das cidades dos seres inconvenientes, utilizando duramente o sistema policial, nem sempre dentro da legalidade, para o controle dos excluídos; e, por outro lado, no que tange à criminalidade própria dos poderosos, apresenta-se um promocional endurecimento da legislação penal, legisla-se de forma atabalhoada, tal qual vem acontecendo desde o início da década de 90 no Brasil, entregando à sociedade uma série de leis penais em sua maioria inaplicáveis pela simples falta de técnica legislativa que as tornem viáveis, ou pela simples falta de vontade política, vez que uma efetiva aplicação de tais leis criminalizaria condutas próprias das classes dominantes.
Portanto, um programa tal qual o Tolerância Zero – que propõe voltar a estratégia da segurança pública à contenção dos pequenos delitos e das violências que causam uma intranqüilidade mais imediata, ou seja, a contenção de toda sorte de incivilidades – ao trazer soluções meramente paliativas, sem efetivas mudanças estruturais, encontra ambiente extremamente acolhedor numa democracia inconclusa como a brasileira, cujas Instituições fragilizadas e corrompidas não conseguem articular respostas efetivas à criminalidade das elites, maquiando sua incapacidade estrutural com medidas eminentemente promocionais e simbólicas.
Nesse ínterim, o sistema jurídico-penal é alvo de constantes propostas de mudança, que ocorrem de forma fragmentada, por meio de leis muitas vezes elaboradas ao sabor dos clamores da opinião pública, manipulados e ampliados pela mídia, sem uma unidade capaz de garantir um mínimo de segurança jurídica e coerência interna. Novos delitos são criados, surgem novas áreas de criminalização, novos procedimentos são propostos, tudo na tentativa de recuperar a legitimidade e eficácia perdida frente a uma realidade social que escapa aos mecanismos institucionais de controle penal.
2.ENDURECIMENTO DA LEGISLAÇÃO PENAL COMO RESPOSTA AO AUMENTO DA CRIMINALIDADE
Dentre as novas áreas de criminalização surgidas desde o final da década de 80, expandindo as áreas tradicionalmente tuteladas pelo direito penal, cabe mencionar as disposições penais em matéria de delitos econômicos e financeiros (sonegação fiscal, proteção da ordem tributária, etc.); das relações de consumo; tipificação de delitos de discriminação racial ou outras formas de preconceito; da prática de tortura; proteção penal dos órgãos humanos; ampliação da proteção penal ao meio ambiente; tratamento penal diferenciado à criminalidade organizada; tipificação da lavagem de dinheiro; criminalização do assédio sexual; proteção penal à propriedade industrial, propriedade intelectual de programas de informática e ao direito autoral; tratamento diferenciado aos presos com ligação ao crime organizado; restrição à posse e ao porte de armas de fogo, além da criminalização do tráfico de armas de fogo.
O primeiro e emblemático exemplo das recentes iniciativas estimuladas pela preocupação pública com a criminalidade no Brasil pode ser constatado com a edição da Lei nº 8.072/90, conhecida como Lei dos Crimes Hediondos, aprovada em 25 de julho de 1990, em resposta a uma onda de seqüestros envolvendo vítimas provindas das classes mais abastadas. A Carta política de 1988, em seu artigo 5º, XLIII, [04] deu respaldo à repressão penal aos crimes considerados hediondos. Alberto Silva Franco teceu algumas valorosas ponderações sobre os fatos sociais e políticos que motivaram a elaboração da lei de crimes hediondos:
O que teria conduzido o legislador constituinte a formular o nº XLIII do art. 5º da CF? O que estaria por detrás do posicionamento adotado? Nos últimos anos, a criminalidade violenta aumentou do ponto de vista estatístico: o dano econômico cresceu sobremaneira, atingindo seguimentos sociais que até então estavam livres de ataques criminosos; atos de terrorismo político e mesmo de terrorismo gratuito abalaram diversos países do mundo; o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins assumiu gigantismo incomum; a tortura passou a ser encarada como uma postura correta dos órgãos formais de controle social. A partir desse quadro, os meios de comunicação de massa começaram a atuar por interesses políticos subalternos, de forma a exagerar a situação real, formando uma idéia de que seria mister, para desenvolvê-la, uma luta sem quartel contra determinada forma de criminalidade ou determinados tipos de delinqüentes, mesmo que tal luta viesse a significar a perda das tradicionais garantias do próprio Direito Penal e do Direito Processual Penal. [05]
Em seu art. 1º, a Lei nº 8.072/90 definiu como hediondos os delitos de homicídio qualificado e homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio, o latrocínio, a extorsão qualificada pela morte, a extorsão mediante seqüestro e, na forma qualificada, o estupro e o atentado violento ao pudor, a epidemia com resultado morte, falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, consumados ou tentados. O parágrafo único do art. 1º da mesma lei rotulou também como hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, tentado ou consumado. [06]
A referida lei apenas enumera os crimes que são enquadrados sob o rótulo de hediondo, entretanto, em nenhum momento procurou conceituar o significado de tal rótulo. Apesar de não haver consenso sobre tal significado, implicando numa série de críticas a tamanha falta de técnica legislativa, a Lei 8.072/90 estabeleceu, em seus arts. 2º e 3º, uma série de medidas repressoras a serem aplicadas aos delitos hediondos e aos a eles equiparados (tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo), tais como: não suscetibilidade de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória; não possibilidade de progressão de regime no cumprimento de pena [07]; extensão do prazo permitido para a prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, podendo chegar a 60 (sessenta) dias e o aumento do prazo para concessão de livramento condicional, passando a exigir o cumprimento de mais de dois terços da pena. [08]
O art. 6º da Lei dos Crimes Hediondos aumentou a pena dos delitos rotulados como hediondos. Para exemplificar, o latrocínio, que tinha pena mínima de quinze anos de reclusão passou ao mínimo de vinte anos; a extorsão mediante seqüestro, cuja pena mínima era de seis anos de reclusão, passou a ter o mínimo no patamar de oito anos. O mesmo crime, se praticado contra menor de dezoito anos ou por quadrilha, ou se durar mais de 24 horas, que tinha pena mínima de oito anos passou para doze anos de reclusão. Se do seqüestro resultar a morte, a pena mínima, que era de vinte anos, passou para 24 anos. O estupro, que tinha pena mínima de três anos de reclusão e oito como máxima, passou ao mínimo de seis anos e máximo de dez anos. O atentado violento ao pudor teve a pena de dois a sete anos aumentada para seis a dez anos, respectivamente.
Ademais de tais recrudescimentos, uma das maiores e mais polêmicas inovações trazidas pela Lei dos crimes hediondos implicou a introdução no ordenamento jurídico brasileiro da figura da delação premiada, prevendo que o participante e o associado que denunciarem à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terão a pena reduzida de um terço a dois terços.
Não é o caso de fazer referência a cada uma das leis responsáveis pelo caos legislativo que nos perpassa desde o início da década de 90. [09] Cada uma de per si e todas em seu conjunto promoveram uma sinistra incoerência em nosso sistema penal contemporâneo. Entretanto, para que se desenhe uma visão panorâmica de nosso caótico cenário legislativo, tangenciaremos alguns pontos centrais.
A Lei 7.492/86, conhecida como Lei do colarinho branco, instituiu crimes contra o sistema financeiro. Entretanto, dada à dificuldade de legislar, criminalmente, quando se pretende regulamentar as atividades do sistema financeiro, o legislador trouxe à baila uma lei já defasada e eivada de imperfeições técnicas. A começar pela imprecisão do objeto a ser penalmente tutelado. Nesse sentido, vejamos o alerta de Manoel Pedro Pimentel:
(...) as figuras penais previstas nesta Lei n. 7.492/86, embora denominadas crimes contra o sistema financeiro nacional, devem ser entendidas, com sentido amplo, de mercado financeiro, mercado de capitais, abrangendo os seguros, o câmbio, os consórcios, a capitalização ou qualquer outro tipo de poupança, que, na verdade, situam-se no campo do Direito Econômico, e não do Direito Financeiro. [10]
Consoante nosso entendimento, esses crimes deveriam ser denominados ‘contra a ordem econômica’, pois os delitos contra a ordem financeira são aqueles que atentam contra a ordem financeira propriamente dita, a política financeira do Estado, o emprego irregular de verbas públicas, o excesso de exação, a violação de sigilo ou a fraude em concorrência pública, os contratos irregulares de serviços ou de obras públicas, e outros semelhantes, muitos deles já previstos no Código Penal vigente como crimes praticados contra a Administração. [11]
Porém, o certo é que a legislação sobre a matéria, Lei n. 7.492, de 16/6/86, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional, nasceu com imperfeições. À Câmara dos Deputados restou optar pela aprovação da Lei na forma como estava, aceitando as modificações do Senado Federal, ou não aprová-la. O Relator Deputado João Gilberto aduziu:
Infelizmente, fazemos este registro porque o Projeto suscitou debates amplos na comunidade jurídica do País e pela Imprensa e muitas das contribuições ou críticas apresentadas não mais podem ser resolvidas. É o caso, dentre outros, dos seguintes pontos: - A omissão quanto a que organismo exercerá a polícia judiciária nos crimes previstos neste Projeto; a matéria não foi tratada nem pela Câmara, nem pelo Senado, não mais pode ser abordada. – A prisão preventiva provocada pelo clamor público, prevista no projeto nas suas duas versões, e criticadas por alguns juristas como um passo para o reconhecimento ao direito ao linchamento... – A prisão administrativa pelo Ministério da Fazenda. [12]
As impropriedades do novo diploma foram sanadas, em parte, pelo veto presidencial. Destaca-se o veto parcial do art. 30, que trazia como justificativa para a decretação da prisão preventiva o clamor público provocado pelo crime e a prisão administrativa do art. 32.
Mesmo sancionando a lei, o Presidente da República, deixou consignado na Mensagem n° 252 que:
As críticas ao resultado dos trabalhos da Comissão de Justiça, feitas por quantos desejaram trazer-lhe aperfeiçoamentos, estão em fase final de catalogação e avaliação, para eventual incorporação ao anteprojeto, o qual, tão logo esteja em condições de ser apreciado pelo Congresso Nacional, encaminharei como projeto de lei à apreciação de VV. Exas. [13]
Dentre as críticas feitas, a falta de precisão permeia a descrição dos tipos penais criados, caracterizados pelo excesso de elementos normativos – tipos abertos, com referências exemplificativas ou vagas, indefinidas ou equívocas – o que dá imprecisão aos limites de regulação, com perigo à garantia da reserva legal. A título ilustrativo, citemos a redação de seu art. 23 [14], que prevê forma especial de prevaricação, constata-se que a aplicação desse dispositivo depende, além do socorro ao Código Penal, no qual está o conceito de funcionário público, que se entenda o que é ato de ofício, além de sistema financeiro nacional e, também, interesses e valores da ordem econômico-financeira.
Tais impropriedades técnicas aliadas à dinâmica do mercado mobiliário – com acentuada influência das práticas de países mais evoluídos e experientes, acentuando-se isso pela globalização da economia – e ao apego à responsabilidade penal individual, restringem sobremaneira a eficácia da Lei 7.492/86. A fixação da responsabilidade penal da pessoa jurídica, por nossa Constituição, no § 5º do art. 173, encontra grande resistência no sistema romano-germânico, ao contrário do anglo-saxão. No Brasil, em relação aos crimes econômicos, no máximo admite-se a responsabilização da pessoa jurídica em matéria de Direito Administrativo Penal, como se vê do art. 15 da Lei n. 8.884/94, ao dispor que esta lei aplica-se às pessoas físicas e jurídicas de direito público ou privado. Em nosso país, a responsabilidade penal da pessoa jurídica veio a ser introduzida em 1998, através da Lei 9.605/98, que tipifica crimes contra o meio ambiente. Portanto, até o presente momento, as pessoas jurídicas só podem ser responsabilizadas penalmente, no Brasil, quando se envolvam em práticas de crimes ambientais previstos na Lei 9.605/98.
Além das já citadas leis relativas à defesa da ordem econômica, embora a Lei 7.492/86, equivocadamente, aponte o sistema financeiro como objeto de proteção, há um elenco significativo de outras, do mesmo gênero, promulgadas durante a década de 90. São as que regulamentam os crimes contra a ordem tributária e a relação de consumo; os crimes contra a previdência; os crimes falimentares; os crimes de improbidade administrativa, etc. Em muitos casos há dois, ou mais, diplomas regendo fatos semelhantes, com sanções diferentes, sem que um haja revogado o outro. Além de representar uma afronta aos princípios do direito penal, principalmente, ao da taxatividade da lei penal e ao da proporcionalidade das penas, esse tipo de prática acaba favorecendo a impunidade.
Nesse sentido podemos citar as promulgações quase concomitantes do Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078 de setembro de 1990 – e da Lei que tipificou condutas contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo – Lei 8.137 de dezembro de 1990. Os delitos contra as relações de consumo (arts. 61 ao 80 do CDC) e os enumerados no art. 7º da Lei 8.137/90, além de alguns tipos da Parte Especial do Código Penal (tais como os crimes contra a saúde pública, especificamente, os tipificados entre os arts. 272 ao 278) e outros previstos na Lei 1.521/51 (tipifica crimes contra a economia popular) apresentam pontos comuns de incidência, passagens redundantes e, portanto, conflitantes, a exigir do intérprete um esforço fenomenal de interpretação. [15] A dificuldade se acentuou com a publicação da Lei 8.137/90 que, três meses após a edição do CDC, ignorando a ordenação sistemática, veio a colidir frontalmente com este, desenhando um verdadeiro "cipoal de normas penais", no dizer de Alberto Zacharias Toron. [16] Desse modo, pecamos não pela falta, mas pelo excesso de leis penais que tornam impossível uma acurada interpretação e, portanto, dificulta sobremaneira a punibilidade em matéria de proteção penal das relações de consumo, economia e saúde pública.
Outra grande preocupação do legislador brasileiro a partir da década de 90 foi o combate ao crime organizado. O crime organizado, acentuado sobremaneira nas últimas décadas através das relações no mercado global, acarreta forte influência econômica e política sobre o destino das sociedades contemporâneas, acentuando ainda mais as diferenças sócio-econômicas entre as nações e causando um verdadeiro desequilíbrio de forças no mercado financeiro. Diante desse quadro, a comunidade internacional passou a demonstrar preocupação frente ao tema, emitindo regulamentações e recomendações para um efetivo combate desse tipo de criminalidade. [17]
No Brasil, a insuficiência estrutural dos poderes públicos e do sistema legislativo para o combate do crime organizado é notória. Notícias sobre grandes casos de corrupção pública, movimentações ilícitas de capitais, utilização indevida de verbas públicas e de fundos de campanhas políticas tornaram-se freqüentes. Em resposta ao aumento da criminalidade organizada, houve um incremento significante em nossa legislação penal especializada. Dentre as principais leis que tocam ao tema, merecem menção: a Lei 9.034/95 (Lei do crime organizado); a Lei 9.613/98 (Lei de lavagem de dinheiro) e a Lei 10.409/02, que não teve vigência efetiva, vez que todo o capítulo penal foi vetado, sendo revogada pela Lei 11.343/06 ("a nova lei de drogas").
A Lei 9.034/95 – instituída para combater o crime organizado no Brasil - sequer foi capaz de definir o que seria crime organizado e acabou aproximando esse conceito do crime de quadrilha ou bando, através da redação adotada em seu art. 1º.
Como se não bastasse a imprecisão ao conceituar organização criminosa, o legislador brasileiro, encantado com a vinda de juízes italianos para o Brasil para retratar a experiência da Justiça italiana contra as conhecidas máfias locais, resolveu simplesmente copiar o modelo italiano, sem se preocupar com a técnica processual e o sistema de investigação criminal brasileiros e inovou no art. 3.º da Lei n.º 9.034/95, criando a esdrúxula figura de juiz inquisidor em pleno processo penal acusatório, comprometendo um dos princípios centrais do processo penal brasileiro – a imparcialidade do juiz.
(...) o poder político brasileiro, ao constatar a falência da Polícia e das Forças Armadas no combate ao crime organizado, buscou no juiz de Direito a figura necessária para esse combate, que poderá vir a ser realizado por magistrados sem qualquer tipo de experiência ou recursos, verdadeiros ‘delegados frustrados’. [18]
Esse dispositivo legal teve recente modificação ocasionada pela Lei n. 10.217/01. Esta lei trouxe outra inovação perigosa na legislação processual pátria ao acrescentar o inciso V, ao artigo 2º da Lei 9.034/95, com a previsão de infiltração de agentes de polícia ou de inteligência no crime organizado, com o objetivo de colher provas, mediante circunstanciada autorização judicial. Tal previsão não especifica quem poderá ser infiltrado, dando margem, inclusive, a especulação sobre a possibilidade de infiltração da polícia militar, num desrespeito flagrante à disposição constitucional do art. 144 da Constituição Federal, que prevê a tarefa de investigação às polícias judiciárias, isto é, à Polícia Federal e às polícias civis estaduais. Também se critica a inclusão da expressão agentes de inteligência no dispositivo da lei, vez que as agências de inteligência não visam colher provas para o processo penal, mas, sim, subsidiar os governos com informações colhidas em diversas áreas com o fim de prevenir alterações no status quo vigente.
Complementando esse quadro, e sob influência de fortes pressões da comunidade internacional, [19] surgiu a Lei 9.613 de 1º de março de 1998. Essa lei seguiu as linhas gerais traçadas pelos principais documentos internacionais [20] (principalmente a Convenção de Viena de 1988 [21]), buscando a punição específica e autônoma da conduta de "lavagem de dinheiro" e inaugurando todo um sistema de controle de operações financeiras e de fiscalização da movimentação de capitais.
Os crimes estão previstos no Capítulo I da Lei 9.613/98, onde estão descritos os diferentes comportamentos típicos e estabelecidas as regras especiais sobre a dosimetria da pena (posto que disciplina sobre a tentativa, sobre situações de especial reprovabilidade, como o conceito de habitualidade, e, por fim, sobre a diminuição da pena ante o reconhecimento do instituto da delação premiada, respectivamente nos §§ 3º, 4º e §5º do artigo 1º, que representa a figura fundamental).
A construção típica do art.1º da Lei nº 9.613/98 apresenta a seguinte estrutura: a) o caput, complementado pelos incisos I a VII, descrevendo as principais formas de lavagem; b) em seguida temos as formas especiais ou derivadas descritas nos parágrafos 1º e 2º; c) por fim, as causas ou circunstâncias relacionadas a dosimetria da pena, que irão influenciar no cômputo da resposta penal.
Tal qual em outros países, o Brasil passa a considerar como delitiva a conduta de atribuir aparência de licitude ao dinheiro, bens e valores que estejam relacionados com determinados crimes anteriores. Para tanto, elabora um elenco ou lista de "delitos precedentes" que limitarão a incidência da lei nova. Entre os incisos I a VII do art. 1º, oferece uma lista fechada, numerus clausus, de maneira que somente teremos o crime de lavagem de dinheiro se os valores ocultados ou dissimulados forem provenientes de algum dos delitos previstos nestes incisos. Entretanto, o sujeito do crime não precisa ser, necessariamente, o mesmo autor dos crimes anteriores, previstos nos incisos do art. 1º, vez que o crime de lavagem de dinheiro é um delito autônomo. Em razão disso, não é exigida a prova cabal dos delitos antecedentes (sentença penal condenatória), bastando apenas indícios da prática das figuras mencionadas nos incisos I a VII, para que se complete a tipicidade.
A técnica de encerrar em uma lista um determinado número de delitos, apesar de facilitar a interpretação, é passível de crítica, posto que implica uma necessária e contínua revisão da legislação penal. Muitos países optaram por não estabelecer um rol específico (como a Espanha, por exemplo, em seus arts. 310 e seguintes do novo Código Penal de 1995) preferindo apenas exigir que a lavagem de dinheiro esteja relacionada apenas com delitos anteriores considerados "graves" em função de sua pena. Em modelos desse tipo, o próprio Código Penal define o que são delitos graves, a partir dos parâmetros mínimos e máximos de pena dentro dos quais se encaixam (pena mínima e pena máxima).
A simplicidade do artigo 1° é apenas aparente. O artigo pretende ilustrar, em um único dispositivo, todos os aspectos da imputação, concentrando tanto a descrição de condutas como circunstâncias passíveis de alterar a dosimetria da pena. O resultado é um "mosaico punitivo" que passa a impressão inconsistente de abarcar todos os aspectos fundamentais da matéria. A pluralidade de verbos é tamanha que torna bastante complexa a interpretação dos dispositivos e, numa clara tentativa de abranger o máximo de comportamentos possíveis e evitar um vácuo de proteção penal, peca-se pela falta de clareza, afrontando a taxatividade da lei penal.
Em relação à questão das drogas ilícitas, desde 1938, com o Decreto-Lei n 891/38, posteriormente incorporada ao artigo 281, do Código Penal, o Brasil legisla penalmente sobre o tema. Desde o início, sua concepção foi criminalizadora. Diversas alterações legislativas, no curso da história, culminaram na Lei 6.368/76, estabelecida durante o período ditatorial, embora tenha regulamentado a questão até a promulgação da nova lei de tóxicos – a Lei 10.409/02. Esta lei foi promulgada com boa parte de artigos vetados, inclusive, todo seu Capítulo III, que tratava dos crimes e das penas. Dessa forma, após uma espera de mais de dez anos, seguimos com as mesmas regras no que tange à matéria penal.
Com o advento da lei 10.409/02, ademais de não termos implementado alguns avanços na seara penal, que estavam previstos na parte vetada da lei, tais como: o expresso reconhecimento do princípio da progressão de regime de cumprimento de pena; a distinção entre usuário e traficante e a pretensão de acabar, definitivamente, com a pena de prisão para o usuário de drogas – seguimos estigmatizando o usuário. A nova lei adotou o modelo americano de justiça terapêutica, segundo o qual todo usuário é doente, devendo ser submetido a tratamento compulsório. Estas relações acríticas geram políticas centradas no binômio repressão/ abstinência que, após muitos anos de violência, violação de direitos, omissão de socorro e falta de política de saúde adequada aos usuários de drogas, consomem imensa soma de dinheiro público, sem resultado concreto.
A Lei 10.409/02, longe de viabilizar uma política coerente sobre drogas no país, tornou o cenário ainda mais caótico, posto que o tema passou a ser tratado através de uma justaposição entre seu texto legal e a lei anterior, consubstanciando um enorme desafio de hermenêutica. Apesar do veto a todo o capítulo III, que disciplinaria os crimes e as penas, o capítulo IV, que disciplina o procedimento penal, foi mantido, com pequenos vetos. Entretanto, o capítulo IV não pode existir autonomamente, vez que reporta sua aplicação aos crimes previstos no capítulo III, inteiramente vetado.
O advento da tão aguardada quão frustrante Lei 10.409/02, que veio a ser efetivamente revogada quatro anos depois, em 2006, pela Lei 11.343, representa um dos pontos culminantes a ilustrar mais de uma década de leis penais promocionais e simbólicas que, longe de auxiliar no combate à criminalidade, acabam por impossibilitar qualquer exegese coerente sobre os temas legislados. Violação de residências sem mandados judiciais, extração de pátrio poder de mães usuárias, internações hospitalares sem autorização dos pacientes em questão e estabelecimento de penas iguais ou superiores às de homicídio são alguns dos exemplos do tratamento repressor dispensado aos crimes relacionados ao uso de drogas ilícitas, demonstrando uma incansável necessidade de rediscussão da legislação do país concernente ao tema. [22] A frustração foi ratificada pela Lei 11.343, que manteve boa parte dos equívocos da Lei 10.409, mantendo o usuário dentro do sistema penal, apenas deixando de lhe aplicar pena de prisão, seguindo na linha do tratamento compulsório, ademais de ter aumentado a pena mínima de 3 para 5 anos para os crimes de tráfico e equiparados (artigo 33 e § 1°), a fim de evitar a substituição por penas restritivas de direitos, o que acabou vedando expressamente no parágrafo 4° do artigo 33, bem como no texto do artigo 44. [23]
A resposta estatal mais sintomática, no que se refere a medidas de natureza eminentemente simbólicas para a contenção da criminalidade, após anos de descaso para com o sistema carcerário nacional, culminou com a promulgação da Lei 10.792/03, que implementou o chamado Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). O RDD, a princípio, surgiu como iniciativa da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, tendo sido instituído por esta secretaria através da resolução SAP n. 026/01. Esta iniciativa do governo paulista estava eivada de inconstitucionalidade, vez que o executivo não tem competência constitucional para intervir em matéria penal, tampouco em matéria penitenciária (competências estabelecidas, respectivamente, nos arts. 22, I e 24, I, CF). A SAP 026/01 criou uma nova modalidade para o cumprimento da pena privativa de liberdade, que ficou denominado como "regime fechadíssimo", regime este não previsto em lei (v.g. art. 33 caput do Código Penal). Ademais, esta resolução SAP n. 026/01 autorizava a transferência para o RDD, a critério exclusivo da autoridade administrativa, sem que fosse necessária autorização judicial, em desrespeito flagrante à Lei de Execução Penal (LEP – que não consta tenha sido revogada pela resolução).
A resolução tampouco exigia prática de falta grave para transferência para o RDD e exatamente porque estabelece que esse regime de cumprimento de pena é aplicável "aos líderes e integrantes de facções criminosas e aos presos cujo comportamento exija tratamento específico" (art. 1º), abre espaço para qualquer tipo de arbítrio por parte da autoridade responsável pela custódia do preso. A resolução, no entanto, permitia a transferência para o RDD sem qualquer participação da autoridade judicial e limitava-se a estabelecer que a remoção do preso ao RDD poderia ser solicitada pelo diretor técnico de qualquer unidade, em petição fundamentada, ao coordenador regional das unidades prisionais que, se estivesse de acordo, encaminharia o pedido ao secretário adjunto, para decisão final (art. 2º).
Apesar da patente inconstitucionalidade da medida adotada pelo governo paulista, o governo federal, em resposta a alguns fatos que conclamaram uma reação aos clamores públicos, acabou transformando tais medidas em lei. A princípio, premido pela necessidade de custodiar o preso Luís Fernando da Costa (nacionalmente conhecido por "Fernandinho Beira-mar"), o governo federal se manifestou sobre a necessidade de serem construídas unidades prisionais federais e mesmo de auxiliar os Estados a manter penitenciárias de segurança máxima. Em momento subseqüente, o assassinato do juiz Alexandre Martins de Castro Filho, em março de 2003, supostamente levado a cabo por ex-policial militar que se evadira de unidade prisional no Espírito Santo, parece ter impulsionado a iniciativa da criação do RDD em âmbito nacional, mediante modificação da LEP. Desse modo, o Projeto de Lei 7.053, que tinha sido enviado em 2001 ao Congresso pela Presidência da República, em 26 de março de 2003, foi aprovado na Câmara dos Deputados e seguiu para o Senado Federal, agora modificando vários dispositivos da Lei de Execução Penal, implementando em âmbito nacional o Regime Disciplinar Diferenciado, através da Lei 10.792 de 1º de dezembro de 2003. [24]
A Lei 10.792/03 foi alvo de severas críticas advindas de vários juristas, inclusive, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. [25] À época, o presidente deste Conselho, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, junto com os demais conselheiros reunidos para o debate sobre o RDD – Maurício Kuehne, Laertes de Macedo Torrens e Carlos Weis – lançaram a Resolução n. 10 de 12 de maio de 2003, condenando o RDD. Segundo entendimento do Conselho, a LEP já traz instrumentos suficientes à contenção de indisciplina por parte do preso, ao permitir isolamento por período não superior a 30 dias. Desse modo, os membros dessa Comissão entenderam que não se deve confundir sanção disciplinar com regime de cumprimento de pena e, muito menos, buscar, no isolamento em "solitária" a solução para o funcionamento, em segurança, nas unidades prisionais brasileiras, rejeitando, dessa forma, qualquer projeto de lei sobre regime disciplinar ou correlato.
Embora uma análise lúcida entenda que o RDD implementou um novo regime de cumprimento da pena privativa de liberdade – o fechadíssimo –, a Lei 10.792/03 o caracterizou como modalidade de sanção disciplinar, conforme elucida o art. 53, V, da Lei de Execução Penal. As hipóteses em que se faz cabível estão reguladas no art. 52 da LEP: prática de fato previsto como crime doloso, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas.
O RDD possui as seguintes características: 1ª) duração máxima de 360 dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; 2ª) recolhimento em cela individual; 3ª) visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas; 4ª) o preso terá direito à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol.
Segundo o disposto no § 1º do art. 52, o RDD também poderá atingir presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade. Por fim, dispõe o § 2º do mesmo dispositivo que estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando. Afora a necessidade de motivação judicial, exigida pela LEP, em seu art. 54, o modelo estabelecido é quase uma cópia integral do estabelecido pelo governo paulista a partir de 2001, merecendo, portanto, as mesmas observações críticas.
O RDD traz características que nos remontam a um direito penal do autor e a idéias reinantes no século XIX, próprias da Escola Positiva, onde a punição embasava-se numa análise da personalidade do autor com o intuito de se aferir sua maior ou menor periculosidade. Vez que não se faz necessário o cometimento de falta grave ou de crime – bastando que o preso, inclusive provisório, demonstre "altos riscos para a ordem e segurança..." ou recaiam sobre ele fundadas suspeitas (ou seja, bastam meras especulações) de "envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilhas ou bandos" – que dúvida resta de que se está aplicando um regime mais duro com base em juízo de valor ou em meras suposições sobre a personalidade/periculosidade do sujeito? Parece-nos uma adaptação brasileira do tratamento que vem sendo dado aos terroristas na Europa e nos Estados Unidos, principalmente com o recrudescimento do tratamento penal pós 11 de setembro, intitulado dogmaticamente como "direito penal do inimigo".
Encerremos a análise dos pontos culminantes da legislação de emergência que se instalou em nosso ordenamento nesses últimos anos, analisando o tratamento penal dado às armas de fogo no país. As diretrizes internacionais, propulsadas pela ONU, indicam a necessidade de intensificar o controle sobre as armas de fogo e recrudescer o combate ao tráfico de armas. O Brasil, na sanha incoerente do combate à criminalidade, mais uma vez, optou por transformar em matéria penal uma questão que poderia ser resolvida tão-somente na esfera administrativa. As armas de fogo vêm sendo objeto de lei penal desde a Lei 9.437/97, que, inclusive, num ápice de incoerência, chegou a tipificar, como crime autônomo, o uso de arma de brinquedo. Esta lei foi revogada pela Lei 10.826/03, que estabeleceu o Estatuto do Desarmamento.
A Lei 10.826/03 ab-rogou a Lei 9.437/97, ou seja, revogou-a inteiramente, tendo em vista que a legislação nova disciplina, integralmente, sobre registro, posse, comércio, competência administrativa, etc. Os aspectos materiais que não foram reproduzidos, não mais prevalecerão no ordenamento jurídico, tais como: o uso de arma de brinquedo e o aumento da pena por ser o agente servidor público ou ter condenação anterior por determinados crimes.
Assim, entre a Lei 10.826/03 e a Lei 9.437/97 houve continuidade normativa. Entretanto, como os arts. 30 e 32 da lei 10.826/03 concederam um prazo de 180 dias (que foi posteriormente prorrogado até o dia 23 de junho de 2005, pela medida provisória n. 229 de 17 de dezembro de 2004) para que os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas, a regularizem, até expirar o prazo, não há como prender ou acusar qualquer indivíduo pelo porte ilegal de arma de fogo.
Inúmeras inconstitucionalidades foram levantadas com o advento da Lei 10.826/03, devendo-se destacar a inafiançabilidade dos crimes de porte de armas de uso permitido e de disparo ilegal de armas de fogo (previstos nos arts. 14 e 15), num desrespeito ao artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal. Em relação à posse ou porte de armas de uso restrito, ao comércio ilegal de armas e ao tráfico internacional de armas (previstos respectivamente em seus arts. 16, 17 e 18), a pena mínima superior a dois anos, já invalida a fiança, de acordo com o artigo 323, I do Código de Processo Penal. Dessa forma, a Lei 10.826/03 omitiu a inafiançabilidade, tornando-os, entretanto, insuscetíveis de liberdade provisória, ferindo o dispositivo assegurado no art. 5º, LXVI da Carta Magna.
A linha político-criminal que permeia o Estatuto do Desarmamento vislumbra na difusão de armas clandestinas e na falta de habilitação daqueles que fazem uso dessas armas, causas da explosão da violência. É possível afirmar que a Lei 10.826/03 pretende ser um fator de manutenção da paz pública. Inspirado por tão louvável escopo, o legislador brasileiro, mais uma vez, se antecipa aos fatos criminosos que poderiam vir a ser perpetrados através do uso das armas mencionadas no Estatuto e, portanto, acha pertinente impor uma resposta penal antes que qualquer lesão ao bem jurídico aconteça, ou seja, punir os prováveis agentes desses futuros crimes que podem advir do uso impulsivo de uma arma de fogo.
A tese de que a criminalidade seria incrementada pela posse, porte e uso legal de armas de fogo é simplista e peca pela desconsideração da anomia social. Independente de qual tenha sido a intenção do legislador, e sabemos que houve toda uma campanha de conscientização e sensibilização da população, o tema foi e continua sendo superficialmente explorado. Os inúmeros acidentes e crimes que são perpetrados pelo uso indevido de armas de fogo no mundo e, em grande escala, no Brasil são fatos incontestes, comprovados estatisticamente. [26] Desse modo, é louvável que o Estado conscientize a população em relação a tais riscos.
Entretanto, o simplismo está em achar que com o fato de se desarmar a população civil, ou seja, o cidadão que não está envolvido na criminalidade, se conseguirá diminuir a violência perpetrada através das armas de fogo. A criminalização da posse e porte de arma da forma como é imposta no Brasil se assemelha a uma vã tentativa de materialização do mal, como se este fosse imanente ao instrumento. Erra-se largamente o foco de análise, posto que não há como estabelecer uma equação direta entre diminuição de armas (legais) e diminuição da criminalidade. As raízes da violência estão em uma complexidade de fatores e apresentam uma estreita relação com os valores intrínsecos de cada sociedade.
Uma abordagem complexa da questão deve atingir de forma precípua o contrabando de armas, uma vez que o crime organizado se alimenta de armas ilegais. Ademais, não se nega a necessidade de um rígido controle sobre as armas de fogo que circulam dentro do país. Entretanto, seria mais razoável que esse controle fosse feito administrativamente, através da exigência de requisitos mais rígidos para a regularização da posse e porte de armas de fogo, através do cadastro e identificação minuciosos das armas de fogo, dentre outras medidas administrativas.
Acontece que o legislador pátrio, mais uma vez, utilizou o direito penal como primeira medida, criminalizando e entendendo como inafiançáveis condutas que, longe de diminuir a criminalidade, voltarão o aparato repressor em direção aos cidadãos que não estão envoltos na criminalidade organizada. A lei se converte, desse modo, num meio injusto de colocar cidadãos honestos à margem da lei, ao ignorar em termos absolutos a garantia individual à segurança, forçando um grande número à ilegalidade involuntária. Ademais, as garantias da legalidade estrita e da tipicidade fechada das normas penais são ofendidas, na medida em que a Lei reporta-se, sempre, a conceitos e a critérios essenciais para a definição das condutas proibidas, os quais foram fixados pelo executivo, através do decreto regulamentar n. 5.123/04. Realmente, as garantias constitucionais em matéria penal da proporcionalidade e razoabilidade das leis penais, da presunção de inocência, da tipicidade fechada das normas penais, da reserva legal e da individualização das penas não são consideradas pelo Estatuto do Desarmamento.
Mais uma vez, dá-se uma resposta simbólica aos anseios da população por repressão e combate à criminalidade, em grande parte construídos pelos meios de comunicação de massa. A Lei 10.826/03 aparece, portanto, embevecida pela ideologia da defesa social, o que importa na assunção de uma visão maniqueísta da complexidade social. Mais uma vez, a construção da criminalidade encontrou campo fértil na legislação brasileira, em clara substituição à ausência de políticas públicas.
Nossa legislação penal parece sofrer de grave esquizofrenia. De um lado, temos uma constituição cidadã que nos oferece um extenso rol de direitos e garantias individuais. Por outro, uma legislação penal e processual deficiente e arcaica, cujos processos de atualização se dão de forma contraditória, em resposta aos anseios do movimento da lei e da ordem. Resultado disso é a ofensa direta aos fundamentos constitucionais do Estado Democrático do Direito. Esse fenômeno da legislação de conjuntura, que procura suprir a omissão dos governos quanto aos programas de prevenção e controle dos fatos anti-sociais, demonstra claramente a ausência de uma política pública adequada ao controle da violência e da criminalidade.
Após a análise, dentre as várias leis promulgadas a partir da década de 90, de alguns dos pontos mais emblemáticos a respeito da maneira promocional e simbólica com que se vem legislando em matéria penal no Brasil, citemos posicionamento de José Gregori, enquanto ministro da justiça, portanto, em posicionamento oficial como representante direto do Executivo aos temas concernentes à justiça, pela extrema consonância com o cenário delineado até então:
4 - O Direito Penal legislado na década de 90 foi um dos momentos mais dramáticos para o Direito brasileiro, pois era imprevisível que se produzissem em matéria repressiva tantas soluções normativas ao sabor dos fatos, sob o encanto de premissas falsas e longe de qualquer técnica legislativa. Ao lado dessas reformas, e mesmo em contradição a vários de seus postulados, novos institutos importados sem muito critério do direito americano e italiano promoveram uma completa desorganização do que sobrara do sistema legal, promovendo uma exagerada liberalização de situações, muitas vezes, socialmente graves. Some-se a isso a crise penitenciária vivida pelo Estado brasileiro e as frustrantes tentativas legais de corrigi-la pela via de remédios marcados por um forte sentimento de impunidade e tem-se o retrato da legislação penal atual. Uma completa desarticulação discursiva entre institutos, ausência de correspondência destes a uma política criminal efetiva e paradoxos que se avolumavam em quantidade e qualidade impediam que se pudesse chamar de sistema penal o que brotava dessas reformas. [27]
Estudos e propostas visando uma reestruturação do Estado para o combate da criminalidade no Brasil já foram realizados em diversos momentos, pelos mais renomados estudiosos do assunto. Sendo assim, voltamos ao impasse também já aventado por todos que se debruçam sobre o árduo tema em questão: vontade política. Na verdade, falta vontade política em implementar mudanças estruturais efetivas, cujos frutos só seriam colhidos a longo prazo.
As causas profundas da violência estão na forma de o homem contemporâneo enxergar o mundo, em seus valores mais intrínsecos. O individualismo exacerbado, instigado pela ode ao consumo, própria da sociedade capitalista global atual, nos torna tão descartáveis quanto os bens que consumimos. Numa sociedade globalizada, não causa espanto a generalização das soluções imediatistas alardeadas ao redor do mundo ocidental, independente do contexto social específico que vá recepcioná-las.
Repensar esse quadro de violência e criminalidade é repensar nossos próprios valores, fazendo-se necessário, portanto, de uma reestruturação profunda da forma de conviver em sociedade, da maneira de nos governar a nós mesmos e aos outros. Não há uma resposta unívoca ao problema da violência e da criminalidade. A pobreza, a desigualdade social, as práticas policiais violentas e a falta de vontade política não explicam, quando analisadas individualmente e fora do contexto social, as causas da violência e da criminalidade. Portanto, a busca de uma resposta ao cenário brasileiro deve ser contextualizada:
(...) a vontade política, assim como fatores como [sic] desigualdade, pobreza e práticas policiais precisam ser vistos no contexto urbano da sociedade de consumo, da destruição dos laços comunitários pelo tráfico de drogas, da ausência de canais institucionais para solução de conflitos, da socialização em uma cultura que valoriza determinados objetos de consumo como símbolo de distinção social e poder, e da reprodução cotidiana de relações sociais autoritárias entre os agentes do Estado e a população-alvo da vigilância. [28]
A violência chegou a um nível tão endêmico na sociedade brasileira que o resgate do convívio social fraterno não se fará sem a participação efetiva da sociedade civil organizada, que, entretanto, não exclui, ao contrário, necessita destas mudanças estruturais a serem implementadas pelo Estado. Certamente tais mudanças perpassam pela democratização do acesso aos capitais político, social, econômico e cultural, a fim de que não mais se reproduza a co-existência de uma cidadania real e outra de segunda classe, ressaltando a responsabilidade coletiva pela exclusão de classe e pela produção da violência.