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A evolução histórica das teorias legitimadoras do Direito Penal.

A teoria da pena na sociedade do risco

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19/04/2010 às 00:00
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4.As teorias mistas

As teorias mistas, também chamadas de unitárias, são as correntes mais atuais no que se refere à determinação da finalidade da pena [71].

Propõem a conjugação dos diversos posicionamentos, a fim de superar as falhas e insuficiências das teorias monistas antes mencionadas. Criaram um conceito pluridimensional da pena, definindo-a, pois, como um fenômeno complexo que compreende as etapas da cominação, aplicação e execução. Em cada um desses estágios, afirma-se preponderar uma finalidade em especial, não se entendendo como excludentes nem estanques os fundamentos de cada uma das teorias antes abordadas. Admite-se, pois, a possibilidade de cumulação das referidas finalidades, aliando propósitos ressocializadores com intimidatórios, por exemplo.

Podem ser as teorias unitárias divididas em conservadoras ou progressistas [72], a depender da função que prepondere sobre as demais. As primeiras se focam na retribuição, propondo uma pena preventiva através da justa retribuição [73]. As segundas, por sua vez, salientam as funções de prevenção, sejam elas especiais ou gerais, tomando a culpabilidade apenas como pressuposto e limitador do poder-dever de punir.

Ainda com a preocupação de classificação das teorias mistas, pode-se dividi-las em unificadoras aditivas e unificadoras dialéticas [74], com base na maneira como combinam as teorias monistas.

As correntes unificadoras aditivas defendem a simples soma das finalidades antes propostas, possuindo a pena, então, os fins de aflição e de prevenção geral e especial. Cada uma das funções individualmente consideradas já seria suficiente para justificar a imposição de uma sanção estatal. Desse modo, ampliam-se as possibilidades de aplicação da pena, uma vez que aumentam as situações que legitimam a intervenção penal.

Tal ampliação é indesejada, afinal o Direito Penal somente justifica sua existência como ultima ratio, isto é, como instrumento subsidiário de tutela de certos bens jurídicos [75], o que, por si só, já obsta um aumento nas atribuições do citado ramo jurídico [76]:

D´outra banda, existem correntes que defendem, para determinação da função do fenômeno punitivo, não apenas a adição das conclusões das teorias antes referenciadas, mas, sim, a realização de uma síntese das teses apresentadas por elas. Em verdade, o que sustentam é uma prevalência do viés preventivo da pena, alternando entre as prevenções especiais e as gerais, de acordo com a fase sancionadora, e limitado pela culpabilidade do agente. Simplificadamente, é como se transpusessem o sistema de freios e contrapesos dos poderes estruturais para as funções da pena, concebendo finalidades abstratamente paritárias, mas que no caso concreto fazem restrições mútuas. Capitaneia esta vertente Claus Roxin.

4.1A teoria unificadora dialética de Claus Roxin

Claus Roxin, insurgindo-se contra as chamadas doutrinas unificadoras aditivas de função da pena, as quais, em sua opinião, apesar de já representarem um avanço em relação às concepções monistas, ampliam de forma indesejável as hipóteses de imposição da sanção criminal, construiu a teoria unificadora dialética.

Basicamente, sua construção teórica origina-se da realização de uma síntese das idéias preventivas, admitindo-se, como contribuição das teorias absolutas, tão-somente, a origem histórica do conceito de culpabilidade. Observa-se, pois, que, em que pese seja classificada como teoria mista, a doutrina proposta por Roxin para a determinação da função da pena se lastreia essencialmente nas noções preventivas, rechaçando-se, pois, a idéia de compensação do mal causado pelo delito por meio da aplicação da pena. É, inclusive, apropriado chamar a citada teoria de preventiva unificadora. Assim leciona Claus Roxin [77]:

Por el contrario, la función de una teoría mixta o unificadora capaz de sostenerse en las condiciones de hoy en día consiste en anular, renunciando al pensamiento retributivo, los posicionamientos absolutos de los respectivos y, por lo demás, divergentes planteamientos teóricos sobre la pena; de tal forma que sus aspectos acertados sean conservados en una concepción amplia y que sus deficiencias sean amortiguadas a través de un sistema de recíproca complementación y restricción. Se puede hablar aquí de una teoría unificadora preventiva ‘dialéctica’, en cuanto a través de semejante procedimiento las teorías tradicionales, con sus objetivos antitéticos, se transforman en una síntesis.

Para o mencionado autor, a culpabilidade, definição originada dos primeiros preceitos retributivos, atualmente, já é um conceito autônomo e independente, estando relacionada, nas sociedades contemporâneas, mais à idéia de Estado Democrático de Direito que à noção de alicerce do ius puniendi [78]. Além dela, ainda que seja interessante para o cumprimento das finalidades de prevenção, intimidação ou ressocialização, não se pode ir, sob pena de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Nota-se, então, que a culpabilidade é apresentada por Roxin como elemento limitador das finalidades de prevenção [79].

Na teoria unificadora dialética, portanto, não há a inclusão da idéia de retributivismo como finalidade idônea da sanção criminal [80], e o conceito de culpabilidade, diferentemente das teorias absolutas, aparece como limite para o exercício das funções preventivas. A culpabilidade não é o fundamento, mas apenas a fronteira máxima e intransponível da aplicação da punição.

Exatamente aí reside a principal diferença teórica entre os esquemas absolutos e o proposto por Roxin. Para aqueles, no momento da aplicação da punição, deve-se aferir no caso concreto a quantidade de culpabilidade e buscar, por meio da pena, sua compensação. A quantidade de aflição a ser imposta deve corresponder estritamente à porção de culpa evidenciada pelo delinqüente. O autor alemão, por sua vez, defende que culpabilidade é apenas o termo final da prevenção, seja ela geral ou especial. Isso significa que a aferição da culpabilidade é importante apenas para impedir excessos, comportando, porém, a aplicação de penas que não sejam equivalentes à culpa do infrator, mas, sim, inferiores a esta [81]:

Desse modo, percebe-se que não há qualquer incongruência no posicionamento do aludido autor, que defende o exame da medida de culpa do agente delitivo e, ao mesmo tempo, nega o uso de qualquer finalidade retributiva, ainda que aliada a fins preventivos.

Com efeito, tal postura é a mais adequada diante da dificuldade de precisar a medida da culpabilidade evidenciada em cada caso. O referido instituto jurídico pressupõe a capacidade e, principalmente, a liberdade de poder se comportar de determinada maneira. Pode-se dizer, então, que, para sua comprovação e aferição, insta examinar a imputabilidade, o potencial conhecimento da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa [82]. Uma ação é culpável quando, no dizer de Raúl Zaffaroni [83], "é reprovável ao autor a realização desta conduta porque não se motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que agiu, que nela se motivasse".

A avaliação desses aspectos psíquicos, contudo, traz grandes problemas para o âmbito do conhecimento jurídico-penal.

A possibilidade de comportar-se de maneira conforme o Direito é algo indemonstrável na prática. Atualmente, percebe-se que o livre-arbítrio, em verdade, é algo muito restrito e de difícil comprovação fática, razão por que, atualmente, tem sido visto com um necessário conceito construído pelo homem [84], e não uma verdade inquestionável e absoluta.

Nesse contexto, fica claro que um conceito não verificável na realidade — tal qual o é a culpabilidade — não pode servir de base para a justificação da imposição de uma sanção criminal. Nada obsta, entretanto, que essa ficção conceitual, bastante utilizada no campo jurídico, fundamente a restrição do principal instrumento do direito de punir, qual seja, a pena.

Concebida nesse sentido, a culpabilidade apresenta grandes avanços para a determinação dos fins da pena, pois soluciona os problemas de definição dos contornos teóricos e limites das teorias preventivas.

A doutrina roxiniana, no que se refere à limitação da prevenção, ainda se centra em duas outras idéias: a subsidiariedade da tutela penal e a proteção de bens jurídicos. Roxin observa que tais restrições ao ius puniendi serão exercidas precipuamente no momento da cominação das penas.

Considerando o Direito Penal como instrumento que somente tem seu uso legitimado quando for estritamente necessário para a garantia da paz social, Claus Roxin restringe o impulso social de manejo indiscriminado das teorias preventivas, aspecto ainda mais evidente em uma Sociedade do Risco.

Em razão da grande e incômoda sensação de insegurança, com o intuito de extirpá-la, torna-se bastante fácil exagerar no fomento de prevenção e perder a visão garantista em relação ao Direito Penal. Os ensinamentos do autor ora estudado vão exatamente de encontro a essa tendência e buscam evitar o uso indiscriminado dos instrumentos criminais — por exemplo, com meras infrações administrativas ou simples perturbações da ordem pública —, a fim de resguardar a legitimidade do próprio Direito Penal, pois "nada favorece tanto a criminalidade como a penalização de qualquer bagatela" [85].

No que se refere à proteção penal dos bens jurídicos — que, por sinal, decorre logicamente da subsidiariedade —, Claus Roxin preceitua que a intervenção punitiva estatal na esfera de liberdade do suposto delinqüente somente é legítima quando este houver praticado uma conduta que afete gravemente um valor definido como penalmente relevante, não se enquadrando nessa categoria a moral.

O grande mérito da teoria ora examinada, em nosso entender, é a identificação de que para cada fase de atuação do Direito Penal (cominação, aplicação, execução de sanções) existe uma função da pena que prevalece, malgrado todas elas coexistam sempre [86].

No momento de cominação das penas, o legislador deve ter em mente a observância da finalidade preventiva geral, especialmente em sua vertente negativa. Com o escopo de evitar a realização de crimes, instituem-se as penas, a fim de que, observando o sistema jurídico, o cidadão se sinta inibido em seus impulsos delitivos. Ao estipular uma sanção criminal, o legislador quer ameaçar a sociedade — função precípua nessa fase — e também ratificar a validade do ordenamento jurídico — função secundária nessa fase —, afinal seus preceitos devem ser cumpridos, sob pena de concretização da intimidação normativizada [87]. Todo esse mecanismo repressivo somente pode ser utilizado na justa medida do necessário, do proporcional, sob pena de se passar à criminalização generalizada e ao recrudescimento desmedido de penas, a fim de transmitir a mera sensação ilusória de segurança, adentrando a chamada função meramente simbólica, também chamada de retórica, do Direito Penal.

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Quando da aplicação das sanções antes cominadas, também há o domínio da prevenção geral, agora preponderante em seu aspecto positivo, a fim de reafirmar a validade das normas jurídicas. Isso é importante, porque a imposição, no caso concreto, da pena termina por reforçar os objetivos almejados com a cominação (a ameaça se materializa e, conseqüentemente, se fortalece). Insta observar a este ponto que a finalidade preventiva é limitada pela aferição da culpabilidade individual. É nesse momento em que se dá o equilíbrio entre a garantia da segurança e a preservação de padrões mínimos de autodeterminação individual.

É curioso observar que, apesar do predomínio abstrato da prevenção geral positiva, caso haja um conflito entre esta e a prevenção especial positiva, por exemplo, quando não houver consenso acerca da quantidade de pena, prevalecerá esta última. Isso ocorre porque, em última análise, a teoria roxiniana deve ser humanista, razão pela qual não permite a vitória de um aspecto utilitarista voltado para a coletividade, em detrimento da concessão de utilidade para o próprio criminoso, pessoa sobre a qual recairão todos os efeitos da pena [88].

No que concerne à execução das medidas, último e mais frágil estágio de realização do Direito Penal, fica evidente a preocupação primordial com a ressocialização do delinqüente, isto é, com a — pelo menos, em tese — preparação deste para a sua reinserção no seio social, agora com melhores condições de participar da vida em comum. Ressalva-se, aqui, o imperativo que é o respeito à personalidade do agente delitivo, que somente pode ser estimulado a se pautar consoante o Direito, mas nunca obrigado. Deve-se sempre resguardar a possibilidade de ser diferente e, obviamente, arcar com as conseqüências advindas dessa liberdade.

O próprio Claus Roxin [89] resume da seguinte maneira sua proposta doutrinária:

Se quiséssemos consagrar numa só frase o sentido e os limites do Direito Penal, poderíamos caracterizar a sua missão como protecção subsidiária de bens jurídicos e prestação de serviços estatais, mediante prevenção geral e especial, que salvaguarda a personalidade no quadro traçado pela medida da culpa individual.


5. Conclusão

A Sociedade do Risco — a mais atual conformação social — traz consigo a premente e desconfortável sensação de instabilidade. Nesse contexto, torna-se fácil ser seduzido pelas grandes — porém vãs — promessas feitas pelo novo tipo de Direito Penal que se avizinha: o Direito Penal do Risco.

Dentre tantas medidas de crise, surge como proposta para fim primordial da pena a função simbólica. Evidentemente que tal oferta não é feita de maneira clara, mas, por meio da legislação atualmente promulgada, percebe-se que, sorrateiramente, esse tipo de finalidade tem, sim, cada vez mais, ganhado espaço.

Não obstante, definindo que as diversas formas de manifestação do poder penal merecem tratamento específico e que o sentido das penas é a proteção subsidiária dos bens jurídicos — por meio das prevenções geral e especial —, limitada pela medida de culpa individual do agente, a teoria unificadora dialética continua sendo aquela que legitima de maneira mais satisfatória a imposição de uma sanção penal. É, então, desnecessário e perigoso o uso da função simbólica, uma vez que ela apenas confere uma falsa sensação de resolução do problema de justificação da pena e ainda pode ser convertida em instrumento de políticas demagógicas ou autoritárias.

Mesmo que se observem os novos anseios sociais e o teor do clamor público, os juristas não podem esquecer os princípios, objetivos e limites do conhecimento com que labutam. A adoção da função simbólica afronta sobremaneira a idéia de Estado Democrático de Direito, noção integralmente respeitada pela teoria ora estudada.

Além disso, os ensinamentos de Claus Roxin apresentam-se como adequados à resposta dos desejos de prevenção e busca pela segurança também bastante presentes em uma Sociedade do Risco. Em verdade, mostra-se até mais apropriada a adoção da teoria roxiniana, pois ela, ao contrário da função retórica, pode efetivamente realizar algo para combater, em sua origem, o real aumento da criminalidade.

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Sobre a autora
Flávia de Macêdo Nolasco

Advogada. Bacharela em Direito pela UFBA e Pos-graduanda em Direito do Estado pelo curso Juspodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOLASCO, Flávia Macêdo. A evolução histórica das teorias legitimadoras do Direito Penal.: A teoria da pena na sociedade do risco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2483, 19 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14703. Acesso em: 26 nov. 2024.

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