1 INTRODUÇÃO
Muito se tem discutido na doutrina nacional e estrangeira acerca da possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas no âmbito criminal. No Brasil, parte-se da interpretação de determinados dispositivos constitucionais e, além disso, de normas expressas em legislações especiais, para que se desenvolvam as discussões acerca de sua possibilidade ou não. Com o intuito de evidenciar tais interpretações, o presente trabalho busca analisar a problemática que hoje se desenvolve acerca do tema, bem como apresentar a forma como determinadas legislações estrangeiras vêm adotando a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas em seus sistemas, estabelecendo, por fim, uma discussão acerca da possibilidade de sua adoção pelo sistema jurídico penal brasileiro, face os princípios constitucionais que permeiam o nosso ordenamento jurídico.
2 A problemática da responsabilidade penal da pessoa jurídica
Durante os últimos anos muito se tem discutido na doutrina nacional e estrangeira a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em razão da importância que esta ocupa na sociedade moderna, o assunto vem sendo abordado principalmente no âmbito do fenômeno da criminalidade econômica, envolvendo, nesse sentido, relações de consumo, da ordem econômica e do meio ambiente.
Nesse sentido, Klaus Tiedmann estabelece que:
[...] nuevas formas de criminalidad como los delitos em los negocios (comprendidos aquéllos contra el consumidor), los atentados contra al medio ambiente y el crimen organizado colocan a los sistemas y medios (p.102) tradicionales del Derecho penal frente a dificultades tan grandes que resulta insdispensable uma una nueva manera de abordar los problemas. [...] Estas nuevas formas de criminalidad (econômicas) han obligado a perguntarse se las actuales excepciones no devem convertirse en la regra; pues es poco convincente, considerada la realidad y los demás subsistemas del derecho, que por ejemplo el atentado contra el medio ambiente cometido pó uma gran empresa sea comprendido como um hecho de uma sola persona natural: la que lo ordeno o ejecutó uma determinada medida. [01]
No cenário internacional, temos, atualmente, duas posições sobre o tema, existindo, de um lado, aqueles países que admitem a responsabilidade penal da pessoa jurídica, como acontece em alguns estados dos Estados Unidos e na Inglaterra, países adeptos ao sistema da commom law, e, de outro, aqueles que a rejeitam, como, por exemplo, os países da América Latina e da Europa continental [02].
De acordo com o disposto por Luiz Regis Prado, "em termos científicos, tem-se como amplamente dominante, desde há muito, no Direito Penal brasileiro, como nos demais Direitos de filiação romano-germânica, a irresponsabilidade penal da pessoa jurídica (...)". (PRADO, p. 281, 2005).
Vários, porém, são os argumentos utilizados para demonstrar a impossibilidade de responsabilização da pessoa jurídica no âmbito penal, sendo os mais importantes deles os seguintes: a) a pessoa jurídica não pode ser responsabilizada penalmente por não ser capaz de conduta (o conceito de ação depende da análise de um critério subjetivo); b) a pessoa jurídica não pode ser responsabilizada penalmente por não ser capaz de culpabilidade; c) a pessoa jurídica não pode ser responsabilizada penalmente por estar ausente a capacidade de pena (haveria aqui uma ofensa ao princípio da personalidade ou pessoalidade que estabelece que nenhuma pena passará da pessoa do condenado).
Eugenio Raúl Zaffaroni, ao trabalhar o tema, estabelece que, embora seja defendida a idéia de que a possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica afronta os princípios da personalidade da pena e da culpabilidade, como já exposto anteriormente, não se torna necessário sequer analisar tais argumentos, já que a pessoa jurídica não é capaz de conduta humana, não possui vontade [03]. Se a pessoa jurídica, portanto, não é capaz de conduta, falta para a caracterização de um delito o seu aspecto genérico, presente em todas as formas típicas. Se não há conduta, não há que se falar, assim, em delito. Se não há delito, não há que se falar, portanto, em responsabilidade penal, caso contrário, estar-se-ia gerando uma incompatibilidade total entre os elementos da dogmática penal.
A par destas justificativas, ainda existem aqueles que suscitam a idéia de que, caso fosse possível tal responsabilização, não haveria possibilidade de adequá-la às finalidades propostas pela dogmática penal em relação às penas, ou seja, em relação à prevenção geral e especial. Nesse sentido, indaga-se, portanto, a respeito da inaplicabilidade, quanto às pessoas jurídicas, da própria idéia de ressocialização.
3 Teorias acerca da natureza da pessoa jurídica
Com o objetivo de melhor compreendermos as bases sobre as quais se fundam a discussão acerca do problema, cabe-nos a partir de agora esclarecer as principais teorias que buscam conceituar a natureza jurídica da pessoa jurídica, ou seja, estabelecer o que vem a ser, propriamente, aquilo que denominamos de "pessoa jurídica". Em geral, duas são as principais teorias que tentam explicar sua natureza: a teoria da ficção e a teoria da realidade.
3.1.Teoria da ficção
Para Savigny, as pessoas jurídicas não possuem existência real, mas apenas existência fictícia, razão pela qual as mesmas não poderiam jamais ser sujeitos ativos de um delito.
Antônio de Araújo, ao tratar o assunto, estabelece que:
Savigny, ao negar a existência de um delito corporativo e impor a concepção romanista, excluiu por todo um século o problema. A ausência de responsabilidade penal da pessoa jurídica, que, desde há muito, predomina amplamente no Direito Penal de filiação romano-germânica, vem expressa na conhecida locução societas delinquere non potest.
Nesse sentido, conclui-se por essa teoria que a pessoa jurídica nada mais é do que uma abstração, sem nenhuma "realidade social", um ente que não possui vontade própria não podendo portanto, cometer nenhum crime.
3.2 Teoria da realidade
A teoria da realidade, por sua vez, possui como um de seus maiores precursores Otto Gierke, e, diferentemente do que é defendido pela teoria da ficção, esta teoria defende a idéia de que a pessoa jurídica é um ente que possui vontade própria, sendo, portanto, capaz de conduta.
No que diz respeito a tal posicionamento, Kleber Morais Bahia aduz que:
A pessoa jurídica tem vontade própria, pois, essa nasce e vive da vontade individual de seus membros. Essa vontade se manifesta a cada etapa de sua vida, pela reunião, pela deliberação, voto de seus membros, acionistas, conselho, direção. Assim sendo, a vontade coletiva pode cometer crimes tanto quanto a vontade individual, conforme a doutrina francesa.
Este posicionamento tem sido adotado atualmente pela doutrina, sendo, portanto, a pessoa jurídica considerada não como um ente meramente abstrato, ou como uma mera ficção, mas como um ente que possui, antes de mais nada, existência própria, que difere, contudo, das pessoas naturais, únicas capazes de vontade e, portanto, capazes de serem sujeitos ativos de um delito.
4 A responsabilidade penal da pessoa jurídica no cenário internacional
Alguns sistemas, tais como o inglês, o francês e o americano, devido à adoção da idéia da responsabilidade penal da pessoa jurídica, merecem ser aqui tratados.
De acordo com o sistema inglês, "a pessoa jurídica pode ser responsabilizada por toda infração penal que sua condição lhe permitir realizar. Isso ocorre, especialmente, no campo dos delitos referentes às atividades econômicas, de segurança do trabalho, de contaminação atmosférica e de proteção ao consumidor" (PRADO, p.292, 2005).
Tendo em vista tal sistema, para que uma pessoa jurídica seja responsável pela prática de um delito, torna-se necessário a realização de uma conduta humana. Este argumento encontra guarida na teoria da identificação. Considera-se, nestes casos, que a pessoa física não atua para a sociedade, mas enquanto sociedade. Assim sendo, sua vontade seria a vontade da própria sociedade, o que justificaria tal responsabilização.
Vale apenas ressaltar, que a criação desta possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas pelo sistema inglês é uma criação jurisprudencial, que surgiu no início do século XIX, alcançando não apenas os crimes econômicos, mas crimes de qualquer natureza.
O sistema francês, por sua vez, disciplinou a matéria de forma expressa no Código Penal de 1992 tendo previsto, tanto no Código, quanto em leis especiais, vários tipos de infrações que podem ser praticadas pelas pessoas jurídicas e que são, portanto, objetos de sanções.
De acordo com Klaus Tiedemann "según la opinión del Consejo Constitucional Francés, dicha responsabilidad se admite solamente com relación a los casos expresamente previstos em la ley o reglamento" [04].
Tendo em vista tal sistema, "a responsabilidade penal da pessoa moral está condicionada à prática de um fato punível suscetível de ser reprovado a uma pessoa física" (PRADO, p.299, 2005). Assim sendo, temos que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é subsidiária à responsabilidade penal da pessoa física. Não havendo responsabilidade por parte da pessoa física, em regra, não poderá ser condenada também a pessoa jurídica.
Dentre as sanções previstas para as pessoas jurídicas podem ser citadas como exemplo: a multa, a interdição definitiva ou temporária para exercer atividades profissionais, o controle judiciário por cinco ou mais anos, o fechamento definitivo ou temporário da empresa. Além disso, vale aqui também ressaltar, que o diploma francês estabelece expressamente entre seus dispositivos os crimes que podem ser praticados pelas pessoas jurídicas, enquadrando-se entre eles, a título de ilustração, a lesão corporal culposa, o estelionato, a extorsão, a traição, o terrorismo, dentre outros.
Em outros locais, contudo, uma das punições utilizadas em relação a este tipo de responsabilização como forma de reprimir a criminalidade é o confisco geral. Neste sentido, aduz Klaus Tiedmann que:
Además, en los últimos años, numerosos Estados han vuelto a introducir, a pesar de las dudas sobre su constitucionalidad, la confiscación general para reprimir el crimen organizado. Esta sanción, consistente en despojar de todos sus bienes a uma persona, parecía abandonada desde hace tiempo, salvo en los países que formaban parte del sistema socialista. Así, desde 1991 los Federal Setencing Guidelines de los Estados Unidos permiten pronunciar, contra agrupaciones com fines predominantemente criminales, multas de um monto tan elevado que implican privarlas de total de sus base financiera. Evidentemente, no se pueden aplicar tales multas a las empresas normales sin disolverlas. [05]
Como se pode perceber, em alguns casos, tais penas podem levar, até mesmo, ao fechamento da empresa em alguns países em razão do valor da multa a ser aplicada como pena face à ocorrência de algum fato criminoso do qual tenha participado a empresa, multas estas que podem levar à dissolução da empresa, tendo em vista seus valores extremamente exacerbado.
De acordo com tais posicionamentos e tendo em vista as teorias que buscam explicar a natureza da pessoa jurídica, já expostas acima, temos que, tais defensores se baseiam para tal responsabilização, na teoria da realidade, que consagra a pessoa jurídica como um ente real, que possui vontade própria e que, pelo fato de sua vontade poder, em certas circunstâncias, não coincidir com a vontade de seus representantes, deve ser a pessoa jurídica diretamente responsabilizada por seus atos.
Assim sendo, não se baseiam para tal responsabilização, na culpa, como critério subjetivo e individual, mas na idéia de uma responsabilização social, como forma de tornar possível, dentro da estrutura da teoria do delito hoje estabelecida, a imputação desta responsabilidade em âmbito criminal.
5 O tratamento da responsabilidade penal das pessoas jurídicas no sistema brasileiro
A Constituição da República, em seus artigos 173, §5º e 225, §3º, prevê sanções penais e administrativas para as pessoas jurídicas, sobre as quais pairam grandes controvérsias.
Estabelece o artigo 225, §3º, da Constituição da República, que "as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados".
Para aqueles que defendem a impossibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas, não se pode considerar, de acordo com este artigo, que há previsão concreta de responsabilidade criminal das pessoas coletivas. Isso porque, quando o artigo faz menção às pessoas físicas, deve-se correlacionar esta idéia com as sanções penais, e, ao tratar das pessoas jurídicas, ser o enunciado correlacionado às sanções administrativas.
Juarez Cirino dos Santos estabelece, assim, que:
[...] especialistas em Direito Penal rejeitam a pretendida ruptura do princípio constitucional da responsabilidade penal pessoal, destacando as diferenças semânticas das palavras condutas e atividades, empregadas no texto com bases de correlações distintas, assim estruturadas: a) as condutas de pessoas físicas sujeitarão os infratores a sanções penais, b) as atividades de pessoas jurídicas sujeitarão os infratores a sanções administrativas. (SANTOS, 2008, p.436).
Diante do exposto, mesmo se a interpretação do artigo não for realizada neste sentido, qualquer interpretação contrária deve ser afastada, pois, a interpretação da Constituição deve ser feita de forma sistemática, devendo, portanto, serem levados sempre em consideração pelo intérprete de suas normas, os princípios sobre os quais ela se funda. Uma interpretação diversa do artigo levaria à ofensa dos princípios da culpabilidade e da personalidade, como brevemente exposto no início do trabalho.
Luiz Luisi, ao discorrer sobre o tema aduz que:
Desde muito está superada esta análise estritamente literal e isolada da norma, pois a mesma não pode ser enfocada na sua singularidade e na sua literalidade, mas deve ser interpretada como componente de um ordenamento, ou melhor, de um sistema. Estando, portanto, as normas conectadas com outras normas, impõe-se uma interpretação dentro do sistema. [...] E onde mesmo no campo constitucional, em caso de conflito de normas, prevalecem, as de maior valor, especialmente as ditas normas pétreas, por constituírem princípios reitores do ordenamento constitucional. (LUISI, 2003, p.159).
Outro dispositivo discutido pela doutrina é o artigo173, §5º, que assim dispõe: "a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-se às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular". Com bem se observa, não podemos, de acordo com o disposto no artigo, afirmar que o mesmo estabeleça a idéia de responsabilidade penal para as pessoas jurídicas, já que o mesmo não prevê expressamente tal possibilidade, visto que seu utiliza da expressão "punições compatíveis com sua natureza". Ora, não é exclusivo do Direito Penal o conceito de punição, podendo ser esta administrativa, razão pela qual não se deve chegar à conclusão precipitada de que o legislador tenha, neste artigo, estabelecido uma punição penal para as pessoas jurídicas.
Dessa forma, não devemos considerar que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas seja constitucional, tendo em vista que os artigos 225, §3º e 173, §5º, não estabeleceram, de acordo com as explicações expostas, uma efetiva exceção à responsabilidade penal da pessoa jurídica. [06]
Quanto à legislação brasileira, a lei dos crimes ambientais (Lei 9605/98), dispõe em seu artigo 3º que "as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato".
Ocorre, contudo, que embora exista em nossa legislação esta fórmula expressa de responsabilidade penal das pessoas jurídicas, tal dispositivo não estabelece se a pessoa jurídica teria uma vontade real (teoria da realidade) ou uma simples vontade reflexa (teoria da ficção).
Como bem estabelece Juarez Cirino dos Santos:
Este ponto é crucial, porque indicaria a sede do dolo e da imprudência como fundamento subjetivo da responsabilidade penal das empresas: a sede do dolo e da imprudência seria a pessoa jurídica (teoria da realidade) ou seria a pessoa física (teoria da ficção)? (SANTOS, 2008, p.438).
Percebe-se, desse modo, que embora tenha a legislação brasileira estabelecido uma forma de responsabilidade penal para as pessoas jurídicas, esta se limitou a estabelecê-la, sem, contudo, esclarecer suas dimensões.
Desse modo, percebe-se que, embora hajam disposições constitucionais e legislativas que geram discussões acerca de seu real âmbito de aplicação, tais dispositivos não podem ser considerados legítimos, nem constitucionais, uma vez que, como será trabalhado posteriormente, ferem frontalmente princípios penais constitucionais e, além disso, interferem e modificam elementos já consagrados na dogmática penal no que diz respeito à própria teoria do delito.