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Os direitos fundamentais nas percepções liberal e comunitarista

26/04/2010 às 00:00
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1.INTRODUÇÃO

Os estudiosos da filosofia política e jurídica têm se debruçado sobre a questão da justiça no direito, ou seja, a vinculação da norma com a moral, e a definição de que valores abrigar, considerando o pluralismo da sociedade contemporânea. Com a obra Teoria da Justiça, John Rawls tornou-se o novo ponto de partida de reflexão e debate, tendo surgido seguidores e críticos igualmente ardorosos.

A sua defesa dos ideais liberais é veementemente combatida pelos chamados comunitaristas. A polêmica consiste basicamente em se definir as prioridades de uma filosofia constitucional – o bem (valores eleitos pelos estados) ou o justo (procedimentos imparciais). Uma vez que o liberalismo tem como foco o indivíduo e o comunitarismo prioriza a coletividade, torna-se tão relevante quanto interessante o estudo de como essas correntes opostas percebem os direitos fundamentais e se há possibilidade de harmonização entre as duas visões.

Com essa finalidade, será empreendida pesquisa bibliográfica, com destaque para uma leitura crítica dos textos-base da disciplina de Filosofia Constitucional, a fim de oferecer um breve panorama sobre o tema.


2.OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS PERCEPÇÕES LIBERAL E COMUNITARISTA

Para estudarmos os direitos fundamentais sob as óticas liberalista e comunitarista, primeiramente faz-se necessário compreender as características principais dessas duas doutrinas.

Os programas políticos ditos liberais militam pela causa da liberdade, ou seja, pela proteção das liberdades individuais. Quer se veja o liberalismo como doutrina política, econômica ou moral, a afirmação da ideia de liberdade está sempre presente.

De raiz revolucionária, o liberalismo surge da necessidade de se limitar o poder do Estado, resguardando a liberdade do indivíduo. Traz a ideia de governo pelo consentimento, de legitimidade. Sua teoria dos direitos fundamentais baseia-se na concepção de Locke dos "direitos naturais", universais e inalienáveis, auto-evidentes e dos quais todas as outras prerrogativas derivam: "o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade". Mais tarde, as ideias de Rousseau introduzem no liberalismo a questão da igualdade, construindo um modelo ideal de democracia, na qual o povo exerceria diretamente o poder [01].

No novo milênio, o liberalismo apresenta uma nova face, centrada basicamente em dois eixos: o respeito pela pessoa humana e o respeito pela lei. O primeiro deriva da moral judaico-cristã, adequada ao racionalismo iluminista, do respeito pela dignidade e integridade da pessoa humana. O segundo é o pilar do moderno Estado de Direito, a defesa contra a arbitrariedade, a adoção da "vontade geral" em detrimento da própria vontade [02].

Por ter em suas raízes a proteção contra a arbitrariedade, o liberalismo privilegia os direitos fundamentais "negativos", limitadores da atuação do Estado – as liberdades, ditos direitos de primeira geração. Além disso, sua índole universalista baseia a visão dos direitos fundamentais em valores morais fixos, superiores e reconhecidos universalmente.

Por outro lado, a partir da década de 80 surge o comunitarismo, teoria política anglo-americana que vai de encontro ao liberalismo, contestando a insuficiência da teoria e prática liberal [03]. Tal doutrina busca equacionar a justiça e a distribuição de recursos sociais, bem como defende que o ponto de partida para a liberdade são as normas partilhadas da comunidade.

Nascida das críticas ao liberalismo, a doutrina comunitarista tornou-se sua natural antagonista, sendo difícil definir por si só. Ademais, não há uniformidade de pensamento entre os autores. Em oposição ao individualismo liberal, defende uma concepção coletivista de cidadania, consistente na partilha de valores culturais de uma comunidade política de iguais [04].

O comunitarismo propõe como valor central os múltiplos vínculos comunitários, e como soluções as práticas e tradições da comunidade, frutos da construção social. A comunidade forma a base para justificação moral e a pertença da comunidade é a base para as obrigações não escolhidas. A sociedade, segundo o comunitarismo, deve garantir os meios mínimos que permitam aos indivíduos realizar seus projetos de vida [05]. Dessa forma, o Estado tem papel paternalista, encorajando os modos de vida que realizam os valores da comunidade. Apesar do pluralismo, será a consciência coletiva, a comunidade política, o princípio legitimador do justo, limitando a diferenciação por sua compreensão de bem social [06].

Do ponto de vista moral, os comunitaristas entendem que a finalidade das instituições é a de manter um contexto favorável ao desenvolvimento de virtudes pré-determinadas pelo Estado com base nos valores eleitos pela comunidade (visão perfeccionista). Já os liberalistas enxergam nas mesmas instituições o papel de garantir ampla autonomia aos indivíduos ao gerir suas vidas [07] (visão antiperfeccionista).

Quanto à validade e fundamentação dos princípios, os comunitaristas afirmam que princípios jurídicos aceitáveis são aqueles cuja validade repousa em valores substanciais compartilhados pelos membros de uma comunidade. Tal abordagem é chamada contextualista, pois os princípios que regulam a ordem jurídica respeitam os contextos da comunidade. Os liberalistas, por outro lado, adotam uma abordagem procedimentalista, na qual a validade dos princípios se funda em regras formais - princípios extraídos a partir de certos procedimentos que, uma vez respeitados e adotados, servem como suporte racional para que os indivíduos sejam capazes de refletir sobre a procedência e, também, sobre o estabelecimento destes princípios como base de uma convivência comum [08].

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Na constituição brasileira de 1988, o título dos direitos fundamentais traz a marca do pluralismo, com os direitos sociais e difusos ao lado dos clássicos direitos individuais [09]. No entanto, o rol de direitos fundamentais da constituição converge para e tem como locus hermenêutico o princípio da dignidade da pessoa humana, valor basilar do Estado. Tal princípio é um dado prévio ao Direito, que o promove e protege [10]. Sendo considerada um valor universal, a dignidade humana não deriva do direito positivo ou do consenso social, no que confirma em parte as teses liberalistas.

No entanto, a crítica comunitarista foi assimilada e a mentalidade coletivista se faz sentir pela inclusão dos direitos sociais no rol de direitos fundamentais, bem como no estabelecimento de metas para o Estado brasileiro (normas programáticas) para a promoção de um ambiente facilitador do desenvolvimento de qualidade de vida e opções para os indivíduos. Como exemplo, podem-se destacar as políticas sociais do governo nas últimas décadas - desde o Programa Comunidade Solidária, criado em 1995 pelo governo FHC, até a política social do atual governo [11].


3.CONSIDERAÇÕES FINAIS

O maior desafio que se apresenta na pós-modernidade é encontrar um caminho em que os valores humanos e coletivos se realizem, sem exacerbação do individualismo, uma vez que o homem não pode existir por si mesmo, e longe de um coletivismo intolerante das diferenças, que desrespeita a dignidade humana.

No Brasil, embora as visões liberalista e comunitarista sejam aparentemente excludentes entre si, verifica-se que ambas deram sua contribuição quando da seleção dos direitos humanos a serem constitucionalizados. Tais doutrinas conferem o cabedal ético (noções de bem, justo, consenso, etc) a permear os princípios e normas constitucionais.

Diversas conquistas democráticas, tanto no campo das liberdades públicas quanto dos direitos sociais foram alçadas ao status de direitos fundamentais. Entretanto, ambas as visões – liberal ou comunitarista – mostram-se insuficientes para solucionar o problema de se conciliar a liberdade individual e a igualdade real. Nem o indivíduo pode se pretender sozinho, desconsiderando as práticas e tradições da comunidade, nem esta pode impor os valores da maioria.

A resposta ao desafio parece estar – sem escrúpulo de lançar mão de um clichê – no meio termo, no equilíbrio – um Estado não opressor, respeitador da liberdade e do espaço individual, e ao mesmo tempo forte e organizado para promover o desenvolvimento integral de seus cidadãos.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ALTABLE, María Pilar González. Liberalismo vs. Comunitarismo (John Rawls: uma concepción política del bien). In: Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. n. 17-18. Madrid: Universidad de Alicante, 1995. p. 117-36.

COSTALONGA JUNIOR, Ademir João. Função Social da Propriedade: Liberalismo, Teoria Comunitarista e a Constituição de 1988. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2006 [Dissertação de mestrado; área de concentração: Relações Privadas e constituição, 126p]

DI LORENZO, Wambert Gomes. Teoria do Estado de Solidariedade: da diginidade da pessoa humana aos seus princípios corolários. Rio de Janeiro, Elsevier, 2010.

GONÇALVES, Gisela. Comunitarismo ou Liberalismo? Universidade da Beira Interior, 1998. Disponível em: http://bocc.ubi.pt/pag/goncalves-gisela-COMUNITARISMO-LIBERALISMO.html Acesso em: 11/12/2009.

MACEDO, Myrtes de Aguiar. O Comunitarismo na Nova Configuração das políticas Sociais no Brasil. In: Em Debate 01 (2005) PUC-Rio. Disponível em: http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br . Acesso em 25/01/2010.

OLIVEIRA, Nythamar de. O Problema da Fundamentação Filosófica dos Direitos Humanos: Por um Cosmopolitismo Semântico – Transcedental. ethic@, Florianópolis, v.5, n. 1, p. 21-31, Jun 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. 10ed. Porto Alegre: Do Advogado, 2009.

SILVEIRA, Denis Coitinho. Teoria da Justiça de John Rawls: Entre o Liberalismo e o Comunitarismo. Trans/Form/Ação, São Paulo, 30(1): 169-190, 2007.

VALEIRÃO, Kelin. Sobre a antinomia: liberalismo versus comunitarismo. Biblioteca CECIERJ. Disponível em: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/cienciassociais/0021.html Acesso em: 11/12/2009.

Dicionários e Obras de Referência:

COMUNITARISMO. Dicionário de Filosofia Moral e Política – Instituto de Filosofia da Linguagem. Disponível em: http://www.ifl.pt/ifl_old/dfmp_files/comunitarismo.pdf Acesso em: 07/01/2010.

LIBERALISMO. Dicionário de Filosofia Moral e Política – Instituto de Filosofia da Linguagem. Disponível em: http://www.ifl.pt/ifl_old/dfmp_files/liberalismo.pdf Acesso em: 07/12/2009.

Material Disponibilizado pelo Campus Virtual:

O EMBATE LIBERALISMO X COMUNITARISMO E SUAS REPERCUSSÕES (Aula 5). Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Filosofia Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional. Acesso em 11.12.2009.


Notas

  1. LIBERALISMO. Dicionário de Filosofia Moral e Política – Instituto de Filosofia da Linguagem. Disponível em: http://www.ifl.pt/ifl_old/dfmp_files/liberalismo.pdf Acesso em: 07/12/2009.
  2. Ibidem.
  3. COMUNITARISMO. Dicionário de Filosofia Moral e Política – Instituto de Filosofia da Linguagem. Disponível em: http://www.ifl.pt/ifl_old/dfmp_files/comunitarismo.pdf Acesso em: 07/01/2010.
  4. COSTALONGA JUNIOR, Ademir João. Função Social da Propriedade: Liberalismo, Teoria Comunitarista e a Constituição de 1988. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2006 [Dissertação de mestrado; área de concentração: Relações Privadas e constituição, 126p]
  5. VALEIRÃO, Kelin. Sobre a antinomia: liberalismo versus comunitarismo. Biblioteca CECIERJ. Disponível em: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/cienciassociais/0021.html Acesso em: 11/12/2009.
  6. ALTABLE, María Pilar González. Liberalismo vs. Comunitarismo (John Rawls: uma concepción política del bien). In: Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho. n. 17-18. Madrid: Universidad de Alicante, 1995. p. 117-36.
  7. O EMBATE LIBERALISMO X COMUNITARISMO E SUAS REPERCUSSÕES (Aula 5). Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Filosofia Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional. Acesso em 11.12.2009.
  8. ibidem
  9. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. 10ed. Porto Alegre: Do Advogado, 2009, p. 65.
  10. DI LORENZO, Wambert Gomes. Teoria do Estado de Solidariedade: da diginidade da pessoa humana aos seus princípios corolários. Rio de Janeiro, Elsevier, 2010, p.54.
  11. MACEDO, Myrtes de Aguiar. O Comunitarismo na Nova Configuração das políticas Sociais no Brasil. In: Em Debate 01 (2005) PUC-Rio Disponível em: http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br . Acesso em 25/01/2010.
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Sobre a autora
Maria Thereza Tosta Camillo

Analista Judiciária - Justiça Federal do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Constitucional, Universidade Estácio de Sá). Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Habilitada no Exame de Ordem, área Direito Administrativo (OAB-RJ, 2008.3). Bacharel em Letras - Português/Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMILLO, Maria Thereza Tosta. Os direitos fundamentais nas percepções liberal e comunitarista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2490, 26 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14743. Acesso em: 23 dez. 2024.

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