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O dano ambiental e o regime jurídico das responsabilidades civil e administrativa

09/05/2010 às 00:00
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1.Introdução:

Um primeiro aspecto que devemos abordar no tocante ao dano ambiental é que não há norma que o conceitue explicitamente, ou melhor, a Lei instituidora da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) atribuiu significado à degradação da qualidade ambiental ("alteração adversa das características do meio ambiente") [01] e à poluição ("degradação da qualidade ambiental resultante de atividade que direta ou indiretamente" causam resultado danoso à saúde e qualidade de vida, criem condições adversas às atividades sociais, prejudiquem a biota, etc.) [02]. Porém, o dano ambiental não se limita à lesividade de bens naturais. Isso porque meio ambiente envolve também recursos artificiais e culturais.

O dano ambiental manifesta-se de duas formas: i) coletivamente (dano ambiental propriamente dito ou dano ecológico), ao atingir o patrimônio coletivo, caracteriza-se, assim, pela transindividualidade e indivisibilidade [03]; ii) individualmente, quando atinge o patrimônio pessoal de pessoas identificadas ou suas integridades morais.

No primeiro caso, não se fala em reparação civil, dado a impossibilidade de identificação das vítimas, sendo o maior prejudicado algum recurso ambiental propriamente dito. As medidas judiciais devem ser capazes de tutelar esse grupo de vitimados coletivamente ou difusamente, por isso, o poluidor responde em Ações Civis Públicas ou, outros meios igualmente capazes, como mandados de segurança coletivos. O objeto da condenação, se avaliado pecuniariamente, é destinado aos fundos [04] para recuperação do bem lesado ou imposta outra medida compensatória.

Por sua vez, os danos individuais são processados mediante pretensões indenizatórias intentadas pela própria vitima e seus sucessores ou representantes legais. Esse dano também é denominado dano ricochete ou reflexo, prescindido a responsabilidade civil ambiental da culpa, entende-se que danos ambientais propriamente ditos eventualmente repercutem na esfera patrimonial e extrapatrimonial de terceiros, daí a caracterização do dano individual como reflexo do dano ecológico. Com isso percebemos desde logo que as espécies de dano são autônomas e coexistem, ou seja, o agende causador pode responder concomitantemente à Ação Civil Pública e Ação Indenizatória Individual, na esfera civil, e ainda responder administrativa e penalmente, como veremos mais adiante.

Em suma, dessa explanação introdutória podemos retirar três traços marcantes do dano ambiental: pulverização das vitimas; dificuldade de reparação e dificuldade de valoração. O primeiro deles está presente mesmo no dano ambiental individual, isso porque o meio ambiente é um ‘bem de uso comum’, pouco importa se as vítimas são identificáveis ou não, assim, toda vez que há uma lesão ambiental a coletividade é atingida – compreendemos isso ao tomar o dano individual como dano reflexo. Os outros dois traços são conseqüências da difusão das vítimas. A estrutura do meio ambiente, em razão da interligação dos sistemas naturais, dificulta enormemente a percepção integral dos danos e, por isso, medidas indenizatórias e compensatórias tornam-se paliativas.


2. Formas de reparação:

A forma ideal de reparação do dano ambiental é a restauração in specie capaz de recompor o status quo anterior; em não sendo possível, através da adoção de medida compensatória. Ambas visam recuperar o equilíbrio ecológico natural presente no sistema ambiental. A restauração ecológica possibilita a reconstrução dos bens afetados, reprodução do mesmo habit e no mesmo local do dano. A compensação substitui os bens lesados por outros equivalentes, mas tendo em vista a dificuldade em se obter resultado satisfatório, qual seja, obtenção da mesma diversidade biológica, essa medida deve ser implantada quando da impossibilidade de restauração natural e com autorização do órgão público competente.

Na forma indenizatória, uma vez fracassada a reparação in natura, pretende o legislador impor um custo ao poluidor. Nesta seara o princípio do poluidor-pagador incide diretamente, não com intuito de legitimar a poluição (fórmula ‘poluo, mas pago’), mas uma vez configurado o dano, impõe ao agente causador o dever de repará-lo integralmente ou pelo menos, tentar minimizar e sofrer com a punição (viés repressivo e preventivo do princípio), vez que, como vimos, é impossível recuperar integralmente o patrimônio atingido. Afirmamos sua incidência na esfera da responsabilidade civil/ reparação indenizatória, porquanto impõe ao agente causador a internalização dos custos sociais decorrentes de sua atividade, isto é, na sociedade de risco não pode um individuo enriquecer (sozinho) com manejo de fontes renováveis e não renováveis, mas socializar os prejuízos [05].


3. Responsabilidade Civil:

É sabido que o Código Civil evoluiu para um sistema dualista da responsabilidade, além da doutrina tradicional assentada na culpa do agente, admitindo a responsabilidade objetiva (art. 927, parágrafo único). Essa inovação trouxe mudanças significativas para âmbito do Direito Ambiental e permitiu o desenvolvimento de um regime particular de responsabilidade civil ambiental [06].

Ainda que essa responsabilidade esteja fundamentada no princípio do poluidor-pagador, as soluções por ela apresentadas não podem desconsiderar o princípio basilar da disciplina ambiental: princípio da precaução. Sempre que houver dever de indenização, esta deve primar pela cessação dos danos e tomada de providências acautelatórias. A reparação deve ser integral; assim, por mais difícil que possa ser a mensuração da extensão dos danos, ela não pode ser limitada previamente [07], afasta, por isso, as chamadas excludentes de responsabilidade (caso fortuito, força maior e fato de terceiro). Presente o dano e nexo de causalidade, o agente invariavelmente responderá pelo dano.

São pressupostos da responsabilidade por dano ambiental a demonstração do evento damni e o nexo de causalidade. Como a responsabilidade não se funda na conduta culposa (lato senso) do agente, mas nos riscos assumidos, pouco importa a licitude da atividade, o traço instituidor da responsabilidade é a lesividade ao bem jurídico tutelado. Desta forma, atividades exercidas dentro de parâmetros legais também são passíveis de reprovação uma vez configurado o dano. A peculiaridade, nesse caso, é que o poder público pode ser chamado a responder pelos prejuízos, em regime de solidariedade, se for comprovada sua omissão na atividade fiscalizadora ou permissão indevida para certa atividade. Contudo, a conclusão a que se chega é que a licitude da atividade, respaldada por licenças e autorizações, não serve como defesa.

Como toda ação de responsabilização, na esfera ambiental também não se prescinde da correlação entre atividade e resultado, relação causa e efeito, mas nesse campo o nexo de causalidade, porque afastado do elemento subjetivo, impõe a inversão do ônus da prova. Caberá ao demandado comprovar que o dano não é fruto ou decorrência de atividade sua.


4. Responsabilidade Administrativa:

A responsabilidade administrativa foi disciplinada pela Lei 9.605/98, em seus artigos 70 a 76. A ela, somam-se as legislações produzidas pelos Estados, Municípios e Distrito Federal, já que a Constituição Federal autorizou que esses entes disciplinem concorrentemente as questões ambientais.

A responsabilidade administrativa é de cunho repressivo, semelhante à da esfera penal, porque expressão do poder de polícia do Estado. Ela diferencia-se daquelas quanto ao órgão competente para fixá-la: é de aplicação dos órgãos da Administração Pública enquanto as sanções civis e penais dependem de fixação pelo Poder Judiciário.

No regime das infrações administrativas não podemos aproveitar automaticamente a teoria da responsabilidade objetiva, ainda que esta impere em grande medida, porque particularmente na condenação ao pagamento de multa exige-se do agente um agir culposo ou doloso. Além disso, a contrário senso do âmbito civil, é imprescindível para penalidades administrativas a ilicitude da conduta. O prejuízo pode não ser configurado, porém para autuação do infrator, a Administração Pública deve indicar qual foi o ilícito praticado.

Em apertada síntese, sendo manifestação do poder de polícia administrativo que visa precipuamente prevenir danos, a tipificação em lei das infrações, normalmente, assume a forma de tipos abertos. Por outro lado, agindo dentro das normas legais de segurança e cumprindo os requisitos para licenciamento da atividade, o agente não pode ser autuado, ainda que da sua ação decorram alguns danos ao meio ambiente (há de se observar que isso não invalidada as demandas civis, dado a autonomia existente entre as esferas administrativa, civil e penal). Em sendo necessária a ilicitude da conduta, sobre ela incidem as excludentes de responsabilidade (força maior, etc).

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A Lei 9.605 disciplina as espécies de sanções administrativas e prazo para defesa e recurso. Entre as sanções, merece destaque a multa que foi minuciosamente disciplinada pelo Decreto 3.179/99. Um aspecto que se sobressai é a possibilidade de suspender a exigibilidade da multa quando o infrator, mediante termo de compromisso, assume a responsabilidade de adotar providências específicas para correção dos danos. Levado a cabo o compromisso, a multa é diminuída em 90% do valor atualizado. O destino da multa (seja ela cobrada integralmente ou com redução) é o repasse da totalidade dos valores obtidos ao Fundo Nacional do Meio Ambiente ou ao Fundo Naval [08], nos termos do art. 73, da Lei 9.605 (nas esferas estadual, municipal ou distrital, os valores são revertidos aos fundos desses entes).


5. Conclusão.

Em apertada síntese, temos como regime especial e tripartite de responsabilização dos poluidores, nesse estudo nos dedicamos apenas à responsabilidade civil e administrativa.

Impera no Direito Ambiental o dever de responder pela integralidade do dano, pouco importa se o agente deu causa ou agiu culposamente. Isso porque o bem ambiental [09] pertence a toda coletividade, sendo imune a qualquer apropriação. Assim, seria descabido permitir que o agente poluidor respondesse apenas parcialmente pelos danos causados, impondo também à coletividade tal ônus. É certo que, em razão das características do dano ambiental (pulverização das vítimas, dificuldade de mensuração e reparação) a sociedade é sempre prejudicada, mas isso apenas reforça a necessidade de imputar ao agente a responsabilização integral.

Na esfera administrativa, à semelhança da responsabilidade penal, a responsabilidade administrativa nasce da infração à prescrição legal. Aqui, a responsabilidade é condicionada pelo agir humano (incidem as excludentes). A Administração Pública dita inúmeras normas de caráter preventivo, se essas norma forem descumpridas, ainda que o dano ambiental não se consume, haverá responsabilização.

A responsabilidade ambiental penal não foi objeto deste trabalho, cumprindo tão somente ressaltar que ela possui regras próprias de aplicação e, conforme amplamente noticiado, convive com as outras espécies de responsabilidade.

São justamente as diferenças quanto às funções e diretrizes entre responsabilidade civil, administrativa e penal na esfera ambiental, que autorizam a incidência conjunta e em separada de cada uma delas. Não se pode falar em bis in idem no sistema de proteção ao Meio Ambiente, já que o objetivo da legislação ao instituir essas distintas esferas de responsabilização foi dar a máxima proteção aos recursos naturais, bem como instituir regras para prevenção do dano.

Portanto, dentro da principiologia do Direito Ambiental, identificamos a sintonia existente entre responsabilidade civil e o princípio do poluidor-pagador; assim como, na esfera administrativa, a responsabilidade caminha lado a lado com o princípio da precaução. Ambas valorizando um bem que pertence a toda coletividade e às gerações futuras.


Notas

  1. Lei 6.938/1981, art. 3º, II.
  2. Lei 6.938/1981, art. 3º, III.
  3. Tema controvertido é a admissão ou não de dano moral coletivo.
  4. Temos o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal -FNDF- criado pela Lei 11.284/2006; Fundo Nacional do Meio Ambiente -FNMA- criado pela Lei 7.797; Fundo de Defesa dos Direitos Difusos- FDD- criado pela Lei 9.008. Mas a Lei da Ação Civil Pública, de 1985, já menciona a criação de fundos para destinação de recursos financeiros oriundos das condenações.
  5. Esse princípio apelidado de ‘princípio da responsabilidade’ é sintetizado pela máxima "internalização da externalidade", trazida por Michel Prieur para o âmbito do Direito Ambiental. O referido autor apoderou-se da definição de externalidade desenvolvida por Arthour Pigou, em 1920, para imputar ao poluidor o custo social (dano ecológico que repercute sobre os bens e pessoas, mas também por aquele sentido exclusivamente pela natureza) da poluição.
  6. Não há dúvida que a responsabilidade ambiental é de feição objetiva: § 1, art. 14, da Lei 6.938, assim dispõe: "Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.
  7. Esse tema é de fundamental importância na discussão dos seguros ambientais, a contratação de seguros concede segurança às vítimas quanto a probabilidade de satisfação da dívida, independente da solvência do devedor, porém a contratação de seguradoras não ensejam a limitação da responsabilidade até o valor da apólice.
  8. Edis Milaré considera inconstitucional do art. 3º, do Dec. 3.179 que limita a 10% o repasse ao fundo dos valores obtidos com pagamento da multa, isso porque não pode um Decreto contraria dispositivo de lei federal. (Direito Ambiental. Gestão em foco,5ª ed. São Paulo: RT, 2007, p.836).
  9. Recursos naturais, culturais, artificiais e elementos relacionados com a sadia qualidade de vida.
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Sobre a autora
Sabrina Maria Fadel Becue

Advogada.Mestranda em Direito Comercial na USP e sócia do escritório Katzwinkel & Advogados Associados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BECUE, Sabrina Maria Fadel. O dano ambiental e o regime jurídico das responsabilidades civil e administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2503, 9 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14822. Acesso em: 26 abr. 2024.

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