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Considerações preliminares sobre o relatório do novo Código de Processo Civil

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14/05/2010 às 00:00
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6. Procedimento único bifásico, iniciado pela audiência de conciliação.

Outra modificação alardeada pela Comissão do Novo Código de Processo Civil é justamente a criação do procedimento único, bifásico, iniciado pela audiência de conciliação.

Parece que as pretensões da Comissão de alteração do CPC são louváveis, eis que o procedimento ordinário e sumário não mais existiriam e sempre que possível, antes de qualquer apresentação de defesa e produção de provas, seria incentivada a conciliação.

O lema "conciliar é legal" mais uma vez seria objeto de incentivo no Estado brasileiro. Isso seria uma forma interessante de agilizar a resolução de muitas demandas.

No entanto, os dois problemas para a realização da conciliação no Poder Judiciário brasileira são: 1) a conciliação, no Brasil, é entendida numa perspectiva neoliberal; 2) ausência de infraestrutura do Poder Judiciário para permitir a realização das audiências de conciliação, quando for o caso.

Conciliar seria legal se fosse uma opção das partes. Qualquer tentativa de forçar a conciliação sob argumentos autoritários e que importem em renúncia de direitos deveriam ser consideradas ilegais e abusivas [11].

O segundo ponto que merece destaque é que infelizmente, o nosso Poder Judiciário, não possui condições de infraestrutura para comportar a realização de audiências de conciliação em número suficiente para dar resultados interessantes na perspectivas quantitativas e qualitativas.

Se observarmos o procedimento sumário previsto pelos artigos 275 e seguintes do CPC, especialmente o art. 277, verificaremos que a aplicação do princípio da conciliação já é obrigatória. No entanto, pode parecer um paradoxo, mas juízes estão deixando de aplicar o procedimento previsto em lei por falta de pauta e infraestrutura do Poder Judiciário. Nesse procedimento, a audiência de conciliação está sendo realizada no prazo médio de 6 (seis) meses, o que está dificultando a celebração de acordo, pois, sabidamente, o réu só verificará a possibilidade de um acordo quando da realização da audiência de instrução, quando novamente a conciliação será renovada.

Assim, muitos magistrados estão deixando de marcar a conciliação obrigatória no procedimento sumário por verificar que a mesma é inócua e que poderiam muito bem analisar a defesa para depois verificar a possibilidade de uma conciliação.

A não obtenção de conciliação no processo civil brasileiro se dá muito mais pela ineficiência do próprio poder judiciário, que não possui preparo suficiente e infraestrutura desejável para possibilitar às partes uma participação efetiva na busca de uma transação. Na maioria das vezes, verifica-se que há nos acordos feitos pelo judiciário uma imposição, sob a argumentação dos magistrados que não possuem sequer condições de saber do que se tratam as demandas e nem sobre os seus fundamentos.

Assim, antes de qualquer tentativa de incentivar a conciliação, como previsto pelo novo Código de Processo Civil, deve ser colocada em pauta a busca por uma mudança estrutural e ideológica do processo. A imposição de acordos não é legal e irá acabar formando decisões homologatórias falsas em suas premissas e que levam a uma má prestação jurisdicional.

Assim, se a conciliação, defendida pelo novo procedimento do Código Processo Civil quiser a um só tempo atender aos anseios de uma boa prestação jurisdicional, bem como de celeridade, isso não poder significar uma imposição de cima para baixo, fornecida exclusivamente pelos magistrados, mas sobretudo, deve ser algo incentivado e realizado pelas partes, respeitando a autonomia privada.


7. Competência absoluta dos Juizados Especiais

Outra ideia defendida pela Comissão de alteração do Código Processo Civil é justamente aquela de estabelecer a competência absoluta dos juizados especiais cíveis, para as causas entendidas como de menor complexidade, assim dispostas no art. 3º. da Lei n. 9.099/95.

Isso significa que nas causas até o valor de 40 salários mínimos ou nas hipóteses do art. 275, inciso II do CPC, seria obrigatório o ajuizamento da ação pelo procedimento do Juizado Especial.

Essa ideia defendida pela Comissão parte da premissa de que o Poder Judiciário comum seria importante apenas para as causas mais complexas e que isso auxiliaria na diminuição do número de demandas.

No entanto, verificamos que o Juizado Especial Cível Estadual já está com sua capacidade de processamento de ações comprometidas. O alargamento de suas competências está causando uma enxurrada de ações que já não são resolvidas rapidamente. As sentenças estão demorando em média 2 anos para serem exaradas. E depois que as decisões transitam em julgado, o Estado não oferece suporte algum para que as mesmas possam ser executadas.

O grande problema dos juizados é que os mesmos não possuem pessoal em número suficiente para resolver o problema da efetividade da decisão. Assim, não podemos ficar apenas mirando a ideia de decisão rápida sem que haja a preocupação também com a execução rápida. No juizado, infelizmente, a execução esbarra em inúmeros problemas estruturais e organizacionais que impedem, em demasia, o cumprimento das mesmas.

Além disso, verificamos que o procedimento do Juizado, por privilegiar a celeridade também abre mão do contraditório e da ampla defesa. Não é porque a causa é de menor complexidade que o Estado pode deixar de observar os princípios institutivos do processo.

Por mais que a celeridade processual seja almejada, ela não se justifica quando implica em retirar garantias essenciais do processo. Não se deve fazer ponderações de valores para resolver o problema da morosidade da Justiça, como ocorre nos Juizados Especiais, que limita o princípio do contraditório a fim de garantir a celeridade.

O processo, no Estado Democrático de Direito, é regido pelo discurso, ou seja, pela participação dos destinatários de uma decisão em sua formação. De que adianta uma decisão rápida se a mesma não foi construída pelos próprios litigantes? Ora, o processo, no Estado Democrático de Direito, é um pressuposto de legitimidade decisória. Se a efetiva participação dos litigantes em contraditório está sendo limitada, não está havendo processo e a decisão não é dotada de legitimidade, devendo ser considerada nula.

Assim, fazemos nossas as palavras de Baracho: "não se pode buscar a simplicidade e eficácia processuais com sacrifício das garantias fundamentais do processo, com procura de sistema jurídico menos opressivo e menos gravoso economicamente. Os princípios constitucionais efetivam-se através de uma justiça menos gravosa, mas sem esquecer custo e qualidade. O juiz, como órgão terminal de apreciação da Constituição, deve ser objetivo e claro em garantir os direitos fundamentais, como pressuposto de qualquer outro direito ou interesse individual ou coletivo, nos termos dos procedimentos consagrados. [...] A gênese, os métodos de elaboração e os objetivos do processo constitucional ocorrem dentro das coordenadas constitucionais, através da fundamentação e determinação de seus pressupostos e da definição da Jurisdição Constitucional, que procura ampliar as possibilidades de efetivação dos direitos fundamentais em sua plenitude, sem qualquer restrição de ordem econômica ou social, bem como do direito de defesa" [12].


8. Extinção de Recursos

A Comissão de alteração do Código Processo Civil, possui a ideia antiga dos processualistas brasileiros de extinguir o recurso de agravo, não havendo mais a preclusão no curso do processo, salvo para as questões urgentes e para as cautelares.

Também, como forma de mudança essencial, será estabelecido um único recurso de apelação no qual a parte manifestará todas as suas irresignações, bem como, quanto às decisões interlocutória proferidas no curso do processo.

Além disso, haverá extinção dos embargos infringentes, devendo constar o dever de o magistrado, cujo voto não tenha prevalecido relatá-lo expressamente, considerando-se este voto declarado como sendo integrante do acórdão para todos os efeitos, inclusive para fins de prequestionamento.

Por fim, o efeito, em regra dos recursos, passa a ser apenas o devolutivo, inclusive contra a Fazenda Pública, que somente em casos excepcionais terá o efeito suspensivo.

Com as novas alterações na sistemática processual, parece que a Comissão está imbuída no sentido de diminuir o espaço discursivo das partes e evitar a impugnação das decisões mediante recursos, evitando-se assim, uma morosidade costumeira no processo brasileiro, bem como o sentimento que as decisões, especialmente de primeiro grau não são dotadas de eficácia, pois sempre é possível a sua impugnação, transformando o mesmo em apenas uma decisão que precisa de confirmação pelos tribunais superiores.

Verifica-se que o Novo Código Processo Civil está tentando diminuir o número de recursos existentes, seja no aspecto legal, retirando de cena o Recurso de Agravo, bem como o Recurso de Embargos Infringentes, seja em números de recursos que tramitam nos tribunais.

Ocorre que, ao fazer a retirada de recursos (Agravo e Embargos Infringentes), o Novo Código Processo Civil está dentro de uma premissa equivocada, qual seja, de que apenas a retirada desses recursos sem garantir a participação das partes no processo de conhecimento, por si só, será suficiente para se evitar o avolumado números de recursos que travam os tribunais.

A relação entre os números de recursos e a participação das partes no processo é inversamente proporcional. Quanto mais se garante às partes a participação no processo de tomada de decisão, mais os recursos serão diminuídos, seja pela aceitação da decisão pelas partes, seja pela qualidade que tais decisões, que obviamente, não serão reformadas em grau recursal.

Existe uma relação íntima entre o direito de recorrer e devido processo legal. Alguns, e parece que assim será o Novo Código Processo Civil, tendem a acreditar que o recurso não é uma garantia fundamental e que o mesmo trás o descrédito à decisão de primeiro grau, além de aumentarem a duração do processo.

O instituto do recurso, em todas as suas modalidades, não pode ser compreendido apenas como o desenvolvimento do princípio do duplo grau, mas integra o desdobramento dinâmico das garantias do contraditório e da ampla defesa, uma vez que possibilita "uma intervenção das partes e um diálogo com o juízo todas as vezes que a decisão recorrida não tenha levado em consideração o seu contributo crítico [13]".

Assim, se a reforma processual que se apregoa nesse Novo Código Processo Civil aumentar a celeridade como pretende, diminuindo a participação das partes, bem como diminuindo a possibilidade de recursos, estaremos, a um só tempo, inviabilizando o acesso à justiça e deixando de lado o processo democrático, tendo infelizmente, decisões jurisdicionais solitárias e autoritárias, o que nos tempos atuais seria a manutenção um desserviço à toda a comunidade brasileira.


9. Conclusão

Assim, as conclusões preliminares sobre a edição do Novo Código Processo Civil são as de que se o presente código quiser receber a qualidade de novo, ou seja, mais que uma alteração processual, deve buscar modificar o embasamento teórico da escola da relação jurídica processual. É inquestionável a necessidade de reforma, mas tal reforma precisa vir em adequação com o paradigma democrático, nos termos preconizados pela Constituição da República.

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Se as alterações no Novo Código Processo Civil vierem exclusivamente para fortalecer ainda mais a participação do Juiz em detrimento da participação das partes, isso irá aumentar o descontentamento com a prestação jurisdicional, bem como acarretar ainda mais vias processuais indiretas para evitar a consolidação da injustiça.

O Brasil não precisa mais de reformas legislativas, o Brasil precisa é que as reformas legislativas sejam implementadas no plano fático. O próprio Código de Processo Civil de 1973 ainda não teve todos seus institutos observados e já se fala numa nova reforma. O que irá modificar a estrutura de uma boa prestação jurisdicional é o investimento maciço em condições técnicas e de infraestrutura para o próprio Judiciário, que anda, infelizmente, precisando deixar a sua inércia e buscar uma atividade mais próxima do cidadão e da coletividade.

Assim, infelizmente, o Novo Código Processo Civil será, diante do primeiro passo das questões que abordando nesse texto, um instrumento que pretende modificar o antigo repetindo os mesmos erros de reformas anteriores, qual seja, alterando a legislação sem alterar a estrutura.

Para que o CPC tenha a qualidade de "novo" é preciso mais que apenas modificá-lo. É preciso se libertar da escola da relação jurídica processual, que trata o processo como instrumento para a realização da jurisdição, para encará-lo como um instrumento de garantia da democracia e da participação das partes.


10. Bibliografia

BATTAGLINI, M; NOVELLI, T. Códice di Procedura Civile e leggi complementari con il commento della giurisprudenza della Cassazione. 7. ed. Millanno: Giuffrè, 1985, p. 132. GONÇALVES, Aroldo Plínio. Nulidades no processo. Rio de Janeiro: Aide, 1993.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 18ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

DIAS, Ronaldo Bretas de Carvalho. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992.

LEAL, Rosemiro P. Teoria Processual da Decisão Jurídica. São Paulo: Landy, 2002.

MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá editora, 2008, p. 173.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional in Revista da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas, v. 2, n 3 e 4, p. 1-312. Belo Horizonte: 1999, p. 97/98

NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa. 2003. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) – Faculdade Mineira de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003, p. 145.

VIGO, Rodolfo. Aproximaciones a la seguridad jurídica. In Derechos y Libertades – Rev. Del Instituto Bartolomé de las Casas. Ano III, Feb. De 1998, n. 6.


Notas

  1. GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p.171.
  2. MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 145/147 e 165/167 e 170.
  3. GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 188.
  4. LEAL, Rosemiro P. Teoria Processual da Decisão Jurídica. São Paulo: Landy, 2002, p.154/155.
  5. DIAS, Ronaldo Bretãs de Carvalho. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pp. 146-147.
  6. BATTAGLINI, M; NOVELLI, T. Códice di Procedura Civile e leggi complementari con il commento della giurisprudenza della Cassazione. 7. ed. Millanno: Giuffrè, 1985, p. 132. GONÇALVES, Aroldo Plínio. Nulidades no processo. Rio de Janeiro: Aide, 1993, p. 115.
  7. VIGO, Rodolfo. Aproximaciones a la seguridad jurídica. In Derechos y Libertades – Rev. Del Instituto Bartolomé de las Casas. Ano III, Feb. De 1998, n. 6, p. 497/500.
  8. Oskar Von Bülow é o idealizador da teoria do processo como relação jurídica processual, no qual foi ofertado ao mundo jurídico no ano de 1868.
  9. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 18ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 277.
  10. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 18ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 285.
  11. NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá editora, 2008, p. 173.
  12. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional in Revista da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas, v. 2, n 3 e 4, p. 1-312. Belo Horizonte: 1999, p. 97/98.
  13. NUNES, Dierle José Coelho. O recurso como possibilidade jurídico-discursiva das garantias do contraditório e da ampla defesa. 2003. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) – Faculdade Mineira de Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003, p. 145.
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Sobre o autor
Carlos Henrique Soares

Advogado militante. Mestre e Doutor em Direito Processual – PUC-MG e Universidade Nova de Lisboa. Professor de Direito Processual Civil da PUC-MG/Barreiro e Pitágoras-BH. Professor de Pós-Graduação do IEC, CEAJUFE, UNIFENAS, FDSM e APROBATUM. Coordenador de Pós-graduação em Direito Processual Civil pelo IEC/PUCMINAS. Autor de livros e artigos jurídicos. Palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Carlos Henrique. Considerações preliminares sobre o relatório do novo Código de Processo Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2508, 14 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14854. Acesso em: 24 abr. 2024.

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