CAPÍTULO 01:
Neste Capítulo, serão estudadas a coisa julgada, suas principais teorias e a sua relativização, abordando-se as correntes favorável e contrária.
ESTUDO DA COISA JULGADA.
Numa visão retrospectiva, pode-se afirmar que o processo civil romano era marcado por extremo formalismo. Os litigantes deveriam empregar termos exatos e qualquer falha poderia ter como consequência a perda do processo.
O processo da lex actiones tinha uma dupla fase. A primeira, perante um juiz togado, e a segunda, diante de um juiz popular indicado pelas partes ou pelo magistrado. Ao juiz popular cabia análise das provas e proferir a decisão. O litígio era instaurado ante o juiz estatal; os pontos controvertidos eram fixados, firmando-se a litis contestatio.
A coisa julgada não era formada na sentença, mas na litis contestatio; dessa forma, até mesmo antes da decisão final, já existia a coisa julgada.
Mais adiante, ingressa-se no processo formular. Aqui, permanece a divisão em duas fases, mas o juiz popular, ao julgar, deve ficar adstrito à formula anteriormente estabelecida pelo pretor. O Estado continua com uma participação não integral. Nessa ocasião, a sentença passa a adquirir a coisa julgada, pois ela é fruto da aplicação da fórmula, ou seja, a liberdade do juiz popular é reduzida e seu ato vinculado ao que foi predeterminado pela justiça estatal.
No processo da cognitio extra ordinem, desaparece a figura do juiz popular, e todo o processo fica sob o império do Estado. Ao juiz é dado o poder de examinar as provas e proferir a sentença. O novo conceito de sentença, agora como ato estatal puro, influi no de coisa julgada.
MACHADO (1) observa, com muita propriedade, que: a res judicata liga-se, na concepção romana, à autoridade estatal, de início vinculada à litis contestatio, enquanto fecho do procedimento in iure; depois à sententia, primeiro como ato pelo qual se soluciona a controvérsia, subjetiva e objetivamente fixada na fórmula e, por último, como via de entrega da prestação jurisdicional, quando subordinada ao monopólio do Estado.
No direito medieval, a autoridade da coisa julgada estava baseada na verdade presumida apresentada na sentença. Res judicata facit de albo Nigro, de quadrata redunta.
Já no século passado, SILVA (2) analisa a coisa julgada em CHIOVENDA. Inicia seu estudo deixando claro que, para o Prof. italiano, a ação não seria um direito subjetivo, mas só existiria direito de ação quando a sentença fosse favorável ao autor. A improcedência não se limitaria ao pedido do autor, mas sim à própria ação. O juiz não poderia criar, nem modificar a lei, devendo somente aplicá-la, já que a interpretação levada a efeito pelo juiz não seria obrigatória para todos, mas somente às partes em causa.
CHIOVENDA via a coisa julgada como indiscutibilidade da existência da vontade concreta da lei afirmada, não incidindo sobre fatos. Tem a mesma uma função negativa e uma função positiva. Na negativa, o seu exercício se dá através da exceção de coisa julgada; na positiva, obriga o juiz a reconhecer a existência do julgado em qualquer pronunciamento sobre a demanda.
Visa a coisa julgada a tornar imutável a decisão de maneira direta e obter a paz social de maneira indireta.Três espécies de coisa julgada são admitidas por CHIOVENDA: i) a coisa julgada formal, com a preclusão dos recursos, ii) a coisa julgada material, com a atribuição de um bem da vida ao vencedor da demanda e iii) a coisa julgada excepcional, quando atribui aos decretos e ordenanças o efeito de coisa jugada.
Os fatos que serviram de base ao julgamento não são acolhidos pela coisa julgada, podendo o juiz, em novo processo, não os ter como verdadeiros.
A relativização da coisa julgada já era conhecida por CHIOVENDA, em 1906; esse instituto, dizia, nada tem em si de absoluto e de necessário; do conceito de atividade judicial deriva necessariamente somente que a sentença deva poder mandar à execução, mas não que deva ser tida, no futuro, como norma imutável do caso decidido. Tanto é verdade que conhecemos direitos antigos, nos quais a sentença é obrigatória para as partes, mas pode indefinidamente ser impugnada, ora com base em novas provas, ora não... As partes podem renunciar aos efeitos do julgado. O réu poderá com uma ação de acertamento negativa fazer declarar, por exemplo, a impossibilidade da prestação.
LIEBMAN, por sua vez, em estudo desenvolvido por SANTOS (3) formula a percepção de coisa julgada como predicado da sentença, uma qualidade de que resulta sua imutabilidade.
Para ENRICO TULLIO LIEBMAN, uma vez que se esgotem as impugnazioni, meios de promoção da revisão dos julgados, ocorrerá o fenômeno denominado coisa julgada.
Coisa julgada formal e preclusão são cousas distintas. A preclusão é, subjetivamente, a perda de uma faculdade processual; a coisa julgada formal é a qualidade da decisão, ou seja, a sua imutabilidade dentro do processo. Coisa julgada material produz seus efeitos no mesmo processo ou em qualquer outro, vedando o reexame de res in iudicium deducta.
Relativamente aos limites da coisa julgada, esses podem ser objetivos e subjetivos. Objetivamente, somente a parte decisória da sentença fica resguardada, jamais seus motivos. Isso não implica em afirmar que somente o dispositivo da sentença é alcançado pela coisa julgada. Em qualquer lugar onde houver decisão, lá estará a coisa julgada, que se opera também sobre questões que poderiam ser discutidas e não as foram.
No campo subjetivo, a regra é que a sentença somente faz coisa julgada em relação às partes, embora tenha eficácia reflexa em relação a todas as pessoas.Com a autoridade da coisa julgada ficam as partes impedidas de pretender nova manifestação do Poder Judiciário a seu respeito, podendo a outra arguir a ecceezione di cosa giudiata ou o magistrado conhecê-la de oficio, pois a coisa julgada ultrapassa o interesse privado, sendo matéria de interesse geral de segurança.
Para LIEBMAN, a coisa julgada não é um efeito da sentença, mas uma qualidade que a lei agrega a essa para fim de promover a sua estabilização.
Outro italiano, ENRICO ALLORIO, tem a coisa julgada como um atributo da jurisdição, vale dizer, somente os atos aptos a produzirem coisa julgada são atos jurisdicionais; os demais, são administrativos. Essa teoria foi insuficiente, pois, por ela, as sentenças que não resolvem o mérito ou as sentenças proferidas em processos cautelares não seriam jurisdicionais. Isso sem falar nas sentenças condenatórias de natureza penal.
A teoria de Liebman, diz RODRIGUES (4), se aproxima de ALLORIO, no que se refere à jurisdição: pelo fato de que a atividade da jurisdição, na concepção de Liebman somente ocorre quando houver julgamento do mérito da causa. Assim, a jurisdição estaria relacionada à formação da coisa julgada material.
A jurisdição, conclui, não é o centro do ordenamento jurídico, mas está a serviço do processo, como instituição constitucionalizada.
Para o uruguaio COUTURE, estudado por CARVALHO (5), la cosa juzgada es una forma de autoridad y una medida de eficácia...es, en resumen una exigencia politica y no propriamente juridica: no es de razón natural, sino de exigencia práctica.
COUTURE entende que a sentença cria direito novo, cria um estado de certeza do que antes era abstrato. Compartilha o mesmo com o pensamento de LIEBMAN ao aceitar a coisa julgada como qualidade da sentença.
A distinção entre coisa julgada formal e material refere-se às decisões judiciais que tenham esgotadas as vias de recurso, não impedindo que, em um momento posterior, possam ser modificadas. A coisa julgada substancial ou material existe quando: a la condición de ininpugnable en el mismo proceso, se une la inmutabilidade de la sentencia aun en outro juicio posterior.
Dentro do campo da relativização da coisa julgada, COUTURE considera possível a revisão de julgados obtidos mediante fraude ou conluio, acarretando prejuízos a litigantes ou terceiros.
Por fim, ELIO FAZZALARI. Para ele, o processo é o procedimento qualificado pelo contraditório, ou seja, procedimento é o gênero, e o processo, espécie. Não havendo contraditório, não há processo.
A coisa julgada, para FAZZALARI, consistente na irretratabilidade da sentença prolatada pelo juiz, não exclui, por outro lado, que os efeitos do provimento do mérito possam incidir fora do processo. Após a sentença, por exemplo, condenando o réu ao pagamento de determinada verba, nada impede que as partes transijam, que o credor perdoe o devedor, tudo dentro do poder dispositivo das partes. Imagine-se, agora, que essas mesmas partes, após a decisão judicial, transitada em julgado, venham a acordar de modo diverso do decidido e uma delas deixa de cumprir o pactuado. Nada impede que o magistrado venha a conhecer essa demanda.
O juiz não estará ferindo a coisa julgada, pois não será ele, juiz, que irá alterar o conteúdo do julgado, esse já terá sido, previamente, alterado pela vontade das partes.
Em visão histórica nacional, somente em 1934, a expressão coisa julgada apareceu com status constitucional. No Estado Novo, 1937, ela não constou da Carta, por inspiração de FRANCISCO CAMPOS. Entendia que era na lei civil o lugar correto para que a mesma figurasse. A não- retroatividade, considerava CAMPOS, é tão- somente uma norma de interpretação, uma regra de hermenêutica e, por ela, se entende que o intérprete ou o juiz não podem aplicar a lei nova às relações jurídicas já consumadas na vacância da lei antiga.
Em nosso atual ordenamento jurídico, a coisa julgada se encontra prevista na Constituição Federal, art. 5°, inciso XXXVI, na Lei de Introdução do Código Civil (Decreto- Lei n° 4.657/42), na norma de seu art. 6°,no Código de Processo Civil, no § 1° do art. 301, § 3° do art. 301, arts. 467 e. 472.
A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA.
A pedra de toque em toda essa problemática é analisar até em que ponto a coisa julgada tem o poder de tornar imodificáveis os julgados. BONUMÁ (6), citado por SANTOS, lembra, lá no ano de 1946, que a cláusula rebus sic standibus é implícita no ato jurisdicional, sendo, assim, a inalterabilidade da sentença só é aconselhável em inexistindo violação aos princípios superiores de ordem pública. Será de fato, prossegue o processualista, que a coisa julgada pode fazer reto aquilo que é torto? Em outros termos, pode essa qualidade alterar a realidade? O branco passará a ser preto? Se está diante do vício transtemporal. O branco é branco hoje, continuará a ser amanhã e assim permanecerá por toda a eternidade, por mais que uma sentença diga o contrário.
Dentro dessa linha de raciocino, NASCIMENTO E PEREIRA JR (7) traçam uma bem elaborada abordagem filosófica. Fortes em ARISTÓTELES, diferenciam os conceitos de matéria e forma, afirmando que matéria é aquilo de que uma determinada substância é feita, "nesse sentido, uma peça jurídica possui como matéria palavras, argumentos e razões ordenadas num discurso que visa a dar conta da elucidação de uma querela entre partes. "Forma, ao contrário, permite que uma substância seja o que ela é, aquilo que reúne em si todos os componentes materiais da substância. As propriedades acidentais, por sua vez, são atributos que não têm o condão de alterar a substância do ente na sua configuração, embora faça parte do seu corpo.
Da utilização desses conceitos, concluem que a sentença, e não a coisa julgada, é que merece as considerações aqui desenvolvidas; a coisa julgada não é parte integrante da sentença, mas simplesmente qualidade. Ou seja, se a substância contém vício, não tem a qualidade o poder de corrigir a substância. O que é podre permanecerá podre, com ou sem adesão da qualidade.
Em sendo a sentença a matéria e a coisa julgada a qualidade, não se pode pensar em inconstitucionalidade na qualidade. Se há algum vício é evidente que o mesmo incide sobre a matéria, sobre a sentença. Ela é que será conforme a Constituição ou desconforme. A proteção da coisa julgada, envolvendo a sentença, não a torna imune ao vício. Em linguagem figurada: a casca do ovo não tem o poder de tornar saudável uma gema estragada.
A coisa julgada, portanto, além de não alterar a substância não é elemento imprescindível à mesma, vale dizer, é perfeitamente viável haver uma decisão, sem que a ela adira a coisa julgada.
Nas palavras daqueles doutrinadores: "dada sentença, se impregnada pelo vício da inconstitucionalidade, há se ser expurgada do universo processual, em razão de sua incompatibilidade com a ordem jurídica. A coisa julgada não tem o condão de remover essa patologia que a contamina, por improvável possa a qualidade modificar essência de matéria que não é própria, para convalidar ato jurisdicional nulo."
A coisa julgada, portanto, sendo qualidade, é elemento acidental da decisão, não contendo elemento de fundo.
ALMEIDA (8) considera que os efeitos da sentença não se tornam imutáveis, sendo passíveis de modificação extra- autos. As partes não são obrigadas a cumprir o decidido; podem, sem dúvida, alterar os efeitos da decisão em alguns casos, como quando se está diante de direitos disponíveis.
Cumpre destacar, nos termos de ALMEIDA, que efeito e eficácia não se confundem. Eficácias são potencialidades. Efeitos correspondem à expressão dinâmica das eficácias.
Eficácia é a possibilidade de materializar o conteúdo da sentença, e efeito é a exteriorização dessa materialidade.
DIREITO (9), nessa mesma linha de raciocínio, afirma que a coisa julgada não possui substância em si mesma; a sentença sim, pois é ela resultado da prestação de tutela jurisdicional. A coisa julgada exerceria, dessa forma, um papel ideológico de legitimação, implementando o convencimento e a certeza sobre a existência ou não de um direito. Não pode ela ser utilizada como segurança jurídica para uma panaceia de todos os males que afligem a sociedade.
A coisa julgada não tem inserção na Constituição Federal; o texto traz um comando ao legislador, impedindo-o de legislar de forma retroativa, para prejudicar direitos ou para alterar os efeitos de sentenças transitadas em julgado. Sua natureza jurídico-processual admite, em consequência, que a legislação ordinária crie exceções à sua formação. Exemplos clássicos são a revisão criminal e a ação rescisória. A autoridade da coisa julgada é uma opção política- constitucional relativa, podendo sofrer abrandamento pela lei, como no caso da lei penal posterior mais benéfica.
Na revisão criminal, diante do conflito entre a segurança jurídica, trazida pela imutabilidade dos julgamentos e a busca da verdade real, se inclina a mesma em direção a este último aspecto. Serve, portanto, a revisão criminal como refúgio da justiça, da dignidade da pessoa humana e ao devido processo legal penal, impedindo que um inocente, condenado erroneamente, tenha que sofrer os males incomensuráveis da privação da liberdade ou o estigma perpétuo de uma condenação criminal. É o remédio dado pela lei para o desfazimento da coisa julgada formal, no caso de ser ou de ficar evidente a ocorrência de erro judiciário. Constitui-se típica ação penal, de natureza constitutiva, que objetiva invalidar a autoridade da coisa julgada penal, em face de defeitos rescisórios de que se reveste a sentença que a acolhe.
Mesmo no caso da revisão criminal, onde o segundo bem mais importante do homem é agasalhado (o primeiro é a vida e o segundo a liberdade), a relativização da coisa julgada não traduz em seu aniquilamento. Com efeito, a presunção de verdade evidenciada pela autoridade da coisa julgada formal é contra o peticionário, a quem incumbe o ônus da prova de sua alegada inocência. O juízo de certeza que deriva da sentença penal condenatória trânsita em julgado, só pode ser desconstituído, a partir de elementos instrutórios suficientes e convincentes produzidos pelo autor da ação revisional.
Ora, prossegue DIREITO: "as decisões jurisdicionais configuram atos jurídicos estatais, posto reproduzirem a manifestação da vontade do Estado, sua validade pressupõe estejam elas em consonância com esses ditames." Se existe, como de fato existe, a supremacia de Constituição, e se todos os atos jurídicos devem estar conforme à Lei Maior, não pode haver hesitação que a sentença, num Estado Democrático, para ter eficácia, deve também a ela estar submissa.
SILVA (10), também se manifestando sobre o tema em questão, não tem receio em considerar possível a existência da coisa julgada inconstitucional, mas considera que o repúdio ao ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio que, fundado na necessidade de preser- var a unidade da ordem jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição. Esse postulado, fundamental de nosso ordenamento normativo, impõe que preceitos revestidos de menor grau de positividade jurídica guardem, necessariamente, relação de conformidade vertical com as regras inscritas na Carta Política, sob pena de ineficácia e de consequente inaplicabilidade.
Uma coisa julgada, diz SIQUEIRA (11), que está em confronto com a Lei Fundamental, por ser uma norma jurídica similar à lei ordinária, deve seguir o mesmo caminho dessa última, vale dizer, ser expulsa do ordenamento jurídico. Assim como os atos típicos dos Poderes Legislativo (leis) e do Executivo (atos administrativos) se submetem ao controle de constitucionalidade, não seria razoável dar-se tratamento diverso ao ato típico do Poder Judiciário (sentença). Em, eventualmente, agindo-se dessa forma, estar-se-ia violando o art. 2º da Constituição.
Questão que impõe estudo diz respeito ao seguinte questionamento: uma sentença que contenha vício de inconstitucionalidade adquire a qualidade de coisa julgada? Dizem que se a sentença inconstitucional é passível de ação rescisória e o pressuposto da ação rescisória é, exatamente, a preexistência de coisa julgada, é lógico que o vício da inconstitucionalidade não impede a formação da coisa julgada.
SÁLVIO DE FIGUEIREDO (12), por seu turno, diverge, considerando que uma sentença proferida por um juiz absolutamente incompetente é irremediavelmente nula, não sendo jamais acobertada pela coisa julgada. No caso, há falta de pressuposto de validade do processo. Finaliza seu raciocínio afirmando que, mesmo se ultrapassado o prazo decadencial de 02 (dois) anos da ação rescisória, poderá a parte, quando da execução do julgado, se o desejar, deduzir a nulidade absoluta do título exequendo, por meio de embargos à execução.
Dessa mesma opinião, comunga BERMUDES (13): "No tocante às decisões judiciais cuja subsistência é repugnante, existe a certeza de que elas não podem prevalecer de nenhum modo. Seria contra-senso pretender-lhes a eficácia, em nome da segurança jurídica, quando elas são causa de insegurança jurídica pelas incertezas,incredulidade, pelos temores que infundem. Produzem efeito contrário à finalidade institucional. Não se pode admitir o cumprimento desses atos, nem mesmo depois de preclusos todos os meios legais para sua impugnação."
CÂMARA (14) comunga dos ensinamentos acima, afirmando que, sendo em tese possível a existência de um ato jurisdicional que afronte a Constituição Federal, torna imperativo a também existência no sistema processual de um mecanismo de controle dessas anomalias.
O primeiro ataque, indubitável, é o recurso extraordinário. Entretanto, como soa trivial, o mesmo só é cabível enquanto não transitada em julgado a decisão violadora do texto maior.
Mas, e depois do trânsito em julgado? Divergindo de outros doutrinadores, considera CÂMARA que a coisa julgada é constitucionalmente assegurada, não se tratando, apenas, de uma garantia de irretroatividade da lei. Prossegue em seu raciocínio, considerando que, nem mesmo assim, se torna impossível relativizar a coisa julgada. Através da ponderação dos interesses em disputa, afasta-se, num determinado caso concreto, um princípio constitucional em favor de outro, também constitucional.
Em segundo lugar, afirma CÂMARA: apenas no caso de se ter algum fundamento constitucional é que será possível reapreciar o que ficou decidido por sentença transitada em
julgado. Tal como já afirmado anteriormente, a mera injustiça não é vista como causa suficiente por si só para relativizar a sentença que adquiriu a qualidade de coisa julgada.
Uma vez constatada o vício de inconstitucionalidade, poderá a ineficácia do ato jurisdicional ser reconhecida por qualquer meio idôneo, ou seja, por qualquer meio capaz de permitir que essa questão seja suscitada em outro processo, como questão principal ou como questão prévia.
Com efeito, não é mais admissível continuar o pensamento de que a coisa julgada é intangível. O que o cidadão espera do Judiciário é a defesa integral da supremacia constitucional. A missão dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, especialmente deste, é fazer prevalecer a força da Constituição.
PEREIRA (15) diz que a regra é o caráter relativo da coisa julgada, não se podendo desfigurar a segurança e a certeza de ordem jurídica que encarna, porém, permitindo sua destruição em ação autônoma. Onde quer que se tenha uma decisão aberrante,ali ter-se-ão efeitos juridicamente impossíveis e, portanto, não incidirá a autoridade da coisa julgada material. O instrumento adequado contra a sentença nula será a ação declaratória negativa de certeza. Para que se fale na tutela da intangibilidade da coisa julgada e, por conseguinte, na sua sujeição a um regime excepcional de impugnação, é necessário que se investigue sua adequação à Constituição.
Nenhuma prerrogativa excepcional pode ser outorgada à sentença judicial que provoque choque com o sistema constitucional adotado pela Nação.
A coisa julgada não poderá ser empecilho ao reconhecimento da invalidade da sentença.
A imutabilidade inerente à coisa julgada deve, dessa forma, ser entendida como inviabilidade de alteração mediante recursos, nada impedindo que, por vias outras, se possa alcançar a mudança.
CHIOVENDA (16) já escrevia que a lei admita a impugnação da coisa julgada nada tem, em si, de infenso à razão, pois que, efetivamente, a própria autoridade da coisa julgada não é absoluta e necessária.
Impossível é manter-se o dogma, em nome da segurança jurídica, em favor da verdadeira santidade da coisa julgada e a sua intangibilidade como valor absoluto.
JORGE MIRANDA (17) leciona que constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação: a relação que se estabelece entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – uma norma ou um ato – que lhe está ou não conforme,que com ela é ou não compatível. Também a actividade jurisdicional se encontra subordinada ao princípio da constitucionalidade, dependendo a validade de seus efeitos da conformidade com a Lei Fundamental.
Não há injustiça mais evidente do que a prevalência de um ato reconhecidamente ofensivo aos preceitos fundamentais da Constituição. Não basta que a Constituição outorgue garantias; tem, por seu turno, de ser garantida.
THEODORO JR e FARIA (18), com muita propriedade, dizem que os Tribunais são titulares de um poder constituído e não constituinte. A inconstitucionalidade torna nula ipso iure a sentença e, como tal, pode ser arguível e reconhecível a qualquer tempo e em qualquer processo, por qualquer juiz ou tribunal.
Se está diante de uma relação entre antecedente e consequente. Para que se defenda a intangibilidade da coisa julgada e, portanto, o regime diferenciado de impugnação, é necessário que, num primeiro passo, se investigue sua conformidade com a Constituição.
DANTAS (19), diante do vício de inconstitucionalidade da sentença chega a afirmar, ao meu ver de modo equivocado, a inexistência do ato jurisdicional. Partindo dessa premissa, alega que não teria sentido, nem justificativa, limitar a possibilidade de ajuizamento de ação rescisória ao prazo decadencial de dois anos previsto no art. 495 do Código de Processo Civil. Não aceitamos, diz ele, nos casos de inconstitucionalidade, o prazo decadencial de dois anos.
Ouso divergir. A sentença inconstitucional não é ato inexistente. É ato existente, porém, impregnado de vício grave que o torna nulo.
Deixando de lado esse aspecto, vislumbra-se que a inconstitucionalidade da sentença pode ser de três espécies: a orgânica, a formal e a material. CÂMARA (20), no primeiro caso, exemplifica com uma sentença proferida pela Justiça do Trabalho numa relação estatutária e não celetista. Haveria uma inconstitucionalidade orgânica. Formalmente inconstitucional seria uma sentença proferida em sessão secreta e, por fim, seria materialmente inconstitucional uma sentença que julgasse válido ato demissionário proferido em procedimento disciplinar administrativo sem que houvesse sido garantida a observância do contraditório e da ampla defesa.
Observa-se que todos os doutrinadores até aqui citados têm a preocupação em não esvaziar, por completo, a coisa julgada. Admitem eles a sua relativização, a quebra da imutabilidade quando o ato jurisdicional viola a Lei Maior.
SÓCRATES, mencionado por MARINONI (21), já alertava: crês, porventura, que um Estado possa subsistir e deixar de se afundar, se as sentenças proferidas nos seus tribunais não tiverem valor algum e puderem ser invalidadas e tornadas inúteis pelos indivíduos?
Ninguém duvida da importância da coisa julgada, como um atributo indispensável ao Estado Democrático de Direito. O que aconteceu, diante da inevitável possibilidade de comportamentos indesejados pelo sistema, foi a expressa definição das hipóteses em que a sentença transitada em julgado pode ser reanalisada.
Validar uma sentença abusiva seria medida odiosa. Não há tergiversação que o respeito à coisa julgada é um primado constitucional que, como qualquer outro princípio constitucional, não configura um princípio absoluto.
A Constituição procura colocar a coisa julgada fora do alcance de nova regra jurídica, com o objetivo de preservar a integridade do que fora decidido e tenha sido transitado em julgado. A proteção à coisa julgada é uma das facetas do princípio da irretroatividade da lei. Essa proteção não significa que a lei ordinária não possa alterar o regime da coisa julgada. O efeito de desfazimento da coisa julgada é dar de novo, isto é, entregar com outro conteúdo,no sentido próprio, a prometida prestação jurisdicional.
O poder judicial não é detentor da soberania e como tal, não se pode justificar o mito da intangibilidade da função jurisdicional. Soberano é o Estado como um todo, e não o Legislativo, o Executivo ou o Judiciário.
Todos os atos estatais são passíveis de desconstituição. O ato administrativo, o ato normativo e, também, o ato jurisdicional. Os Poderes da República são harmônicos e independentes entre si, portanto, seus atos possuem o mesmo peso.
ARAÚJO (22) assevera que a existência de decisões inconstitucionais é perfeitamente viável e deve ser levada a sério num Estado Democrático de Direito, como reflexo da adoção do Princípio de Supremacia Constitucional, sob pena de reconhecer no Poder Judiciário um Poder Constituinte autônomo e paralelo ao Poder Constituinte Originário.
CELSO DE MELLO (23), dando os exatos contornos da coisa julgada no plano constitucional, salientou que a jurisprudência do STF deixou assentado que, em regra, as alegações de desrespeito aos postulados da legalidade, do devido processo legal, da motivação dos atos decisórios, do contraditório, dos limites da coisa julgada e da prestação jurisdicional podem configurar, quando muito, situações de ofensa meramente reflexa ao texto da Constituição, circunstância essa que impede a utilização do recurso extraordinário. Na realidade, a alegação de ofensa à norma constitucional que protege a autoridade da coisa julgada não basta, por si só, para legitimar o acesso à via recursal extraordinária, pois acaso configurada, essa arguição caracterizaria, quando muito, situação de conflito indireto com o texto da Carta Política. In verbis: A questão pertinente à definição formal dos limites objetivos da res judicata submete-se ao domínio normativo da lei ordinária, não se revestindo, em conseqüência, da estatura constitucional, necessária à interposição do recurso extraordinário(RTJ 161/284).
Não de pode perder de perspectiva que a legislação processual civil é a sede, por excelência, da definição formal dos limites objetivos da coisa julgada.
Alguns estudiosos mencionam a expressão coisa soberanamente julgada. A Constituição não faz distinção entre coisa julgada e coisa soberanamente julgada. Essa última ocorreria após a impossibilidade, pelo decurso de tempo, de utilização da ação rescisória.
Seria plenamente constitucional a opção do legislador em se permitir a revisão criminal pro reo e pro societate.
Não se pode falar, a priori, que seria inconstitucional a revisão pro societate, porque o princípio da manutenção da liberdade e da dignidade da pessoa humana nem sempre, independente do caso concreto, é superior hierarquicamente ao princípio da manutenção da ordem pública e da paz social.
O que não poderia ocorrer seria a previsão da revisão pro societate e a exclusão da revisão pro reo.
CARMEM LÚCIA (24), a respeito do vício de inconstitucionalidade dos atos jurisdicionais, defende que a autoridade dos atos do Estado tem como suporte a autoridade constitucional que fundamenta os mesmos. O ato estatal sem base na autoritas constitucionalis é carente, tornando-o inválido.
Diz a Ministra: soberania não está na caneta do juiz, mas na tinta constitucional com que ela se aperfeiçoa e que a dota de força de poder estatal aderente e obrigante.
Quando a estabilidade decidida pelo ato judicial não se ativer nos contornos ditados pela Carta Constitucional, pode-se ter a certeza do decidido e só. Não se produz direito avesso à Constituição.
Não se pode buscar fazer da coisa julgada ato pétreo. Com efeito, se até mesmo a Constituição Federal pode, em sua grande maioria, ser objeto de modificações, através de emendas constitucionais, por que um ato jurisdicional seria intocável? Se a própria emenda constitucional está sujeita ao controle de constitucionalidade, por que uma sentença não estaria? Aí está! Nada justificaria o absolutismo da coisa julgada.
A coisa julgada é direito fundamental nesse sentido e apenas nesse. Lei nova não poderá
alterar o fundamento válido da decisão judicial transitada em julgado, porque a sentença já terá superado o momento de sua formação e ofertada ao cumprimento integral.
Não se pode considerar haver julgamento válido e subsistente contra a Constituição, pois o juiz busca a fonte de sua competência nesta Lei Suprema e sobre ela constrói seus julgados.
Imagine-se a insegurança pudesse o juiz atuar de forma contrária à Carta e o resultado de seu trabalho ficasse imune a consertos em razão de norma constitucional que viesse a proibir o dezfazimento de seus efeitos.
CARMEM LÚCIA ainda entende que se o julgado atenta contra a Constituição, não se aperfeiçoa com a qualidade de coisa julgada para os efeitos de garantia constitucional.
É de se observar a divergência entre os autores até aqui citados. Todos consideram que, diante de uma sentença violadora do texto constitucional, há necessidade de possibilitar a desconstituição do ato; entretanto, para alguns esse ato jurisdicional não adquire a qualidade de coisa julgada e, para outros, sim.
A questão não é pacífica. Considero que uma sentença inconstitucional, como qualquer outra sentença, pelo decurso de tempo, passa a gozar da qualidade de coisa julgada. Apesar disso, e como já dito acima, a coisa julgada não pode alterar a substância gravemente viciada. De conseguinte, mesmo sendo envolvida por essa proteção, a nulidade persiste e pode ser declarada.
A segurança e a certeza jurídicas inerentes ao Estado de Direito são insuficientes para fundamentar a validade de um caso julgado inconstitucional. Admitir-se que a coisa julgada inconstitucional convalesça no tempo seria o mesmo que dar a ela importância maior que a própria Constituição.
MACHADO (25), num interessante raciocínio, após defender que a coisa julgada na Constituição Federal é garantia somente contra a irretroatividade da lei, vale dizer, que uma
sentença transitada em julgado não poderia ser desfeita se uma lei posterior desse tratamento jurídico diferente àquele dispositivo utilizado pelo julgador, em sua decisão, acaba por afastar a aplicação do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, pois não existiria conflito entre princípios e garantias constitucionalmente assegurados.
Mais ainda, afirma que: se a coisa julgada emana da lei processual e se esta mesma lei não tem prazo para se submeter a um futuro crivo judicial, acerca de sua constitucionalidade, logo, a coisa julgada que imutabiliza os efeitos substanciais de determinada decisão – que de alguma forma ofendem à Constituição – não pode ficar adstrita a prazos processuais limitadores da possibilidade de sua rescisão.
Se uma norma jurídica foi declarada inconstitucional pelo Órgão do Judiciário competente, parece claro que a decisão judicial anterior que se tenha baseado nela não pode prevalecer. A toda evidência, isso poderia, se adotada a tese sem nenhum tempero, levar a consequências perigosas, pois situações, às vezes, muito antigas e já cristalizadas há décadas, ficariam sujeitas a um rejulgamento indesejado.
Surge então a importância do art. 27 da Lei n° 9.868/99, autorizadora da modelação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, possibilitando a produção de efeitos ex nunc, ou até mesmo em momento futuro. Essa norma, complementa o antigo art. 5° da Lei da Introdução ao Código Civil (norma de sobredireito), segundo o qual na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
A forma como se dará o desfazimento do julgado primitivo e o rejulgamento da causa é matéria que tem menos importância do que o reconhecimento da necessidade de combater o vício inconvalidável.
É preciso também ter em mente que, muitas vezes, apesar da existência desse vício de inconstitucionalidade, a sentença prevalecerá. É a hipótese, por exemplo, do ato jurisdicional que possui mais de um fundamento, sendo apenas um deles declarado, reconhecido inconstitucional. Ora, se mesmo extirpado esse mal, a parte dispositiva não sofrer alteração, não há por que rejulgar. Se o fundamento conforme a ordem constitucional é suficiente, por si só, para impor a manutenção do julgado, não deve o mesmo ser declarado nulo, em respeito ao fim social e ao bem comum.
É de se observar que, no Brasil, o controle de constitucionalidade incide, apenas, sobre norma específica e não sobre a matéria nela cuidada, nem se tem, até o presente, controle abstrato de constitucionalidade de políticas públicas. Exemplo disso ocorreu no STF, no curto período de uma semana. Num determinado dia, julgando uma lei estadual X, que disciplinava o procedimento recursal de multa de trânsito, a Corte entendeu ser a mesma inconstitucional, pois legislar sobre trânsito é matéria privativa da União Federal. Uma semana depois, julgando uma outra lei, de um outro estado federado, com a mesma redação da lei X, o Supremo considerou a mesma constitucional. Nesse último julgamento, entendeu que procedimento recursal de multa de trânsito é procedimento administrativo, não era matéria de trânsito e, portanto, o estado tinha competência para regulamentá-lo.
BENTHAM, citado por FERRARI (26), salienta que as normas jurídicas devem ser interpretadas a partir dos efeitos reais por elas produzidos, pois só seriam justas as que, ao serem aplicadas, produzissem bons efeitos, e injustas as que, em decorrência de sua aplicação, produzissem consequências desfavoráveis.
Um vez declarada inconstitucional uma norma, a lei anterior não repristina, e a razão é simples. A lei inconstitucional não revogou a anterior. Ela não tem eficácia revogatória por incompatibilidade constitucional
UMA VISÃO CONTRÁRIA.
É evidente que não há uma unanimidade a respeito da relativização da coisa julgada. Autores existem que são contrários à mesma.
YOSHIKAWA (27) chega ao ponto de iniciar o seu trabalho com as seguintes palavras: está aberta a temporada de caça à coisa julgada. Urge defendê-la, antes que seja tarde.
A segurança jurídica, a estabilização dos julgados são de fundamental importância para todos, até para o vencido que terá conhecimento dos exatos parâmetros de subordinação de seu interesse ao interesse do vencedor.
A coisa julgada, para essa corrente, tem inegável status constitucional. E, em direito constitucional, deve prevalecer, sempre, o chamado princípio da máxima efetividade. CANOTILHO (28) alerta que a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais e, embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas, é, hoje sobretudo, invocado no âmbito dos direitos fundamentais.
A expressão relativização foi escolhida não ao acaso. É exatamente para combater a noção do absolutismo da coisa julgada, algo incompatível com a modernidade.
Relativizar a coisa julgada para corrigir injustiças? O nosso próprio sistema processual, antes mesmo do trânsito em julgado da decisão, deixa de se preocupar com eventual injustiça inserta na mesma. Observe-se que, no recurso especial e no recurso extraordinário, só se discute matéria de direito. Por mais que a prova tenha sido valorada equivocadamente, com erro gritante, escandaloso, isso não importa mais.
Mencionando decisões da Suprema Corte Americana, Yoshikawa lembra o caso Stoll x Gorttlieb, 305, US 165 (1938), onde ficou expresso que não há razão para esperar que a segunda decisão seja mais satisfatória do que a primeira.
Igualmente, no caso Federated Departament Stores,Inc. e Moitie, 452, US 394 (1981), ficou assentado que alegações de justiça básica e ordem pública não autorizam a desconsideração da coisa julgada. O dano causado pelo estabelecimento de um precedente para se desconsiderar a salutar doutrina contra a prolongação de litígios seria maior que o benefício que resultaria da eliminação de sofrimentos individuais.
Nas palavras do referido Prof.: o processo civil se transformaria numa espécie de Valhalla judiciário, em que as partes se enfrentariam, em longa e extenuante batalha,até a proclamação do vencedor, para recomeçar o combate, do zero, no dia seguinte. Só que processo sem fim não é processo.
Os litígios seriam multiplicados. Um magistrado de primeiro grau, num momento inicial, analisaria se acataria ou não a decisão, transitada em julgado, tomada por ele mesmo, ou pelo Tribunal de Justiça, ou pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal Federal. Entendendo que a decisão violou a Constituição, pura e simplesmente, lhe negaria valor.
Na ação entre Rooker v. Fidelity Trust Co. 263, US 413 (1923), a já mencionada Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que, se as questões constitucionais mencionadas na petição de fato foram levantadas na causa, era de competência e obrigação dos tribunais estaduais decidi-las; e a decisão, certa ou errada, foi um exercício da jurisdição. Se a decisão foi errada, isso não torna o julgamento nulo, apenas o deixa vulnerável à reforma ou modificação, através da interposição tempestiva do recurso apropriado.
Coerente com seu modo de pensar, YOSHIKAWA, a respeito do parágrafo único do art. 741 do Código de Processo Civil considera-o inconstitucional, caso não seja interpretado em conjunto com o art. 495, também do CPC. Assim, os embargos só seriam cabíveis dentro do prazo de 02 anos do trânsito em julgado da decisão.
Por sua vez, CHERMONT (29) ao estudar o inciso XXXVI, do art. 5° da Constituição Federal, lhe dá grande amplitude. Quando o texto maior menciona não prejudicará, não se está limitando ao prejuízo que possa ser causado somente pela eventual retroatividade de uma nova lei, mas a qualquer prejuízo que possa ser causado à coisa julgada pela nova lei. A ação rescisória só é possível, pois tem raiz constitucional.
Violar a coisa julgada é violar a segurança jurídica, é violar o Estado Democrático de Direito. A tutela jurisdicional adequada pressupõe, também, decisão capaz de se manter, e não somente mera decisão justa.
A coisa julgada não pode ficar à disposição de eventual controle de constitucionalidade da norma que serviu de fundamento à decisão judicial. Mesmo quando há o controle abstrato de constitucionalidade, o ataque à coisa julgada só poderá ocorrer dentro do prazo de 02 anos, a contar do trânsito em julgado do ato que se pretende atacar.
Com a relativização, juízes de primeiro grau poderiam reexaminar decisões proferidas pela mais alta Corte, subvertendo-se a hierarquia. Clara a inviabilidade de relativização.
Ainda expondo contrariamente à relativização da coisa julgada, encontramos GÓES (30), que enumera alguns tópicos. Aqui, serão mencionados os mais importantes.
1.A coisa julgada é um direito fundamental e, nesse rumo, é cláusula pétrea. A coisa julgada é norma-princípio constitucional e não mera norma regra do direito processual civil. É uma das vigas mestras do Estado Democrático de Direito.
2.A coisa julgada material é a conseqüência necessária do exercício do direito de ação, por meio do processo.
3.A teoria da relativização não é moderna e vem desde a querela nullitatis.
4.Somos partidários da inconstitucionalidade da parágrafo único do art. 741 do CPC, haja vista que se desenhou uma aberração de uma exceção lato sensu de inconstitucionalidade de coisa julgada, no subterfúgio de inexigibilidade do título judicial.
5.Os relativistas propagam que a proteção à coisa julgada se dirige apenas ao legislador.O devido processo para o judiciário, com irrestrita mitigação da coisa julgada sem pauta legislativa, é sinônimo de caos- anarquia.
6.Os casos paradigmas foram o da desapropriação em São Paulo e o dos exames de DNA. Se o Estado-juiz errou no julgamento que se cristalizou, obviamente implica em aceitar que o Estado- juiz pode errar no segundo julgamento, quando a idéia de relativizar não traria qualquer benefício ou situação de justiça.
Como se vê, seu trabalho é extremamente sintético, não se aprofundando nos temas de relevo.
Mas o motivo determinante é sempre o mesmo, qual seja: supervalorizar o conteúdo do inciso XXXVI, do art. 5° da Constituição Federal, demonstrando que o enfraquecimento da coisa julgada leva ao risco de se perder a noção de segurança jurídica e de hierarquia judiciária.
Na mesma esteira crítica, encontra-se SILVA (31) que, censurando a posição de Delgado – que defende a relativização até para os casos de injustiça – já manifestada no capitulo anterior, entende que a sua asserção exerce, inevitavelmente, um efeito exterminador da coisa julgada.
Quem poderia impedir que o sucumbente retornasse, no dia seguinte, com uma ação inversa, pretendendo demonstrar a injustiça da segunda sentença.? Nossa modernidade, complementa, teria regressado ao direito medieval ou mesmo ao direito romano, perante o qual a sentença nula era de fato nenhuma (nullum), não carecendo, como o nulo moderno, de ser desconstituída.
A tese da relativização põe em perigo a razão de existir do próprio sistema jurídico, uma vez que ataca o seu fim último: a resolução de conflitos de forma definitiva. Estaria sendo jogado por terra a sentença transitada em julgado como fator pacificador de interesses em conflito.
Afirmar – são palavras de NOJIRI (32) – que o instituto da coisa julgada não goza do status de regra constitucional, pelo simples fato dele ser disciplinado em lei ordinária, é tão ingênuo quanto afirmar, por exemplo, que o mandado de segurança não é um remédio constitucional.
O fundamento da relativização do não ajuste do ato judicial com o justo, com o correto, com o ético, é um retorno ao jusnaturalismo. O problema está em se relacionar a validade de uma norma com algum padrão de justiça. Qual padrão? Não se pode confundir juízo de validade com juízo de justiça.
Também contrário à tese da relativização, encontra-se, por fim, MESQUITA (33) que considera um verdadeiro retrocesso fazer diferença entre sentenças justas e injustas. Retrocesso de mais de 500 anos. Nas Ordenações Afonsinas, de 1446, havia essa distinção entre sentença contra direito expresso e a proferida contra direito da parte.
Da primeira, dizia no Livro III, Título XXVIII, que era sentença nenhuumma,da qual não era preciso apelar, nem pode já mais, em algum tempo passar em cousa julgada,mas em todo tempo se pode dizer contra ella que he nenhuumma e sem alguum effeito. Já a sentença proferida contra o direito da parte era dita sentença alguma e se a parte contra que fosse dada não apelasse della ao tempo que per direito he assinado pera apelar, ela passaria em cousa julgada e ficaria firme, assy como se fosse bem julgado.