4. A cidadania no Brasil
Considerando o desenvolvimento da cidadania exposto por Marshall, o surgimento seqüencial dos direitos sugere que a própria cidadania é um fenômeno histórico e, comparando a experiência inglesa e a do Brasil, pode-se afirmar que houve pelo menos duas diferenças importantes: a primeira refere-se à maior ênfase nos direitos sociais em relação aos outros e à alteração na seqüência em que os direitos foram adquiridos. Outro aspecto importante, derivado da natureza histórica da cidadania, é que ela se desenvolveu dentro do fenômeno denominado Estado-nação, do que se pode apreender que a construção da cidadania pressupõe uma relação dos indivíduos com o Estado/Nação, ou seja, a maneira como se formaram os Estados-nação condiciona a construção da cidadania. Em alguns países, o processo de difusão dos direitos se deu principalmente a partir da ação estatal; em outros, foi resultante da ação dos próprios cidadãos.
No Brasil, da Independência (1822) até o final da Primeira República (1930), do ponto de vista do progresso da cidadania a única alteração importante foi a abolição da escravidão (1888). A abolição incorporou os ex-escravos aos direitos civis apenas no sentido formal. Sem sombra de dúvida, o fator mais negativo para a cidadania foi a escravidão, uma vez que os escravos não eram cidadãos, não possuíam nem mesmo os direitos civis mais básicos. Tampouco se pode dizer que os senhores fossem cidadãos, pois lhes faltava o próprio sentido da cidadania: a noção da igualdade de todos perante a lei. Neste período não havia povo organizado politicamente nem sentimento nacional consolidado; a ação política do povo era motivada contra o que se considerava arbítrio das autoridades e desrespeito ao pacto de não intervenção na vida privada. Por isso, tratava-se de uma cidadania em negativo.
A partir de 1930, houve aceleração das mudanças sociais e políticas, cuja mudança mais relevante verificou-se no avanço dos direitos sociais. Os direitos políticos tiveram evolução mais complexa, em face da instabilidade pela qual o país passou, alternando ditaduras e regimes democráticos; os direitos civis progrediram lentamente e sua garantia na vida real continuou precária para a grande maioria dos cidadãos. A antecipação dos direitos sociais fazia com que os direitos fossem vistos como um favor do Estado, o qual exigia gratidão e lealdade. A cidadania que daí resultava era passiva e receptora. Por outro lado, a concepção da política social revelou-se como privilégio e não como direito. Essa origem e a maneira como foram distribuídos os benefícios sociais tornaram duvidosa sua definição como conquista democrática e comprometeram em parte sua contribuição para o desenvolvimento de uma cidadania ativa.
Em 1964 com a imposição de mais um regime ditatorial, os direitos civis e políticos foram restringidos pela violência: a censura à imprensa eliminou a liberdade de opinião; não havia liberdade de reunião; os partidos eram regulados e controlados pelo governo; os sindicatos estavam sob constante ameaça de intervenção; era proibido fazer greves; o direito de defesa era cerceado pelas prisões arbitrárias; a justiça militar julgava crimes civis; a inviolabilidade do lar e da correspondência não existia; a integridade física era violada pela tortura nos cárceres do governo; o próprio direito à vida era desrespeitado. Ao mesmo tempo em que se cerceavam os direitos políticos e civis, os governos militares investiram na expansão dos direitos sociais. Na avaliação deste período, sob o ponto de vista da cidadania, destaca-se a manutenção do direito do voto combinada com o esvaziamento de seu sentido e a expansão dos direitos sociais em momento de restrição de direitos civis e políticos. No entanto as desigualdades, ao final do regime, tinham crescido ao invés de diminuir.
O auge da mobilização popular foi a campanha pelas eleições diretas em 1984, que, sem sombra de dúvida, foi a maior mobilização popular da história do país. Como conseqüência da abertura, os direitos civis foram restituídos, mas continuaram beneficiando apenas parcela reduzida da população, os mais ricos e os mais educados. Dos direitos que compõem a cidadania, no Brasil são ainda os civis que apresentam as maiores deficiências em termos do seu conhecimento, extensão e garantias. A falta de garantia dos direitos civis se verifica, sobretudo, no que se refere à segurança individual, à integridade física, ao acesso à justiça. A maioria da população ou desconhece seus direitos, ou, não tem condição de exercê-los efetivamente. Do ponto de vista da garantia dos direitos civis, os cidadãos brasileiros podem ser divididos em classes: os de primeira classe, os privilegiados e os doutores que estão acima da lei, que sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro e do prestígio social; ao lado dessa elite privilegiada, existe uma grande massa de cidadãos simples, de segunda classe, que estão sujeitos aos rigores e benefícios da lei; finalmente há os cidadãos de terceira classe, que correspondem à população marginalizada das grandes cidades, "elementos" que são parte da comunidade política nacional nominalmente, pois na prática ignoram seus direitos civis ou os têm sistematicamente desrespeitados por outros cidadãos, pelo governo, pela polícia.
5. Considerações Finais
Uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e igualdade para todos, é ideal talvez inatingível, mas tem servido como parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada país e em cada momento histórico.
A clássica divisão de Marshall conduz a identificar os direitos civis como aqueles que garantem a vida em sociedade; os direitos políticos, a participação no governo dessa sociedade; e os direitos sociais, a participação na riqueza coletiva. Ressalte-se que é possível haver direitos civis sem direitos políticos, mas o contrário não é viável, pois sem os direitos civis, especialmente a liberdade, os direitos políticos, sobretudo o voto, podem existir formalmente, mas ficam esvaziados de conteúdo e servem somente para justificar governos e não para representar cidadãos. Os direitos sociais colocam cada indivíduo em condições de ter o poder para fazer aquilo que é livre para fazer, isto é, são pressupostos ou precondições para o efetivo exercício dos direitos de liberdade. Vale lembrar que a brutal desigualdade, a ausência de educação colocam em perigo o exercício dos direitos civis, políticos, uma vez que cala a voz do cidadão, estimula o temor e permite que a lei do mais forte prevaleça.
Dos argumentos elencados por Marshall e das novas configurações de cidadania propostas na obra de Turner, pode-se destacar:
1. ‘Cidadania’ como um status legal: cidadãos são pessoas legalmente reconhecidas como membros de uma comunidade política particular e oficialmente soberana, que possuem direitos básicos a serem protegidos pelo governo dessa comunidade. Neste sentido, possuir cidadania é equivalente a possuir nacionalidade sob um determinado estado moderno.
2. ‘Cidadania’ inserida no conceito de república e democracia: cidadão tem sido a pessoa com direitos políticos de participar do processo de auto-governança, ideal que serviu desde então como inspiração e instrumento para esforços políticos a fim de alcançar maior inclusão e engajamento democrático na vida política. Esta concepção continua a desempenhar papel relevante no discurso político moderno. Ironicamente, parece que à medida que a cidadania tornou-se onipresente, ela tornou-se também despolitizada, ao menos no que tange à consideração de cidadania como participação formal no auto-governo.
3. ‘Cidadania’ para significar não apenas o quadro de membros de algum grupo, mas certos padrões de boa conduta. Este significado representa a fusão da concepção republicana da cidadania participativa com a prática comum de utilizar o termo ‘cidadania’ para se referir ao conjunto de membros em qualquer de uma quase infinita variedade de grupos humanos.
4. ‘Cidadania’ e a necessidade de redefinição a fim de responder aos grandes desafios, tais como a exclusão social, a imigração, novos movimentos sociais, pluralidade religiosa e étnica, globalização. Sob nova configuração, visa a inserir o cidadão no cenário internacional cosmopolita, enfrentar os abusos dos defensores radicais do mercado mundial, bem como promover o reconhecimento do valor da dignidade humana e o seu papel no interior de seu próprio Estado.
Da dimensão vertical, caracterizada pela relação Estado-cidadão, tem-se caminhado em direção à dimensão horizontal, caracterizada pela relação cidadão-cidadão, sob os auspícios do dever de solidariedade. É importante ressaltar que a primeira dimensão não está sendo substituída, mas complementada, uma vez que a solidariedade, a defesa do interesse público e o respeito à dignidade da pessoa humana tendem a resgatar o sentido de participação política, bem como a garantia de efetivação dos direitos fundamentais. Essa solidariedade significa abrir caminho para a participação dos cidadãos nas instituições do Estado, na ocupação dos espaços nas instituições da sociedade civil, de modo a criar mecanismos de articulação entre Estado e sociedade, visando ao alcance da liberdade para o exercício dos direitos fundamentais e a igualdade entre todos os membros da sociedade.
De certa forma, estaríamos superando o conceito de cidadania como ‘direito a ter direitos’, a partir de novas formas coletivas e não individuais, menos assentes em direitos e deveres do que em formas e critérios de participação.
No Brasil, a CF/88 situou a cidadania dentre os princípios fundamentais da República, redefinindo seu conceito com intuito de garantir a real participação política de todos os cidadãos, como forma de construir uma sociedade livre, justa e solidária. No entanto, a formalização dos direitos/deveres de cidadania não implicou, necessariamente, no seu exercício efetivo. A imensa disparidade social criou ambiente propício ao desenvolvimento de classes de cidadãos, ou seja, a sociedade brasileira se compõe de cidadãos que se colocam acima de qualquer lei, beneficiários de privilégios ao invés de direitos; de cidadãos que, normalmente, se sujeitam aos rigores e benefícios das leis; e, por fim, daqueles que se encontram à margem da cidadania e têm seus direitos constantemente aviltados. Dessa divisão totalmente injusta surge a desconfiança sobre a real existência dos direitos de cidadania e das condições mínimas de seu exercício por parte de seus titulares, que, em conseqüência disso, passam a questionar a legitimidade das instituições ligadas a estes direitos e a sua própria força em exigir garantias do pleno e efetivo cumprimento das promessas inseridas na definição de cidadania. A profunda desilusão e a conseqüente apatia da maioria dos brasileiros devem ser convertidas em educação e ação no sentido de demonstrar que a cidadania torna todo cidadão um protagonista na construção da sua própria história, aquele que toma o destino em suas mãos e assume o dever cívico de participar solidariamente na edificação de um Estado genuinamente Democrático de Direito.
6. Referências Bibliográficas
CARVALHO, José Murilo de. "Cidadania no Brasil – O longo caminho". Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
LAFER, Celso. "A Reconstrução dos Direitos Humanos: capítulo V - Os Direitos Humanos como construção da igualdade – A cidadania como o direito a ter direitos". Editora: Companhia das Letras.
LOPES, Ana Maria D’Ávila. "A cidadania na Constituição Federal brasileira de 1988: Redefinindo a participação política", in "Constituição e Democracia – Estudo em homenagem ao professor J. J. Canotilho". Coordenadores: Paulo Bonavides, Francisco Gérson Marques.
MARSHALL, Thomas Humphrey. "Cidadania, classe social e status". Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
SANTOS, Boaventura de Sousa. "Para uma concepção pós-moderna do direito", in "A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência". São Paulo: Cortez, 2000.
SMANIO, Gianpaolo Poggio. "A conceituação da cidadania brasileira e a Constituição Federal de 1988", in "Os 20 anos da Constituição da República Federativa do Brasil". Organizador: Alexandre de Moraes. Editora Atlas.
TURNER, Brian; ISIN, Engin. "Handbook of citizenship studies". London: Sage Publications, 2002.
Notas
- Apud LAFER, Celso. "A Reconstrução dos Direitos Humanos: capítulo V - Os Direitos Humanos como construção da igualdade – A cidadania como o direito a ter direitos". Editora: Companhia das Letras.
- MARSHALL, Thomas Humphrey. "Cidadania, classe social e status". Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
- TURNER, Brian; ISIN, Engin. "Handbook of citizenship studies". London: Sage Publications, 2002.
- Apud MARSHALL, op. Cit.
- JANOSKI, Thomas; GRAN, Brian. "Political Citizenship: Foundations of Rights", in TURNER, op. cit (cap. 2).