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Breves linhas sobre o Direito da Concorrência

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3. Livre Concorrência no Cenário Pós-Desestatização

O desenvolvimento da moderna regulação da economia e o surgimento das agências reguladoras trouxeram à tona novos dilemas na esfera concorrencial. Pode-se afirmar que a desregulação gerou uma re-regulação de diferente natureza (MOREIRA, 1997, p. 43). Agora não mais pautada no intervencionismo estatal, mas, principalmente, na adoção de mecanismos indiretos de intervenção pautados, fundamentalmente, no princípio da livre concorrência. Nas palavras de Carlos Ari Sundfeld (1999, p.161):

"quando, especialmente na doutrina norte-americana, fala-se em ''desregulação'' como sendo (ou devendo ser) a tendência da postura estatal relativamente aos lá denominados ''serviços de utilidade pública'', está-se tratando justamente do movimento de introdução da competição nesses serviços, eliminando-se a parte da regulação que, tendo sido criada para controlar os monopólios (controle das tarifas, p. ex.), passou a ser apontada como a grande responsável pela própria manutenção deles. Mas essa ''desregulação'' não elimina, antes supõe, a intervenção estatal via ''regulação'', só que agora com outras técnicas e novos objetivos, todos coerentes com o projeto de eliminação dos monopólios" (grifos nossos).

Dessa forma, a desregulação dos serviços públicos está intimamente relacionada à adoção da livre concorrência como princípio geral da economia em clara oposição, portanto, à planificação de setores pelo Estado. Assiste-se, hoje, à queda ou à mitigação do chamado modelo estatocêntrico, ou seja, à supressão de uma realidade em que as decisões do Estado são tomadas do modo mais centralizado possível – como se o poder brotasse de uma só fonte ou de um Estado soberano monocentrista. Vislumbra-se, em oposição a este modelo, o advento de um Estado com perfil policêntrico, é dizer, cujas decisões são tomadas, cada vez mais, de forma descentralizada, multiplicando-se os núcleos de onde emana poder. Nesse sentido, a "autoregulação" dos agentes econômicos pelas próprias regras naturais da concorrência substitui o controle rígido efetuado pelo direito estatal monocêntrico (controle tarifário, participação do Estado como prestador do serviço, etc). Ao Estado caberia intervir indiretamente no mercado por meio de uma regulação de nova índole, encorajando as práticas econômicas que promovam maior competitividade por meio da promoção, introdução e defesa da concorrência (prevenção e repressão ao abuso do poder econômico).

As agências reguladoras, fruto desse processo, situam-se em um sistema específico de regras composto por uma linguagem técnica específica (telecomunicações, energia elétrica, petróleo, saneamento etc). Por tal razão, estão muito mais próximas dos setores regulados, possuindo maiores condições para a aquilatação das informações necessárias dos problemas concorrenciais ocorridos na área específica. Sobre o fenômeno no direito norte-americano, afirma Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2004, p. 54):

"A proliferação das agências nos Estados Unidos encontra uma de suas explicações na alta complexidade da atividade administrativa, impossível de ser dominada por saberes genéricos e formais. Daí a idéia de especialização em áreas de atuação demarcadas, nas quais o conhecimento técnico exige uma formação especial."

O surgimento da nova regulação colocou em questão a aplicabilidade do princípio da livre concorrência nesses setores, o que foi, rapidamente, rechaçado. Como demonstra Calixto Salomão Filho (2001, p. 71),

"todos os setores cuja regulação tem um fundamento concorrencial mínimo não escapam ao controle concorrencial. Ocorre que a aplicação dos princípios concorrenciais constitucionais e da própria lei concorrencial é diversa tratando-se de setores regulados. Isso é decorrência do caráter mais interventivo exigido do direito antitruste em mercados mais concentrados".

O fato de que a maioria dos setores regulados é dotada de imperfeições estruturais se, por um lado, legitima a própria regulação, por outro, não pode afastar a aplicação do princípio da livre concorrência. Este é que precisa ser aperfeiçoado com o aprimoramento das técnicas de defesa da concorrência. O direito europeu orienta-se, exatamente, pelo reconhecimento da livre concorrência como princípio geral, cujas limitações decorrem de casos excepcionais. O Tratado de Roma (com as posteriores alterações) prevê, exatamente, a livre concorrência como o princípio a ser seguido pelos países da União Européia. O artigo 86, 2o. (antigo art. 90, 2o.) permite, contudo, a não aplicação cabal das regras de concorrência aos serviços de interesse geral quando isto possa comprometer as finalidades de interesse público que lhe foram confiadas. A jurisprudência recente do Tribunal de Justiça da Comunidade Européia vem confirmando esta equação, o que, se por um lado, reforça a incidência do direito da concorrência nos setores regulados, por outro, mantém viva a noção material de serviço público concernente à realização dos interesses sociais. Para os juristas portugueses Maria Manuel Leitão Marques e Vital Moreira (1999: p. 21): "a questão de desoneração do Estado na esfera econômica e nos serviços públicos é em grande parte resultante da nova articulação entre o serviço público e a economia de mercado. Mais do que um compartimento distinto, como tradicionalmente sucedia, os serviços públicos de hoje tendem a ser submetidos também à lógica de mercado, da empresa privada e da concorrência, somente com a excepção dos ‘monopólios´ naturais e com as limitações derivadas das exigências incontornáveis do serviço público, nomeadamente a acessibilidade econômica, a universalidade, a igualdade, a continuidade."

Vislumbrou-se, também, a possibilidade de setorização do direito concorrencial, o que, de certa forma, ensejaria a quebra da unidade da política concorrencial. Porém, entende-se que o princípio da livre concorrência e a Lei Antitruste (Lei 8.884/94) são aplicáveis à economia como um todo.

Com efeito, o suposto risco na segmentação do direito da concorrência foi superado pela constatação de que a atuação específica das agências por mecanismos preventivos de introdução e promoção da concorrência não afasta a intervenção dos órgãos de defesa da concorrência pelos mecanismos tradicionais. [06] Além disso, a articulação de competências concorrenciais entre agências reguladoras e os órgãos concorrenciais mitigou conflitos entre a política setorial e a aplicação do antitruste.

Assim, a atuação setorial das agências deve obedecer às linhas gerais da política concorrencial. Os setores regulados se entrecruzam e estão conectados aos demais setores da economia. A convergência tecnológica entre os serviços tem promovido integração jamais vista entre atividades antes completamente distintas. Uma especialização exacerbada poderia aumentar os riscos da "captura" [07] da agência reguladora e distanciá-las da noção constitucional de livre concorrência.

Gesner de Oliveira (2001, p. 18) alerta para os riscos deste processo:

"a experiência internacional e a literatura sugerem que a existência de uma agência central preocupada com a obediência das regras da concorrência é mais eficaz do que a fragmentação em vários órgão setoriais. A consideração desses elementos se reveste de importância em um momento no qual o governo cogita rever a legislação de defesa da concorrência. Se a missão de zelar pela competição for fatiada entre os vários setores da economia, o Brasil estará na contramão das tendências regulatórias do século 21."

O crescimento da nova regulação para além da esfera dos serviços públicos desestatizados, demonstrando autêntico reposicionamento do Estado face à economia, demanda uma nova postura dos órgãos de defesa da concorrência. A questão não é a de simplesmente articular competências entre as agências e o CADE, [08] que de resto constitui apenas o primeiro passo neste processo, mas de inserção dos órgãos de defesa da concorrência na nova configuração regulatória do Estado e da necessidade de atuação das agências na promoção da concorrência.


4. CONCLUSÃO

O livre mercado, em sua conformação constitucional, é definido pela ponderação das liberdades econômicas (liberdade de iniciativa e de concorrência), ou seja, por uma espécie de equação entre tais princípios. O princípio da livre concorrência representa a tutela coletiva (ou difusa) da liberdade de iniciativa no mercado e se apresenta como uma limitação ou contraponto à liberdade de iniciativa individual do agente que detém poder de mercado.

A concorrência propicia o bem estar econômico e social, uma vez que é, por meio dela, que é possível garantir preços competitivos, acesso ao mercado, pluralidade de produtos e melhores opções ao consumidor. A concorrência funciona hoje como autêntico mecanismo de inclusão social e desenvolvimento econômico, sendo aplicável, via de regra, a todos os setores da economia.


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Notas

  1. A escolha da Lei 4.137/62 como o marco temporal sobre o qual se inicia esta análise histórica não olvida toda a dimensão fática e normativa do direito econômico brasileiro que lhe precede.
  2. Gesner de OLIVEIRA destaca que 74% das decisões do CADE, no período de 1962 a 2000, foram tomadas entre 1996 e 2000. Mas pondera: "Este quantitativo não diminui, no entanto, a importância qualitativa da experiência obtida nas mais de três décadas anteriores." (2001, p. 09).
  3. Suas decisões não são mais suscetíveis de revisão, uma vez que não há entre o Conselho e a Administração Direta relação de subordinação hierárquica. Além disto, os Conselheiros, indicados e nomeados pelo Presidente da República e sabatinados pelo Senado Federal, passaram a possuir estabilidade em seus cargos, não podendo ser demissíveis ad nutum (livremente).
  4. O Plano de Desestatização foi posteriormente aprimorado pelo Programa Federal de Desestatização (Decreto 95.886/88). O governo Collor, por sua vez, editou um "pacote" de medidas provisórias que autorizavam a alienação do controle do capital social de empresas estatais federais, mas ainda com exclusão daquelas previstas como de exploração exclusiva pela União (v. g., petróleo, telecomunicações, energia elétrica). Estas medidas provisórias foram revogadas pela Lei n º 8.031/90 que criou o Programa Nacional de Desestatização. Novas medidas provisórias se seguiram até que o Governo Fernando Henrique Cardoso, após também uma série de diplomas normativos, editou a Lei 9.491 de 09.09.1997.
  5. Para Eduardo J. Rodriguez CHIRILLO, "la competencia no sólo no es incompatible con la mayoría de los fines públicos que se pretendan conseguir, sino que es el instrumento más idóneo para alcanzarlos". (1996, p. 466).
  6. Bolívar Moura ROCHA, em um dos primeiros estudos sobre a questão, já prenunciava o "risco de fragmentação e desvirtuamento da política da concorrência no País". (1998, p. 47).
  7. Para Floriano de Azevedo Marques (2005, p. 25), a captura pode ser definida como a "possibilidade de mitigação da imparcialidade do agente regulador em função da influência nas suas decisões exercida pelos agentes de mercado, pelos consumidores ou pela política circunstancial de governo. Não se trata de prática de atos (clara e diretamente) coibidos pela legislação, como corrupção, prevaricação ou concussão. Na verdade, são muito sutis os desvios da regulação em favor de um ou outro interesse, de maneira que se torna um tanto nebulosa a percepção da quebra da imparcialidade ou da independência do ente administrativo".
  8. Neste sentido, Gesner de Oliveira (2001: p. 37), considera que "a transferência da propriedade pública para a privada é menos importante do que a radical mudança no modelo regulatório que vem ocorrendo na maioria dos países maduros. Tal processo, que parece ainda mais complexo em um país como o Brasil, com escassa tradição e quadros técnicos na área transcende o escopo deste livro."
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Sobre o autor
Pedro Aurélio de Queiroz Pereira da Silva

Procurador da Fazenda Nacional. Foi Coordenador-Geral da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (2001-2003) e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do Planejamento (2006).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Pedro Aurélio Queiroz Pereira. Breves linhas sobre o Direito da Concorrência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2518, 24 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14886. Acesso em: 5 nov. 2024.

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