SUMARIO. 1. Introdução. 2. O contexto histórico: o século XX. 3. O que é o absurdo. 4. A reflexão jurídica camusiana. 5. Camus e a pena de morte. 6. O Estrangeiro: um direito absurdo. 7. Conclusão.
RESUMO. Abordagem de um direito absurdo na obra O Estrangeiro de Albert Camus. Contextualiza-se historicamente o autor da obra e a sua linha de pensamento. Explica-se o que significou, no contexto filosófico e literário, o absurdo para Camus, dentro do contexto da filosofia existencialista. Faz-se uma relação entre o absurdo, caracterizado pela inconsciência do homem em relação à sociedade e ao Estado, e a reflexão jurídica camusiana. Fala-se a respeito de Camus e a pena de morte. Faz-se uma leitura, na obra, do direito como instituição responsável pela perpetuação do absurdo.
Palavras-chave: Absurdo, Direito, Literatura, Sociedade, Existencialismo.
"I can turn and walk away
Or I can fire the gun
Staring at the sky
Staring at the sun
Whichever I choose
It amounts to the same
Absolutely nothing
I''m alive
I''m dead
I''m the stranger
Killing an arab" [01] (The Cure)
1. INTRODUÇÃO
A obra literária de Albert Camus é, em sua essência, uma obra filosófica voltada para a preocupação da situação do homem como ser no mundo. Segundo Camus, para quem este homem deveria ser sempre o sujeito de sua história, as instituições sociais devem existir com a função precípua de conferir ao ser humano a sua realização e felicidade, em vez de subjugá-lo a um sistema explorador que o esmague.
Albert Camus (1913-1960) representou uma influência decisiva na história do pensamento humano, sobretudo do século XX, devendo-se a ele importantes reflexões a respeito do papel desempenhado pelas instituições sociais, inclusive as judiciárias, em relação aos direitos e à vida humana. Ele participou ativamente de movimentos que tiveram como objetivo a conscientização do homem a respeito da importância de seu papel como agente de transformação da história.
Nascido a 7 de dezembro de 1913, na Argélia, Camus passou a infância no bairro pobre de Belcourt, em Argel, onde viveu sob condições simples. Seu pai, bretão, agricultor, foi morto durante a Primeira Guerra Mundial em 1914, sua mãe, argelina, desde então, trabalhou duramente para sustentar a família. Ligado a um ambiente familiar que influenciaria profundamente a sua obra, desde cedo, teve que se deparar com situações que lhe ofereceram consciência real do mundo em que vivia.
Para se compreender o pensamento e a vida de Camus, é preciso inseri-lo em seu contexto histórico, momento em que teve lugar um movimento literário que foi marcante, pela expressividade e participação na vida das pessoas. Camus participou de movimentos antifascistas contra o governo de Hitler, fundou movimentos culturais com o intuito de elevar o nível intelectual das pessoas. Em consequência da II Guerra Mundial, mudou-se para Paris, onde trabalhou como jornalista, participando ativamente do movimento de resistência clandestina contra o nazifascismo.
Neste estudo, será abordada uma visão absurda do direito a partir da obra O Estrangeiro, um de seus principais romances, onde o seu conceito de absurdo é retratado a partir da vida e das ações dos personagens.
Em O Estrangeiro tem-se a história de Meursault, um homem comum, habituado a um cotidiano que não lhe permite qualquer reflexão a respeito de sua realidade, de seu papel na sociedade. Alienado, ele realiza mecanicamente o seu trabalho, decide aspectos importantes de sua vida ao acaso, e se mostra alheio às convenções da sociedade em que vive. O comportamento de Meursault destaca-se pela frieza e quase ausência de sentimentos que o descrevam interiormente.
A vida deste personagem é marcada pela monotonia de sua rotina até o dia em que ocorre um fato que a mudará para sempre – Ele mata um árabe, é preso, julgado e condenado à morte. A partir de então tem inicio outra fase na vida de Meursault, a fase da descoberta, do despertar para a consciência a respeito de sua real situação e do significado da liberdade.
Para Camus, o homem é o responsável pela determinação de seus próprios atos, ele é que construirá a sua vida e, consequentemente, a sociedade em que vive. Assim sendo, a ele caberão somente dois papéis: o de agente das transformações, que será o responsável pelas mudanças; ou o de alguém passivo, que apenas sofrerá as consequências destas transformações.
Para Camus, liberdade e consciência são conceitos inseparáveis, uma vez que um implica o outro. Enquanto a consciência possibilita ao homem ser livre, a inconsciência, ao contrário, condena-o a ser uma vítima das instituições e da violência do poder. Desta forma, pode-se considerar que a reflexão jurídica acerca do pensamento camusiano é uma reflexão acerca da liberdade e da dignidade humana.
2. O CONTEXTO HISTÓRICO: O SÉCULO XX
Não há como entender a obra de Albert Camus, sobretudo O Estrangeiro, sem inseri-lo em seu contexto histórico, uma vez que sua filosofia foi fruto da realidade e das necessidades presentes no ambiente por ele vivenciado. A geração de Camus presenciou os principais acontecimentos históricos do século XX, entre eles, conforme enumerou Barreto:
A I Guerra Mundial, a depressão econômico-financeira de 1929, os expurgos dos processos de Moscou em 1936, a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), a defecção da democracia liberal burguesa diante de Hitler em Munique (1938), os massacres e destruição de populações inteiras na II Guerra Mundial, culminando as suas experiências históricas com a destruição cientificamente controlada de Hiroshima e Nagasaki. Todos esses acontecimentos viriam alterar fundamentalmente a vida e a obra de toda uma geração. [02]
No inicio dos anos 40 o mundo encontrava-se inserido no contexto da II Guerra Mundial, época que se caracterizou por apresentar um clima de insegurança sem precedentes na historia da humanidade.
O absurdo da guerra disseminou o caos político, social e econômico; a miséria e a violação aos direitos individuais e coletivos.
As consequências da guerra difundiram no espírito do homem do século XX a incerteza com relação ao futuro da civilização humana, das instituições sociais e do homem enquanto individuo portador de uma consciência e protegido por um ordenamento jurídico.
Filosoficamente, passou-se a questionar o sentido da existência humana, do homem enquanto ser e da irracionalidade do mundo.
O horrível espetáculo da morte descortinou aos olhos dos homens um mundo que se amparava em instituições que, acreditavam-se, sólidas, e em uma hierarquia de valores que variava de acordo com os interesses dominantes. A crença na ausência de uma ordem axiológica prévia à existência do individuo, e de um Deus capaz de garanti-la, ao que se junta a inevitabilidade da morte retira o sentido do mundo.
Até o momento em que o homem acreditou explicar o mundo a sua volta, este lhe parecia familiar, racional, mas ao deparar-se com um mundo "sem ilusões", irracional, ele passa a tomar consciência da absurdidade, passando a se sentir estrangeiro em seu próprio meio.
Neste contexto, tem-se um movimento literário marcado pela grande expressividade e participação na vida das pessoas, procurando atender aos questionamentos que aí eram levantados.
O ideal da literatura romântica do século XIX quanto à natureza essencialmente boa do ser humano, e a ideia de que a racionalidade e o progresso trariam necessariamente a felicidade ao homem, cedia lugar a um pessimismo histórico e à crescente desvalorização destes conceitos. Os pensadores do inicio do século XX passaram a questionar valores sociais impostos e a destacar as desigualdades existentes entre os antigos discursos e a prática que então se efetuava. A dura realidade cotidiana vivenciada passou a ser retratada cruamente em suas obras a fim de proporcionar consciência real sobre esta mesma realidade. Nas palavras de Raimon:
Camus a donné, avec L’Étranger, une ‘expression mythique’ de la sensibilité moderne. Meursault est une incarnation de l’homme absurde, comme le René de Chateaubriand est une illustration de l’homme romantique. L’homme absurde était, bien sur, l’expression d’un temps de désarroi. L’Étranger avait été conçu et écrit à la veille de malheurs collectifs, et trouvait sous l’occupation, lors de sa publication, des échos particulièrement favorables. Le héros de Camus n’incarnait pas seulement la sensibilité d’un temps ; il était un double de l’auteur. [03]
3. O QUE É O ABSURDO
O que comumente se denomina de existencialismo não se trata de uma doutrina única, mas de um conjunto de doutrinas que seguem caminhos singulares e particulares. Surgido como uma crítica à tradição racionalista e idealista, o existencialismo ocupa-se do homem enquanto existência humana única e subjetiva.
Jean Paul-Sartre foi o que teve mais repercussão entre os existencialistas e que divulgou suas teses para um público maior através de sua arte literária, em romances e peças teatrais.
Sartre afirma que, de acordo com a tese existencialista "a existência precede a essência", ou seja, o homem primeiro nasce, surge no mundo, para só depois se determinar a ser isto ou aquilo, ele não é definível ao nascer uma vez que aí ainda não é nada como realidade humana. Deste modo, a essência não determina o homem, pois este, como um eterno "vir a ser", não possui uma essência, mas ele é que se constrói na medida em que passa a agir de forma livre, fazendo escolhas e assumindo os riscos de viver e a responsabilidade por estas escolhas. [04]
Para Sartre o homem começa, não quando é concebido, mas quando se determina a ser alguma coisa. Então, neste sentido, a dignidade maior do homem em relação às demais coisas está no determinar-se, no realizar-se, pois ele, como as demais coisas, existe no mundo, mas somente o homem pode construir-se no mundo [05]
Então, se verdadeiramente a existência precede a essência e o homem pode determinar-se em ser isto ou aquilo, então, consequentemente, ele é responsável por aquilo que é, por aquilo que determina ser. Assim, os existencialistas atribuem ao homem toda a responsabilidade por sua existência. No entanto, a determinação do homem não é válida somente para ele como o é, também, para os demais homens e para a sua época.
Tal responsabilidade social do indivíduo gera em seu interior uma angústia existencial. A total liberdade de escolher ser, esbarra na responsabilidade direta em relação aos outros homens. Deste modo, se existir é escolher, existir é sofrer angústia.
Esta liberdade de escolher o próprio rumo a ser tomado lança o homem em uma situação de desamparo, pois não há mais um Deus mandando nos acontecimentos nem um destino preconcebido. Ele deverá, sozinho, buscar a realização do seu ser, do contrário, tudo resultara em frustração e angústia. Assim, não existe nenhuma certeza para o homem em relação à sua existência a não ser uma: a morte, este encontro com o desconhecido, esta possibilidade inevitável, ou, o fim de todas as possibilidades.
Esta única certeza que é a morte conduzirá este homem na busca de um sentido para sua existência enquanto ser no mundo, portador de uma consciência, do contrário tudo resultará em um absurdo, em uma vida desprovida de propósitos. O absurdo é o sentimento dessa realidade – o homem perante uma existência sem objetivos que o satisfaça.
Ao contrário de autores como Sartre, Camus não se considerava um existencialista, afirmando que sua obra era mais influenciada por Kafka e Dostoievski que propriamente pelos existencialistas. De acordo com Barreto seu pensamento filosófico é formado sobre dois pilares principais: o conceito do absurdo e o da revolta. A sua definição de absurdo diz respeito ao confronto da irracionalidade do mundo com o desejo de clareza e racionalidade que se encontra no homem. Quanto à ideia de revolta, ela está vinculada em ultima análise, à busca inconsciente de uma moral. [06]
Na obra O homem revoltado Camus questiona a legitimação do homicídio no mundo, se ela deveria ou não ser aceita, e, se não, como transformá-la. Para Camus, o homem e o mundo são duas realidades alheias e ininteligíveis uma vez que o homem tem uma sede inesgotável de absoluto, pois quer compreender o mundo, esmiuçá-lo, reduzi-lo a uma teoria que possa explicá-lo, como acredita explicar muitos fenômenos físicos de sua realidade. Porém, tanto de si quanto do mundo, o homem só conhece fragmentos, estilhaços que de forma alguma lhe proporcionarão um verdadeiro conhecimento. [07]
Para Albert Camus "o absurdo nasce deste confronto entre o chamamento humano e o desrazoavel silêncio do mundo". É, pois, este desejo de clareza, de unidade, contraposto ao mutismo do mundo que significam o próprio absurdo. [08]
Entretanto, todo este universo de angústia, impotência e desejo de unidade não são tão originais de Camus. Muitos filósofos e pensadores já enveredaram por esta temática: Kierkegaard, mais do que descobrir o absurdo, viveu-o intensamente, com desespero; Jasper defendeu o nada como única realidade e o desespero como única atitude, enquanto Heidegger afirma-nos uma existência humilhada. Porém, tanto Kierkegaard como Jasper e Heidegger, apesar de se situarem num contexto absurdo, onde não havia esperança, acabaram por divinizar tudo que os oprimia, encontrando, por fim, a esperança. [09]
Para Camus, a revolta é uma das principais consequências do absurdo, uma vez que surge de sua aceitação, e aceitar o absurdo é manter viva a evidência que despertou o homem de seu sono tedioso e cotidiano, é não vislumbrar a esperança de uma vida eterna, futura e transcendente como solução, mas buscar, aqui e agora, em seu próprio mundo o sentido, agindo racionalmente, de maneira a buscar a felicidade. [10]
A revolta é o resultado da não aceitação da esperança, da necessidade e disponibilidade, pelo homem, da ação. Partindo-se desta ideia, pode-se considerar que a revolta camusiana é uma forma de liberdade, pois o homem revoltado é aquele que age racionalmente transformando sua realidade, sem esperar que outros fatores, que não ele próprio, venham proporcionar esta mudança.
Assim, de acordo com este pensamento, para Camus a felicidade não deve ser algo atribuído a uma existência vindoura, pertencente a um plano espiritual, distante da realidade humana, mas ela deverá ser buscada e vivenciada pelo homem neste plano material, fato notadamente destacado na obra Núpcias, onde Camus descreve um banho de mar como uma relação de intensa intimidade e prazer entre o homem e a natureza:
É preciso que eu fique nu e, depois, mergulhe no mar e que, ainda perfumado de essências da terra, possa lavá-las nas águas desse mesmo mar, estreitando em meu corpo o abraço pelo qual suspiram, lábio a lábio, há tão longo tempo, a terra e o mar. Uma vez dentro d´água, é o sobressalto, a subida de uma viscosidade fria e opaca, depois o mergulho no zumbido dos ouvidos, o nariz a pingar e a boca amarga — o nado, os braços polidos de água, saídos do mar para se dourarem ao sol e de novos abaixados, numa torsão de todos os músculos, a corrida da água sobre meu corpo, a posse tumultuosa da onda pelas minhas pernas — e a ausência de horizonte. Na praia, é a queda na areia, abandonada ao mundo, uma vez mais de volta a meu peso de carne e osso, embrutecido de sol, lançando de longe em longe um olhar para meus braços, onde as poças de pele seca deixam a descoberto, à medida que a água escorre, a penugem loura e a poeira de sal [11]
Neste sentido, Camus é fortemente influenciado pelo filosofo alemão Friedrich Nietzsche. Uma vez que possuía um profundo amor pela vida, defendia que o grande desafio do ser humano era buscar nesta vida, o máximo de prazer e alegria em vez de esperar esta recompensa numa vida vindoura.
Nietzsche igualmente acreditava que o divino não era algo separado do humano. Ao anunciar a morte de Deus referia-se ao fim, ao declínio da formulação do Deus que a metafísica clássica ocidental construiu – a de um ser absoluto, supremo, diante do qual o homem deveria inclinar-se em obediência cega, inquestionável. Mas este homem, ao contrário, deveria ele mesmo conduzir os seus próprios desígnios, fazendo suas próprias escolhas, não importando serem elas boas ou más, o que este filósofo denominou de "a transvalorizaçao de todos os valores". [12]
Por conta desta influência, a obra de Camus, conforme destaca Barreto, tem como característica fundamental o rompimento com as diferenças tradicionais entre o bem e o mal, o certo e o errado. [13]
Camus acusa o cristianismo de dar maior importância à história que à natureza, mudando a relação humana para com a mesma de uma relação contemplativa para uma relação de sujeição. Uma vez que amava mais a natureza que a história, este autor a considerava como a representação do lugar do prazer do corpo, e, ao mesmo tempo, a sua mediação com o sagrado.
Entretanto, para o homem, quanto mais a vida lhe valer, maior será o absurdo trazido por ela, pois a consciência da morte o acompanha em todo o seu trajeto, como um fim, como algo que porá termo à sua felicidade. Assim sendo, felicidade e absurdo vivem em parceria, e um pertence ao outro. Neste sentido, quanto mais o homem buscar a vida, mais se deparará com o absurdo.
4. A REFLEXÃO JURÍDICA CAMUSIANA
O momento histórico abordado neste estudo corresponde ao período mais intenso da criação literária de Camus em que ele produziu as obras O Estrangeiro (1940) e O Mito de Sìsifo (1941), uma analise sobre o absurdo. Na verdade, todo o percurso intelectual de Camus é marcado pela preocupação com o problema da liberdade humana, desta forma, pode-se dizer que a reflexão jurídica acerca do pensamento camusiano é essencialmente uma reflexão acerca da liberdade.
Para Camus, um dos grandes inimigos da liberdade humana é a inconsciência e a violência do poder. A consciência é a percepção que o homem passa a ter no momento em que entende sua situação como ser no mundo, diferente das demais coisas à sua volta, uma vez que é portador da capacidade de criar-se, de modificar-se a si e ao mundo em que está inserido. Assim, conforme afirma Correia:
... a única realidade do domínio moral é a ‘subjetividade’ humana, é o homem ‘em situação’ escolhendo soberanamente e por aí criando a sua vida. Como eu sou a série dos meus atos e não existe uma natureza humana, como eu existo sempre neste instante, aqui e agora, e não encontro outra regra das minhas ações fora do meu ato gratuito de escolha, como legislador supremo, nesta liberdade absoluta, eu devo assumir a liberdade total de minha existência. Eu faço dela o que entender e por mim escolho a humanidade inteira. Porque não há valores que se imponham a mim antes da minha atitude, nada está escrito num ‘céu inteligível’, como diz Sartre. [14]
Por outro lado, a inconsciência condena o homem a uma vida desprovida de propósitos, de um verdadeiro sentido que a justifique, absurda.
Essa liberdade defendida por Camus, através de sua obra, implicará para o homem uma igual responsabilidade face à sua realidade, uma vez que a liberdade não existe somente para ele como também para os demais homens que com ele convivem. Assim: "a liberdade do homem é o que o obriga a fazer, em vez de ser, e neste sentido é absoluta, pois é ela que dá sentido às determinações que poderiam vir de fora ou do passado" [15]
A inconsciência humana gera um outro grande inimigo da liberdade que é a violência do poder. Para Camus o homem primeiro nasce, surge no mundo, para só depois se resolver a ser isto ou aquilo. Da mesma forma, o mundo com as suas instituições não é nada sem a existência do homem que irá criar e conduzir este mundo, instituindo-o de acordo com as suas necessidades e vontades. Assim, a limitação do poder do Estado é uma consequência lógica desta reflexão uma vez que
O sujeito existe antes mesmo dele, e o autoriza, bem como o legitima, a ele atribuindo nascimento e morte, de modo que se pode afirmar que o sujeito é sempre o autor das instituições. A limitação dos poderes do Estado é decorrência lógica dessa reflexão. Mais ainda, o Estado só se autoriza se sua busca perene não for outra senão a justiça [16]
No romance O Estrangeiro Camus identifica em Meursault o homem inconsciente enquanto ser no mundo. Ele parece, a todo o momento, se deixar levar pelo acaso, não cria os acontecimentos, mas apenas é vítima deles sendo conduzido irrefletidamente, por seus atos, a um destino trágico que bem pode significar a tragédia humana face ao totalitarismo do poder.
O julgamento e condenação do protagonista à pena de morte trazem a reflexão a respeito do Direito como instrumento de legitimação e perpetuação do absurdo, uma vez que o homem inconsciente torna-se presa fácil de um sistema que pretende manter a dominação, criando no homem a falsa impressão de estar protegido por um ordenamento jurídico sólido, infalível. No entanto, se esquece que a hierarquia de valores defendida pelo direito não é algo estanque, podendo mudar de acordo com o interesse considerado primordial, e este, nem sempre é a vida humana.