I – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
O presente artigo tem por objetivo examinar a constitucionalidade de projetos de lei apresentados por membros do Poder Legislativo e que tenham por objetivo a criação dos conselhos federal e estaduais para a fiscalização do exercício de profissões regulamentadas, tendo em vista o crescente número de projetos desse teor em tramitação nas duas Casas do Congresso Nacional, de iniciativa de parlamentares.
II – NATUREZA JURÍDICA
Muitas dúvidas foram postas na doutrina acerca da natureza jurídica dos conselhos responsáveis pela fiscalização de profissões regulamentadas, se pessoas jurídicas de direito público ou privado.
Essa dúvida se viu reforçada pela edição da Lei nº 9.649/98, a qual estabeleceu que os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas seriam exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa.
De modo a dirimir a questão, foi ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal ação direta de inconstitucionalidade (ADI 1.717-6) em que se atacava o dispositivo que atribuía personalidade jurídica de direito privado aos conselhos de fiscalização de profissões.
Apreciando a matéria tanto em sede de cautelar quanto de mérito, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas possuem personalidade jurídica de direito público, sendo criados por meio de lei federal, com o fim de zelar pela fiel observância dos princípios da ética e da disciplina dos que exercem atividades relacionadas a uma categoria profissional.
Considerou, portanto, inconstitucionais os dispositivos da referida Lei nº 9.649/98 que atribuíam personalidade jurídica de direito privado aos conselhos de fiscalização.
Nesse sentido, assim concluiu a Corte Suprema ao julgar a já mencionada ADI 1.717-6, conforme ementa a seguir:
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do "caput" e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime. (Grifo nosso).
Portanto, resta indiscutível que os conselhos de fiscalização de atividades profissionais devem possuir personalidade jurídica de direito público, assumindo, portanto, a natureza de autarquia federal, definida esta pelo art. 5º, I, do Decreto–Lei nº 200/67 (que tratou da Reforma Administrativa federal), como "o serviço autônomo criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio próprio, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada."
Tal natureza jurídica, definida pelo Supremo Tribunal Federal, é a que melhor se coaduna com a atividade dos conselhos, que é eminentemente pública.
Os conselhos possuem competência para aplicar sanções aos fiscalizados, bem como podem arrecadar tributos, as contribuições de interesse das categorias sociais, ou contribuições parafiscais. A possibilidade de figurar como sujeito ativo de uma obrigação tributária é deferida apenas às pessoas jurídicas de direito público, à vista do que dispõe o art. 119 do Código Tributário Nacional, segundo o qual "sujeito ativo titular da obrigação é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu cumprimento."
III – INICIATIVA DO PROJETO DE LEI DE CRIAÇÃO
Dúvida não há quanto à necessidade de lei para a criação dos conselhos de fiscalização de profissões, pois sendo os mesmos entidades públicas de natureza autárquica, somente por lei pode se dar a sua criação, assim como definir seu patrimônio, estrutura administrativa, atribuições e cargos.
A Constituição Federal, em seu art. 21, XXIV, estabelece ser competência da União organizar, manter e executar a inspeção do trabalho, bem como legislar privativamente sobre a organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões. Portanto, apenas a lei federal poderá criar conselhos para fiscalização de profissões, da mesma forma que somente a União poderá regulamentar uma profissão específica.
A iniciativa de projeto de lei que crie conselhos de fiscalização de profissões é privativa do Presidente da República, consoante determina o art. 61, §1º, II, ‘a’ e ‘e’, da Constituição Federal.
Essa iniciativa reservada encontra sua razão de ser na mencionada natureza de autarquia federal dos conselhos fiscalizadores, compondo entidades cuja personalidade jurídica é de direito público, como parte da administração pública indireta.
Sendo autarquias federais, incide na espécie o art. 61, §1º, II, ‘e’, da Carta Magna, que dá ao Presidente da República a iniciativa privativa dos projetos de lei destinados à criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública.
Da mesma forma, a criação de um conselho requer a criação simultânea de cargos a serem providos, com as respectivas remunerações, compondo a estrutura necessária ao desempenho das funções inerentes ao conselho. São cargos que vão desde o mais alto escalão até as funções meramente operacionais da entidade. Tais cargos somente podem ser criados por projeto de lei cuja iniciativa privativa é do Presidente da República, pois assim determina o art. 61, §1º, II, ‘a’, da Constituição Federal.
Nesse sentido, um projeto de lei apresentado por um parlamentar que tenha por objetivo criar conselho de fiscalização de profissões é inconstitucional, pois sua aprovação significaria indevida violação ao princípio constitucional da separação de poderes, exercendo competência privativa do Presidente da República, que não pode ser tolerada. Ainda que não houvesse a criação de cargos nos conselhos pelo projeto, a simples criação do conselho por projeto de lei de iniciativa parlamentar já é inconstitucional.
Mesmo a veiculação do projeto sob a forma autorizativa não o torna válido, pois o projeto autorizativo nada acrescenta ao ordenamento jurídico nessa matéria, mas apenas autorizaria o Poder Executivo a fazer aquilo que a Carta Magna já lhe reservou como competência privativa, o que o torna injurídico. O projeto autoriza a criação, quando já é da competência do Poder Executivo encaminhar projeto de lei ao Congresso Nacional propondo a criação dos aludidos conselhos.
A lei deve conter comando impositivo àquele a quem se dirige, o que não ocorre no caso do projeto autorizativo, no qual o eventual descumprimento da autorização concedida não acarretará qualquer sanção ao Poder Executivo, que é o destinatário final da norma jurídica. A autorização, não solicitada, em projeto de lei consiste em mera sugestão dirigida a outro Poder, incompatível com a característica de norma legal.
Veja-se um exemplo de conselho que se pretende autorizar a criação: se o Poder Executivo não quiser criá-lo, o que algum interessado poderá fazer? Nada, pois foi apenas uma autorização e não uma imposição!
Por outro lado, se quiser criá-lo, poderá o Poder Executivo valer-se da autorização já concedida, e expedir um decreto efetivamente criando o conselho? Certamente não, pois a iniciativa do projeto é viciada e nem a posterior sanção poderá convalidá-lo, conforme também já decidiu o Supremo Tribunal Federal. Restará ao Poder Executivo encaminhar novo projeto ao Congresso efetivamente propondo a criação, com o quantitativo adequado de cargos, fontes de financiamento e outros detalhes, o qual terá sua tramitação normal, passando por todo o processo legislativo, desde o seu início.
O projeto autorizativo somente gerou perda de tempo e de recursos públicos, nada mais.
Nesse sentido, recente projeto aprovado pelo Congresso Nacional, que criava os conselhos federal e regionais de arquitetura e urbanismo foi integralmente vetado pelo Presidente da República, em face da inconstitucionalidade mencionada.
IV – CONCLUSÃO
Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas têm natureza jurídica de direito público.
Dessa forma, sua criação deve dar-se por meio de lei federal, cuja iniciativa privativa compete ao Presidente da República, bem como a criação dos respectivos cargos e funções dos conselhos. São inconstitucionais, portanto, projetos de lei que visem criar tais conselhos, quando de autoria de membro do Congresso Nacional, por invasão de competência atribuída expressamente ao Chefe do Poder Executivo pela Constituição Federal.