caPÍTULO II - Dos limites de atuação do Agente Infiltrado
Conforme vimos, não obstante o instituto da infiltração ter sido previsto em vários diplomas em nosso ordenamento, nenhum deles regula de modo preciso a maneira como se processará a infiltração, bem como os meios de proteção da pessoa do AI.
Entretanto, a omissão legislativa, bem como os riscos da missão de infiltração, não devem inibir seu uso pelas autoridades responsáveis pelo combate ao crime organizado. Isto porque o mencionado meio investigativo proporciona ao investigador uma visão mais apurada do que se passa no seio de uma organização criminosa e como ela age na prática de crimes.
Além disso, devemos ver a previsão da figura do AI, ainda que bastante omissa, não mais como uma mera disponibilidade de mais um meio de investigação, pois com ela busca-se eliminar a antiga e "inútil" figura do agente provocador.
Deste modo, a única medida coerente a ser adotada quando da utilização de AI’s é a aplicação analógica, no que couber, da Lei 9.296/96 (Lei de Interceptação Telefônica), posto que esta Lei reflete a hodierna visão do princípio da proporcionalidade, que será visto em capítulo específico, relacionado à matéria que igualmente pode resultar em restrição ao direito à privacidade. [38]
2.1 Da legitimação para requerer a diligência de infiltração
Neste ponto, como em vários outros, também houve uma omissão por parte do legislador, posto que, como já afirmamos, não houve preocupação deste em regulamentar o processamento da missão em análise, deixando de detalhar quem seria a autoridade legítima para requerer tal diligência e o prazo de duração da operação.
Com o advento da Lei 11.343/05 (Nova lei de Drogas), esperava-se que tais omissões fossem superadas e o tema fosse tratado de forma mais minuciosa; entretanto, a referida lei conseguiu ser ainda mais omissa.
Portanto, mais uma vez somos obrigados a fazer analogia à Lei 9.296/96 (Lei de Escuta Telefônica) e assim, concluirmos que são legitimados a requerer a medida de infiltração a Autoridade Policial, na fase inquisitorial, e o Ministério Público, na fase inquisitorial e processual. Ressaltando que, sendo a representação feita pela Autoridade Policial, deve haver prévia manifestação do Ministério Público.
Na representação, o requerente deve levar em consideração os riscos e os benefícios da operação. Também deve haver uma análise da responsabilidade civil do Estado, bem como dos riscos do envolvimento do policial com criminosos. [39]
Em virtude ausência de regulação, o promotor de justiça de Minas Gerais, Denílson Pacheco, assegura que há a necessidade de um minucioso planejamento de infiltração contendo:
[...]
situações, objetivo da infiltração, bem como os recursos materiais, humanos e financeiros disponíveis, especificação das medidas de segurança a serem observadas, coordenação e controle precisamente definidos com pessoa de ligação, prazos a serem cumpridos, formas seguras de comunicação, restrições e etc [40]
O dito promotor ainda afirma que "o plano de infiltração também deve conter as espécies de condutas típico-penais que eventualmente o agente infiltrado poderá praticar, dependendo das circunstâncias concretas." [41] Em outras palavras, o plano é que irá determinar o que AI pode ou não fazer .
Ainda devemos ressaltar que, por ser uma medida cautelar, deve o pedido ser autuado em apartado, mantido em absoluto sigilo ao longo do tempo que perdurar a infiltração.
Por fim, analogicamente à concessão da interceptação das comunicações telefônicas, a infiltração só deve acontecer se a investigação e a coleta de provas não puderem ser feitas por outro meio. [42]
2.2.Da autorização judicial circunstanciada limitando a atuação do AI
A autorização judicial no presente meio de investigação criminal tem suma importância, posto que, não sendo o instituto devidamente regulamentado por nossos legisladores, é no plano de infiltração e na circunstanciada autorização que o AI vai nortear suas ações. Serão extremamente importantes os termos da autorização judicial, imprescindíveis à atuação do agente. Quando feita de modo minucioso, a autorização é que limitará a atuação do agente e, em certos casos, irá respaldá-lo quando tiverem de atuar em situações críticas, servindo até mesmo como fundamento para exclusão de ilicitude do ato por atuar em estrito cumprimento do dever legal. Nesse sentido, doutrina PACHECO:
O plano de infiltração, devidamente aprovado judicialmente, é a base documental que o agente infiltrado terá para a execução da infiltração e, inclusive, para sua proteção, por exemplo, para comprovação, conforme a teoria, da ausência de dolo ou de ilicitude, na eventualidade de ser submetido a uma investigação criminal ou processo penal pelas condutas praticadas durante e em razão da infiltração. [43]
Nos termos da Lei 9.034/95, alterada pela Lei 10.217/01, é imprescindível a prévia autorização judicial circunstanciada e sigilosa para atuação deste meio operacional de investigação.
A autorização judicial também é uma forma de controle da atividade policial, sem a qual haveria exorbitante discricionariedade em detrimento da própria execução de suas funções. [44]
Para Souza filho, o termo "circunstanciada" deve abranger
[...]
elementos norteadores da ação, seja com relação à identificação dos AI´s, seja com relação ao seu aspecto temporal de vigência, determinação de qual grupo criminoso se pretende investigar, assim como seu principal objetivo de incidência criminal (corrupção, crimes cibernéticos, tráfico de pessoas, etc.). [45]
Não são poucas as críticas que se insurgem sobre a questão do magistrado ter uma atuação tão direta com a produção de provas que poderão ser utilizadas numa futura ação penal. Dentre os opositores, há os que defendem que "melhor seria que o legislador tivesse optado por conferir ao Ministério Público a tarefa de autorizar este procedimento, vez que ele é parte no processo penal e titular privativo da ação penal publica." [46]
No caso da Espanha, a Ley Orgánica 5/1999 dispõe que, em casos de urgência, o Promotor de Justiça pode autorizar a polícia a intervir em uma organização criminosa. Em contrapartida, o Panamá, através da Nueva Ley de Drogas, lei n° 13/94, concede tal prerrogativa exclusivamente ao Ministério Público. [47]
Todavia, não compartilhamos desse entendimento, isto porque ao lidarmos com uma medida que restringe direitos fundamentais, para maior segurança e menor intervenção nestes, o mais razoável seria o posicionamento da única figura imparcial no processo, o Juiz. Este é o modelo adotado na Argentina: segundo a Lei 24.4247/1995, cabe exclusivamente ao Juiz deferir ou não tal medida. [48]
Não esqueçamos que o Ministério Público, como parte do processo, não é imparcial. Logo, não haveria sentido conferir a este a autoridade de deferir uma medida cautelar quando ele mesmo seria o interessado que esta fosse deferida. Ainda que o Ministério Público seja o dominus litis e a prova pertença ao processo, não podemos conferir à acusação a prerrogativa de decidir por uma medida que certamente seria mais útil a própria acusação. No mais, deverá haver sempre o posicionamento do Ministério Público no deferimento ou não da missão de infiltração, seja como próprio requerente ou como parecerista acerca da legalidade e oportunidade do instrumento de obtenção de provas.
Assim, como toda e qualquer medida cautelar, consideramos que deve ficar a cargo do Juiz, e não do Ministério Público, a decisão sobre o deferimento ou não.
Nas palavras de PEREIRA, "deverá o Juiz não participar das investigações, mas tão somente, em conjunto com o Ministério Público velar pelo cumprimento estrito do que foi determinado na autorização por ele concedida" [49]
O autor ainda retira da Ley de Enjuiciamiento Criminal da Espanha outro requisito referente à atuação do AI, qual seja:
[...]
quando as atuações de investigação possam afetar aos direitos fundamentais, o agente infiltrado deverá solicitar junto ao órgão judicial competente as autorizações que, a respeito, estabeleça a Constituição, e a lei, assim como cumprir as demais previsões legais aplicáveis. [50]
Na opinião do autor, tal preceito reflete principalmente no que diz respeito ao aproveitamento das provas obtidas pelo AI. Deste modo, evitar-se-ia que toda a missão de infiltração fosse perdida em razão da produção de prova ilícita ou ilegal por violar direitos fundamentais. [51]
Neste sentido, o juiz, quando autorizar a missão, naturalmente deverá fazer referência aos instrumentos de proteção cabíveis ao AI, tais como identidade e domicílio falsos, descrição dos meios a serem empregados e, sobretudo, dos direitos fundamentais que poderão ser violados, bem como a estipulação do prazo que deverá perdurar a missão. [52] Além disto, pode o juiz autorizar a apreensão de documentos, realização de filmagens, fotografias e escutas ambientais e telefônicas. [53]
Na visão de MENDRONI, "são meios de prova dos quais a polícia não pode prescindir e nada os impede, ao contrário, tudo favorece, que sejam realizados pelo agente mediante expressa e prévia autorização judicial." [54]
A autorização expressa para a coleta de material probatório por parte do AI também encontra respaldo no princípio da proporcionalidade, uma vez que não há razão para que o AI não recolha as provas que comprovam a situação delituosa investigada, desde que haja compatibilidade com a sua função investigativa, sob pena de colocar em risco a missão. [55]
Por estas razões, entendemos ser necessário que a autorização seja circunstanciada e minuciosa ao máximo, à medida que, apenas assim, é possível uma maior segurança não apenas na aplicação da lei, como também no processamento da infiltração e a atuação do próprio agente.
2.3.Da prova ilícita como consequência do excesso e/ou induzimento por parte do AI
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, inciso LVI, dispõe que "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meio ilícito."
Grande discussão surge no que concerne à prova obtida pelo agente infiltrado. Um dos maiores questionamentos sobre a licitude dessa forma de aquisição de prova talvez esteja na questão de o Estado garantir a norma e jurisdição e ao mesmo tempo se empenhar na produção de indícios de infração penal. [56]
Tal questionamento, por sua vez, pode ser explicado pela teoria da Tipicidade Conglobante do jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni. A mencionada teoria explica essencialmente que o Estado não pode considerar típica uma conduta que é fomentada ou tolerada por ele mesmo. Ou seja, o que é permitido por uma norma não pode ser proibido por outra – o sistema normativo deve ser considerado em sua globalidade. [57] Assim, se por questões de política criminal, voltada especialmente para repressão de crimes cometidos por organizações criminosas, houve a necessidade de o Estado buscar novos meios de obtenção de provas, como a infiltração de agentes, não pode o Estado concomitantemente punir essa conduta ou ignorar as provas colhidas por ela.
Por outro lado, a Constituição Federal brasileira de 1988, ao fundamentar a existência do Estado Democrático de Direito com respeito à dignidade da pessoa humana, não pode admitir provas ilícitas baseadas na necessidade de punir delitos, independentemente de sua potencialidade.
Desta forma, além dos princípios e garantias fundamentais, outro ponto norteador da conduta do AI será a circunstanciada autorização judicial, conforme expusemos em capítulo anterior. Será na autorização emanada pelo Juiz que o AI encontrará limites e a forma de processamento da diligência, uma vez que não há paradigmas legais pelos quais o agente possa pautar sua ação durante a infiltração.
Agindo de acordo com aquilo que judicialmente foi permitido, haverá plena possibilidade de utilização de todo o material probatório colhido no trâmite da infiltração.
Segundo PACHECO, o que realmente importa para legitimar a ação e determinar a licitude da prova colhida pelo AI é que ele não atue provocando ou instigando os sujeitos envolvidos na prática de crimes, pois restaria ineficaz a prova obtida desta maneira e todas aquelas que dela decorressem. [58]
A figura do agente provocador nos remete ao artigo 17 do Código Penal Brasileiro, que determina não se punir a tentativa quando por ineficácia do meio ou por absoluta impropriedade do objeto é impossível consumar-se o crime. O mencionado dispositivo embasou o Supremo Tribunal Federal na edição da súmula 145, segundo a qual não haverá crime quando a preparação do flagrante pela polícia impossibilite sua consumação. Consequentemente, na atuação do agente provocador não haverá nem mesmo a existência de crime, uma vez que não há o elemento subjetivo imprescindível à atuação do provocado, mas sim um induzimento à prática de crimes.
Outra grande dificuldade enfrentada por aqueles que estão diretamente envolvidos na missão de infiltração será a cautela para que a atuação do AI mantenha-se pautada na legalidade até o fim da missão. O AI não possui qualquer influência determinante na prática do crime, age basicamente na observância do cometimento destes. Portanto, não apenas ele, mas também o membro do Ministério Público e a autoridade policial devem procurar meios de evitar que, na prática, a infiltração legítima e legal, transforme-se em provocação, ilegal e inaceitável. [59] Se assim proceder, o AI deverá ter a sua conduta analisada à luz do tratamento jurídico que é dispensado ao delito provocado, "ficando prejudicada a sua isenção de responsabilidade penal", assevera PEREIRA. [60]
O fato é que a provocação por parte do policial resultará na certeza de que o provocado não responderá pela infração penal cometida em decorrência da instigação, uma vez que o policial fez nascer no indivíduo uma vontade antes inexistente, restando, deste modo, viciadas e nulas de pleno direito as provas obtidas e as delas decorrentes.
Logo, concluímos que a provocação não tem respaldo social no processo penal, motivo pelo qual deve ser repelida quando de sua ocorrência para a defesa do próprio Direito Penal e Processual Penal – pensar diferente seria negar anos de progresso desses ramos do Direito.