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Conceitos jurídicos fundamentais.

Designativos básicos da relação jurídica na doutrina de W. N. Hohfeld

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5. O PERÍMETRO DE DIREITOS E DEVERES E O PAR "PRIVILÉGIO-NÃO DIREITO": ANÁLISE DE UM EXEMPLO

Situação interessante na modelagem teórica da relação jurídica é a que visa à atribuição de direitos e deveres a sujeitos em conflito. Genaro Carrió traz à baila, a título de ilustração, um exemplo em que se aplicam normas não-jurídicas, mas que esclarece a problemática que a terminologia imprecisa configura quando da tentativa de modelagem de uma relação jurídica conflituosa.

A imagem sugerida é a de dois pugilistas em um combate de boxe. Se nos valermos exclusivamente das noções "direito-dever", certamente conseguiremos modelar grande parte das regras do boxe aplicáveis ao conflito (ambos os atletas terão "direito" a um árbitro justo, cada um terá "direito" a que o outro não saia do ringue enquanto não terminada a luta, "dever" de não desferir golpes baixos, "direito" a que o outro não pratique golpes baixos, etc.).

Problema há, contudo, na definição quanto à possibilidade de praticar um golpe válido. Como menciona o autor, não resta dúvida de que as regras do boxe não proíbem que A acerte B com um "impecável golpe de punho na mandíbula. Longe disso, o esforço de A nesse sentido parece corresponder ao espírito do esporte e A está autorizado expressamente a fazê-lo." [20].

Apesar disso, não se pode afirmar, corretamente, que A tem o "direito" de acertar seu oponente. No sentido estrito que essa expressão assume na obra de Hohfeld, "direito" diz respeito à exigibilidade de uma conduta por parte do outro. Paralelamente, não se pode afirmar que B tem o "dever" de permitir que A o acerte com golpes válidos. Em verdade, de acordo com as regras do esporte, B não apenas está autorizado a impedir que seu oponente o golpeie como é fortemente incentivado nesse sentido.

Sustenta o autor, assim, que a terminologia de direitos e deveres "fracassa totalmente" na tentativa de tratar a situação normativa recíproca dos sujeitos em conflito à luz das regras do boxe. Não concordamos com essa afirmação.

De acordo com Carrió, somente o par "privilégio-não direito" se prestaria a solucionar a questão dos boxeadores em conflito. Cada pugilista teria, frente ao outro, o "privilégio" de dar golpes corretos. No polo oposto da relação, o outro teria o "não-direito" a impedir que o oponente exerça seu privilégio, a saber, que pratique os golpes. Afirma o autor que "como não-direito não se confunde com dever, cada um dos pugilistas pode, legitimamente, realizar tudo o que estiver em seu alcance (sem violar nenhum dever genuíno) para impedir que seu rival exerça o privilégio de que goza." [21]

Tal afirmação está em franca contradição com a definição de Hohfeld para "não-direito". O termo no-right, cunhado pelo próprio autor, é o único das oito expressões que compõem o esquema de conceitos fundamentais do Direito que não era conhecido e utilizado previamente pelos juristas. Tem por base a teoria, vigtente à época, do damnum absque injuria, segundo a qual, em razão de determinados danos considerados não ilegais, não havia pretensão (havia no-right). Para Hohfeld,

"[...] o correlato de privilégio é a ausência de pretensão (no-right). Por exemplo, o correlato do direito de X que Y não adentre suas terras é o dever que Y tem de não adentrar as mesmas. No entanto, o conceito correlato do privilégio de X de adentrar em suas terras é a ausência de pretensão de Y que X não adentre suas próprias terras. Ou seja, enquanto X possuí o privilégio de adentrar em suas próprias terras, não há nada que Y possa fazer, nenhuma ação perante o Estado que possa impedir que X adentre suas próprias terras, daí o correlato de privilégio no esquema de Hohfeld ser a ausência de pretensão." [22] (Grifo nosso)

Como se vê, o "não-direito" encerra, asism, a impossibilidade de impedimento a que o polo oposto na relação jurídica exerça o objeto do privilégio de que é titular.

No caso dos boxeadores em conflito, modelar a faculdade que cada pugilista tem quanto a desferir golpes em seu adversário como um "privilégio", significa dizer que o outro, necessariamente, terá o "não-direito" de impedir o exercício do privilégio de dar golpes. Em sua essência, o "não-direito" representa, frente ao privilégio, verdadeiro dever de abstenção quanto à imposição de empecilhos ao exercício do privilégio. De fato, se a ordem normativa não considera que o sujeito tem direito a impedir a realização do objeto do privilégio, qualquer manifestação nesse sentido será ilegítima, podendo ser rechaçada pela via judicial. No estrito sentido hohfeldiano, "privilégio" encerra mais que um "direito": o direito diz respeito, apenas, à exigibilidade de uma conduta específica pelo polo oposto da relação; o privilégio, no entanto, torna possível a prática de um ato pelo próprio titular do privilégio e, cumulativamente, impõe ao outro polo a impossibilidade de fazer o titular do privilégio abster-se do exercício de seu conteúdo. O modelo colocado por Carrió para o caso específico, portanto, contém uma falha.

Na realidade, a situação hipotética de conflito levantada pelo autor pode muito bem ser modelada pela sistemática "direito-dever", no sentido de Hohfeld. A falha que vislumbro se deu na definição do objeto do direito (ou do dever). Em verdade, cada pugilista tem não o direito a desferir golpes em seu adversário, mas a tentar acertar os golpes legítmos. Correlato a esse "direito", há o "dever" do oponente quanto a não impedir que o outro tente. Embora não possa impedir que seu adversário realize tentativas de golpes contra sua pessoa, cada pugilista pode, perfeitamente, impedir que o oponente acerte os referidos golpes (de fato, não apenas pode como também é incentivado a fazê-lo). Entre tentativas e acertos, realiza-se a luta, cada pugilista no exercício de seus direitos e deveres.

O caso ilustra, assim, a par da verificada utilidade dos conceitos, a necessidade de cuidado e atenção quando da definição de critérios para aplicação.


CONCLUSÃO

Wesley Newcomb Hohfeld, jurista norte-americano do início do século XX, promoveu interessante trabalho no levantamento do que denominou os "conceitos jurídicos fundamentais conforme aplicados no raciocínio judicial". Os conceitos que definiu como "fundamentais" não dizem respeito a toda a Teoria do Direito, mas, tão-somente aos institutos verificados no modelo teórico tradicional de relação jurídica, entendida como a relação social entre indivíduos de interesse para o comando normativo jurídico.

Valendo-se do que denominei "proposta retificadora", Hohfeld decidiu não impor conceitos predeterminados a partir de uma análise meramente teórica da relação jurídica. Sua estratégia consistiu em observar detidamente os usos já consagrados na prática cotidiana dos juristas para, somente então, promover o isolamento dos conceitos que efetivamente marcavam distinções válidas, redefinindo cada um deles de modo a que apresentassem um sentido preciso e único.

Hohfeld agrupou seus conceitos fundamentais em duas "tabelas", a saber, uma demonstrando os "termos correlatos", que contém, a par de cada situação jurídica observável, a que se verifica no polo contrário da relação jurídica correspondente e outra apresentando os "termos opostos", tendo como conteúdo os mesmos conceitos já definidos como fundamentais, dispostos, porém, de sorte a apresentar, ao lado de cada situação jurídica verificável em um indivíduo, o conceito a ela incompatível, na pessoa do mesmo sujeito da relação jurídica.

Os conceitos fundamentais de Hohfeld podem ser assim definidos:

1. Direito – em sentido estrito, é a faculdade de exigir uma prestação, uma conduta por parte do sujeito passivo (um fazer, não-fazer, dar ou restituir por parte do outro polo da relação jurídica).

2. Privilégio – é a faculdade de praticar um ato ou de inserir-se em uma situação jurídica. Diz respeito a uma conduta por parte do polo ativo, o titular do privilégio, cujos efeitos recaem sobre o próprio sujeito ativo.

3. Poder – é a facudade de produzir determinados efeitos jurídicos em relação ao polo passivo. Por meio do poder, o titular do direito promove efeitos sobre outro sujeito, inserindo-o em uma situação jurídica, ainda que contra sua vontade.

4. Imunidade – é o atributo jurídico que permite ao seu titular não ser afetado pelos efeitos jurídicos do ato de determinado sujeito. O polo ativo tem imunidade em relação ao polo passivo se os atos deste não forem aptos a produzir efeitos sobre aquele. Ter poder sobre outro não significa estar imune em relação ao outro.

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5. Dever – em sentido estrito, é a situação jurídica de quem está obrigado a uma prestação em relação a outrem. O polo passivo (devedor) é obrigado a realizar uma prestação ao polo ativo (titular do direito em sentido estrito). O dever é correlato do direito e oposto ao privilégio.

6. Não-direito – é a situação que se contrapõe como correlata ao privilégio. O titular do privilégio tem a faculdade de praticar um ato; o polo passivo dessa relação não tem direito (tem o não-direito) de impedir que o polo ativo realize a conduta objeto do privilégio. É situação oposta ao direito (pretensão).

7. Sujeição – é a condição de quem será necessariamente submetido aos efeitos jurídicos do ato praticado pelo titular de um poder. O poder encerra uma espécie de privilégio, pois o sujeito passivo não pode impedir que o titular exerça o ato (quem está em sujeição tem, também, o "não-direito" de impedir que o ato seja realizado); é, porém, mais que isso: além de o sujeito passivo não poder impedir a realização do ato por parte do polo ativo, estará, obrigatiriamente, sbmetido aos efeitos do ato, inserindo-se na situação jurídica dele decorrente, mesmo contra sua vontade. A sujeição é, portanto, situação correlata ao poder e oposta à imunidade.

8. Incompetência – é a ausência de qualificação jurídica para a prática de um ato em relação a determinado sujeito, considerado dotado de imunidade em relação ao agente. O praticante do ato é o polo passivo da relação, pois, seus efeitos não atingem o destinatário, vez que o agente não é reconhecido pela ordem jurídica como titular de um poder sobre o destinatário. A imunidade é oposta à sujeição, porque "competência é poder". Ser incompetente em relação a outro não significa estar sujeito a esse outro.

Em que pese tenha sofrido críticas quanto a sua pretensão totalizante, a saber, a afirmativa de que todo e qualquer conceito utilizado no âmbito da noção de relação jurídica pode ser reduzido a um dos oito por ele definidos, Hohfeld forrneceu preciosa contribuição à Teoria do Direito, porquanto possibilitou a definição precisa de vocábulos por vezes ambíguos e quase sempre obscuros em seu conteúdo. Ademais, frente a uma teoria que pretendia reduzir tudo a apenas duas noções ("direito" e "dever"), seu trabalho representou acréscimo inimaginável. De fato, enquanto parte da doutrina o critica por pretender reduzir a totalidade de definições a oito conceitos, outra parte o criticou por considerar oito um número elevado, considerando ainda menor o número dos conceitos que exprimem verdadeiro significado.

Se a proposta de Hohfeld, na "pretensão máxima" de seus conceitos jurídicos fundamentais apresenta noções de mais ou de menos, não se arvora este estudo a opinar. Cabe afirmar, porém, que, muito embora não sejam utilizados na exata expressão terminológica por ele proposta, os conceitos fundamentais de Hohfeld representam noções massivamente utilizadas pelos juristas – muitos dos quais apenas tacitamente corroboram com o trabalho do autor.


BIBLIOGRAFIA

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FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

FERREIRA, Daniel Brantes. Wesley Newcomb Hohfeld e os conceitos fundamentais do Direito. Direito, Estado e Sociedade. Rio de Janeiro, n.31 p. 33 a 57, jul/dez 2007.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

POLETTI, Ronaldo. Introdução ao direito. Apud VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito: primeiras linhas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

TELLES, Inocêncio Galvão. Introdução ao estudo do direito. Apud VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito: primeiras linhas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006.


Notas

  1. CARRIÓ, Genaro R. Nota preliminar. In: HOHFELD, W. N. Conceptos jurídicos fundamentales. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1968, p. 08.
  2. Idem, p. 09.
  3. FERREIRA, Daniel Brantes. Wesley Newcomb Hohfeld e os conceitos fundamentais do Direito. Direito, Estado e Sociedade. Rio de Janeiro, n.31 p. 33 a 57, jul/dez 2007.
  4. Idem, p. 11.
  5. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 241-545.
  6. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 135.
  7. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 216.
  8. POLETTI, Ronaldo. Introdução ao direito. Apud VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito: primeiras linhas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 243.
  9. TELLES, Inocêncio Galvão. Introdução ao estudo do direito. Apud VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito: primeiras linhas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 244.
  10. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 116.
  11. Idem, p. 117.
  12. CARRIÓ, Genaro R. Op. cit.,1968, p. 10.
  13. Idem, p. 11.
  14. FERREIRA, Daniel Brantes. Op. cit., 2007, p. 33-57.
  15. CARRIÓ, Genaro R. Op. cit., 1968, p. 10.
  16. Idem, p. 10.
  17. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro – Vol. 2 – Teoria Geral das Obrigações. 23. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 69-107.
  18. AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 179.
  19. FERREIRA, Daniel Brantes. Op. cit., 2007, p. 41-42.
  20. CARRIÓ, Genaro R. Op. cit., 1968, p. 16.
  21. Idem, p. 17.
  22. FERREIRA, Daniel Brantes. Op. cit., 2007, p. 42.
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Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Conceitos jurídicos fundamentais.: Designativos básicos da relação jurídica na doutrina de W. N. Hohfeld. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2530, 5 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14988. Acesso em: 18 abr. 2024.

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