Sumário: 1. Introdução. 2. Escopo prático do estudo: conceitos jurídicos fundamentais para a modelagem teórica da relação jurídica. 3. Propostas de solução ante a problemática da imprecisão terminológica no direito. 4. Os conceitos jurídicos fundamentais. 4.1. Tabela de correlatos. 4.2. Tabela de opostos. 5. O perímetro de direitos e deveres e o par "privilégio-não direito": análise de um exemplo. Conclusão. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
A multiplicidade das relações intersubjetivas de interesse para o direito faz profuso o aparato terminológico utilizado no tratamento das situações modeladas pelo ordenamento jurídico. Aos modais dônticos de mais alto nível, a saber, "obrigatório", "proibido" e "permitido", contrapõem-se expressões técnicas e termos próprios de que se valem os juristas ante as diferentes situações específicas de cada ramo da Dogmática Jurídica.
Sem embargo desse fato, é possível isolar determinados conceitos que se mostram como fundamento para uma variedade de expressões presentes na análise de cada um dos específicos subconjuntos normativos objetos de estudo dos ditos "ramos autônomos" do Direito. Trata-se de um pequeno número de noções básicas, dotadas de menor generalidade que os conceitos mais abstratos da Lógica Deôntica e de maior generalidade que os termos corriqueiros utilizados para designar as relações específicas de cada ramo do Direito. Denominadas por Genaro R. Carrió de "expressões B", por se situarem no nível intermediário entre as de maior e menor generalidade, tais expressões servem para distinguir e identificar situações de tipo geral que, por vezes, transcendem os limites de uma área específica da investigação jurídica.
Pelo menos dois problemas se verificam com relação às chamadas "expressões B":
1.Nem sempre os autores de Teoria Geral do Direito, no tratamento dos conceitos básicos, ocupam-se de elucidar noções que são de uso freqüente entre os juristas dogmáticos. [01] Alguns dos conceitos são simplesmente criados pelos teóricos, ou seja, introduzidos e definidos com a finalidade de apresentar os fenômenos do direito, na perspectiva considerada mais esclarecedora ou mais rica em conseqüências teóricas. Tal medida tem por consequência a aceitação tácita de pressupostos por parte dos juristas, o que favorece o caos terminológico, vez que, dissociados da prática, os conceitos por vezes são mal empregados ou simplesmente caem em desuso.
2.Nem sempre os juristas que trabalham nas disciplinas dogmáticas se limitam a usar as expressões de nível intermediário [02]. Ocupando-se delas, com o propósito de defini-las e descrever suas relações recíprocas, acabam por avançar no campo da Teoria Geral do Direito e produzir definições imprecisas, dado que voltadas a um ramo específico de atuação, desprovendo o conceito recém-criado do escopo geral que necessariamente deve ostentar.
Tendo em vista essas questões, Wesley Newcomb Hohfeld, jurista norte-americano do início do século XX, preocupou-se em definir o que chamou de "conceitos jurídicos fundamentais", precisamente as "expressões B" no dizer de Carrió.
Graduado com honras no curso de Direito de Harvard, Hohfeld, que também era bacharel em Artes pela Universidade da Califórnia, foi Professor da Universidade de Stamford e da Yale Law School. Em 1913, o Professor W. N. Hohfeld publicou seu principal artigo Fundamental Legal Conceptions as Applied to Judicial Reasoning [03]. A proposta era conferir um significado preciso e único a expressões utilizadas no cotidiano jurisprudencial. Dessa forma, Hohfeld evitaria os engodos do puro teorismo e conferiria um status menos vacilante a noções já utilizadas na prática pela comunidade jurídica. Quem quer que desejasse se valer do resultado das definições precisaria, tão-somente, reorganizar o uso indiscriminado dos termos, não sendo necessário incorporar expressões estranhas ao vocabulário cotidiano.
Hohfeld isola, assim, as expressões que, segundo ele, definem as bases de qualquer relação jurídica. De fato, em uma pretensão que se pode considerar ambiciosa, o autor distingue oito "conceitos jurídicos fundamentais", quatro deles pertencentes à família de "direito" e quatro relativos à noção de "dever", aos quais seria possível reduzir toda situação ou relação jurídica. Assim sendo, todos os conceitos jurídicos seriam redutíveis aos oito singulares e precisos colocados por Hohfeld.
Despiciendo informar que o autor sofreu severas críticas no que tange a sua pretensão totalizante. Apesar disso, na chamada "pretensão moderada" [04] de seu trabalho, Hohfeld prestou excelente contribuição à Teoria Geral do Direito. Por resgatar os usos dos juristas que efetivamente marcavam distinções úteis, redefinindo conceitos utilizados na prática, de sorte a conferir um mínimo teórico usual firmado sobre bases lógicas, delimitando com clareza noções imprecisas e vigentes, o ensaio de Hohfeld foi bastante elogiado.
É essa "pretensão moderada" do autor que constitui o objeto desta análise: a tentativa de estabelecer uma delimitação clara do alcance de conceitos de uso geral na investigação dogmática do Direito.
2. ESCOPO PRÁTICO DO ESTUDO: CONCEITOS JURÍDICOS FUNDAMENTAIS PARA A MODELAGEM TEÓRICA DA RELAÇÃO JURÍDICA
O que Hohfeld denominou "conceitos jurídicos fundamentais" está longe de representar um catálogo completo de Teoria Geral do Direito. De fato, sob a rubrica de "Conceitos jurídicos fundamentais" Maria Helena Diniz define as noções de "direito positivo", "fontes do direito", "norma jurídica", "aplicação do direito", "fato jurídico" e "relação jurídica" [05]. Diferentemente nessa abordagem, o propósito de Hohfeld se limita, na realidade, a delimitar os conceitos utilizados no âmbito de uma noção específica de relação juridica. Não se trata de contribuição pequena, contudo.
Tradicionalmente, a doutrina chegou a ver na identificação das relações jurídicas o grande objetivo da ciência do direito. Assim, por exemplo, no século XIX, com Savigny [06]. Com efeito, se a função social do direito é a decidibilidade dos conflitos, a identificação das relações que estão em seu núcleo é de fundamental importância. O aparato teórico para o alcance desse fim, obviamente, passa pela definição dos conceitos que permeiam a noção de relação jurídica. É essa a maior contribuição de nosso autor.
Segundo Miguel Reale, relação jurídica é uma espécie de relação social. Dentre as possíveis interações intersubjetivas, algumas interessam ao direito. Quando o fato social concreto coincide com a prescrição normativa, a norma jurídica incide sobre a relação. No fenômeno denominado "jurisdicização", a relação social passa a ser considerada relação jurídica.
"Dois requisitos são, portanto, necessários para que haja uma relação jurídica. Em primeiro lugar, uma relação intersubjetiva, ou seja, um vínculo entre duas ou mais pessoas. Em segundo lugar, que esse vínculo corresponda a uma hipótese normativa, de tal maneira que derivem consequências obrigatórias no plano da experiência. O trabalho no jurista ou do juiz consiste propriamente em qualificar juridicamente as relações sociais de conformidade com o modelo normativo que lhes é próprio." [07] (Grifo nosso)
Com efeito, as "relações jurídicas são relações sociais a que o ordenamento jurídico dá importância tal que as qualifica de modo a protegê-las e prever-lhes as consequências." [08]
A noção apontada por Inocêncio Galvão Teles ilustra bem a utilização indiscriminada de expressões de alcance geral na Dogmática Jurídica. Segundo o autor,
"a relação jurídica é uma noção abstrata, uma forma de pensamento científico-jurídico. [...] é a relação social tutelada pelo Direito mediante a atribuição de um poder a um dos sujeitos e a correspondente imposição de um dever ao outro." [09] (Grifo nosso)
Conforme se discorrerá mais adiante, dois dos conceitos jurídicos fundamentais de Hohfeld são "poder" e "dever". O autor atribui aos termos um sentido específco, unívoco, em concepção diversa da verificada na definição acima. De fato, a considerar o conceito proposto de relação jurídica, persiste o interlocutor com idéia vaga. A definição não se presta a abarcar todas as situações identificadas tradicionalmente como pertencentes ao conceito. Vale, contudo, pela tentativa de exprimir o conceito como a relação social tutelada pelo direito.
Para Kelsen, diferentemente, relação jurídica é uma relação entre normas. Partindo do pressuposto de que a sociedade não é um conjunto de seres humanos concretos, mas um sistema estruturado de ações significativamente relacionadas, a relação jurídica não se mostra como relação entre indivíduos, mas relação entre os papéis sociais a eles correspondentes.
"Do ponto de vista de um conhecimento dirigido ao Direito, isto é, dirigido às normas jurídicas, não são tomadas em linha de conta as relações entre indivíduos, mas apenas relações entre normas - pelos indivíduos criadas e aplicadas - ou entre os fatos determinados pelas normas, dos quais a conduta humana apenas representa um caso especial, se bem que particularmente significativo. Com efeito, não são os indivíduos mas as suas ações e omissões, não são as pessoas mas determinada conduta humana - e não apenas esta mas também outros fatos (estes, porém, apenas em conexão com a conduta humana) - que formam o conteúdo das normas jurídicas. Esta idéia tem expressão, até certo ponto, na definição da relação jurídica - não como relação entre o sujeito do dever e o sujeito do direito, mas como relação entre um dever jurídico e o direito reflexo que lhe corresponde." [10] (Grifo nosso)
A despeito de uma concepção normativa para a relação jurídica, Kelsen não nega a base social, material da norma jurídica, a saber, a conduta humana. Assim, a concepção do autor, da relação jurídica como relação entre normas e não entre indivíduos, acaba por abranger a noção básica de dois ou mais polos aos quais se contrapõem as situações jurídicas ativa e passiva.
Avança, contudo, para além disso. Segundo Kelsen, a par das relações jurídicas que contrapõem direitos a deveres, há as relações entre sujeitos de deveres, estabelecidas por "normas de competência", para usar a alcunha de Alf Ross, ou entre titulares de direitos em ambos os polos da relação. Para esses casos, a definição tradicional de relação juídica como estabelecida entre sujeitos se torna insuficiente. No dizer de Kelsen,
"a ordem jurídica institui relações, não apenas entre sujeitos jurídicos (no sentido tradicional da palavra), isto é, entre o indivíduo que é obrigado a uma determinada conduta e o indivíduo em face do qual aquele é obrigado a tal conduta, mas também entre o indivíduo que tem competência para a criação de uma norma e o indivíduo que tem competência para a aplicação dessa norma, bem como entre um indivíduo que tem competência para a criação ou aplicação de uma norma e o indivíduo a quem essa norma impõe um dever ou confere um direito. [...] São, porém, em primeira linha, relações entre sujeitos de deveres: os sujeitos do dever de criar ou produzir normas jurídicas e os sujeitos dos deveres por essas normas estabelecidos, e só em segunda linha relações entre os sujeitos do dever de criar ou aplicar normas jurídicas e os sujeitos dos direitos (Berechtigungen) estabelecidos por essas normas. E estes direitos não são reflexos daqueles deveres, isto é, dos deveres dos órgãos de criar ou aplicar normas jurídicas, mas reflexos dos deveres que são estatuídos por essas normas." [11] (Grifo nosso)
Conceber a relação jurídica como relação entre normas resolve a questão levantada por Kelsen. As normas de estrutura, que definem a competência para criar ou aplicar o direito, dividindo a sociedade entre os que criam e aplicam o direito e aqueles a quem as normas jurídicas são dirigidas, estabelecem, de fato, relações juíridicas entre os referidos sujeitos. Ocorre que tais relações não contrapõem um direito a uma obrigação: os competentes para a criação do direito têm um dever (dever de cumprir com suas competências funcionais), ao passo que os a quem o direito se dirige também têm dever, a saber, o dever de abstenção da violação da competência, o dever de respeito à ordem criada por quem é competente. A noção de relação jurídica intersubjetiva não modela tal situação. Tomar a relação jurídica como simples relação entre normas, porém, abrange não apenas os casos contemplados pela definição tradicional, como tamém os a que ela não se presta.
Os conceitos fundamentais de Hohfeld, valiosos para a identificação e aplicação do direito à luz da noção de relação jurídica, têm por base a concepção tradicional, não-kelseniana, a saber, da relação juridica como o reconhecimento normativo de uma relação social entre indivíduos. Enxergar o fenômeno jurídico sob a ótica do conceito tradicional de relação jurídica, porém, não constitui fracasso metodológico. A massiva doutrina persiste no uso dessa concepção, que se vale a modelar a quase totalidade das relações jurídicas de interesse. Ademais, quando determinada situação jurídica não é enxergada, na visão tradicional, como "relação", isso não significa que não seja compreendida como "jurídica", devendo submeter-se aos efeitos da norma aplicável.
De fato, a abordagem de Hohfeld é usual e prática, a despeito da moderna variação no conceito de relação jurídica, que rechaça aplicação de suas definições. Conforme se demonstrará na sequência, a precisão terminológica à luz do conceito tradicional de relação jurídica ainda se presta – e muito – a possibilitar a boa compreensão e aplicação do direito.
3. PROPOSTAS DE SOLUÇÃO ANTE A PROBLEMÁTICA DA IMPRECISÃO TERMINOLÓGICA NO DIREITO
Antes de discorrer sobre a tese colocada por Hohfeld para a definição dos conceitos jurídicos fundamentais na ótica da relação jurídica, cabe mencionar que, de um modo geral, a Teoria do Direito tem-se posicionado de duas formas ante a necessidade de maior precisão conceitual:
1.Proposta reducionista: consiste em reduzir todos os conceitos utilizados no âmbito da noção de relação juridica aos conceitos redefinidos e precisos de "direito subjetivo" e "dever jurídico" [12]. Segundo essa teoria, todos os termos empregados no nível intermediário de generalidade, associados ao conceito de relação jurídica, podem ser reduzidos às noções básicas e fundamentais de "direito" (subjetivo) e "dever" (jurídico). Tais conceitos seriam redefinidos a uma única acepção "oficial", de modo a se mostrarem independentes um do outro. Todas as demais expressões assemelhadas ou teriam um significado redutível aos homologados ou careceriam de conteúdo significativo adequado a um sistema jurídico de base científica. É a tese da Teoria Pura do Direito. Aceitá-la é afastar-se conscientemente dos usos correntes entre os juristas, em nome da chamada "pureza metódica". O aparato conceitual deve ser "econômico", construído a partir de um grupo muito pequeno de noções básicas, selecionadas em função do ideal científico do positivismo jurídico.
2.Proposta retificadora: consiste em selecionar, aprimorar e retificar os conceitos jurídicos utilizados na prática pelos operadores do direito. Sustenta ser mais vantajoso para as finalidades práticas de uma elaboração precisa de conceitos, manter-se relativamente próximo dos usos vigentes, para reconstruir os distintos conceitos jurídicos fundamentais encobertos pela profusa terminologia em voga [13]. Não se trata de introduzir definições puramente estipulativas, mas de recorrer, com a necessária precisão, ao núcleo do significado central das expressões vigentes. Esta solução procura tomar a linguagem dos juristas como ponto de partida e, sem pressupostos rígidos, resgatar aqueles termos que efetivamente marcam distinções úteis, ainda que muitas vezes a expressão usada oculte a distinção por ser empregada de forma ambígua – um mesmo termo, por vezes, descrevendo situações distintas – ou pertença, na realidade, a uma dispensável bateria de sinônimos perfeitos – fruto da crença errônea de que as distintas palavras identificam ou distinguem situações também distintas.
Esta última opção representa a estratégia traçada por Hohfeld para a definição de seus "conceitos jurídicos fundamentais". Tendo em vista uma finalidade eminentemente prática, o jurista de Harvard procurou construir uma teoria pautada nos usos vigentes na jurisprudência de sua época. Tampouco concordou com a capacidade de os conceitos de "direito" (subjetivo) e "dever" (jurídico) abarcarem todas as situações jurídicas em torno da noção de relação intersubjetiva.
"Hohfeld analisou durante anos decisões dos tribunais americanos para coletar dados empíricos para a elaboração de sua teoria. Além disso, também se baseou na doutrina da época e em grande parte do seu artigo critica o mau uso da terminologia jurídica por diversos autores. Portanto, o autor tinha como grande preocupação a prática do Direito e desejava com sua teoria influenciar fortemente a mesma em prol de uma maior segurança interpretativa. Além disso, apenas para justificar a importância de seu estudo na atualidade, não podemos deixar de ressaltar importantes autores que estudaram os conceitos fundamentais de Hohfeld, tais como Robert Alexy, Giuseppe Lumia e Genaro Carrió." [14]
Sem dúvida, a proposta adotada por Hohfeld aproxima a teoria de seu uso prático. O modelo que propõe, em que pese a espantosa simplicidade, mostra-se útil no tratamento de importantes questões de direito positivo.
4. OS CONCEITOS JURÍDICOS FUNDAMENTAIS
Considerando o escopo dos conceitos fundamentais, a saber, a noção tradicional de relação jurídica, Hohfeld centraliza sua atenção no par de opostos "direito (subjetivo)" e "dever (jurídico)".
Na linguagem cotidiana dos juristas, cada um desses termos parece presidir, por assim dizer, uma família de expressões ou palavras aparentadas entre si. As relações internas de cada família estão longe de serem precisas. Não se sabe se alguns de seus membros são reciprocamente substituíveis, e se não são, por que não são. Vige verdadeiro caos terminológico, que sugere a existência de verdadeiro caos conceitual. [15]
À primeira família, presidida pela palavra "direito" (no impreciso sentido sugerido), correspondem expressões como "imunidade", "liberdade", "privilégio", "prerrogativa", "faculdade", "isenção", "autoridade", "poder", "pretensão legítima", "interesse legítimo", "atribuição", "garantia", "competência", "autorização", "permissão", "licença", "concessão", "título", "opção", "limitação de responsabilidade", "prioridade", "preferência", "jurisdição" "independência", "autarquia", "autonomia", etc.
À segunda família, chefiada pela palavra "dever" (no impreciso sentido sugerido), correspondem expressões como "obrigação", "responsabilidade", "incapacidade", "incompetência", "proibição", "limitação", "caducidade", "condição", "prestação", "serviço", "impedimento", "incompatibilidade", "ausência de direito", "restrição", etc [16].
Sobre essa base, Hohfeld distingue oito conceitos jurídicos fundamentais, que reúne em duas tabelas, uma de correlatos e outra de opostos. Ambas possuem os mesmos conteúdos, agrupadas, contudo, com critérios distintos. Os conceitos de Hohfeld, bem como as relações que estabelecem entre si podem ser dispostos conforme segue.
4.1. Tabela de correlatos
A tabela de correlatos apresenta os conceitos jurídicos fundamentais conforme dispostos na relação jurídica itersubjetiva do modelo tradicional. A cada conceito relativo à noção de "direito" (subjetivo) contrapõe-se um conceito associado à noção de "dever" (jurídico). Em palavras de Carrió, "à modalidade ativa direito se corresponde, como seu complemento, na pessoa do outro sujeito, a modalidade passiva dever."
Significa dizer: a tabela de correlatos apresenta os oito conceitos jurídicos fundamentais, quatro relativos ao polo ativo da relação jurídica e quatro relativos ao polo passivo. A cada conceito do polo ativo se contrapõe o conceito correspondente verificável no polo passivo quando presente no polo ativo a situação jurídica descrita no conceito correspondente. Se um sujeito ostenta frente ao outro direito com relação a um objeto X, o outro terá para com o primeiro dever em relação ao mesmo objeto.
A tabela é como segue:
TABELA DE CORRELATOS |
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1. Direito – em sentido estrito, é a faculdade de exigir uma prestação, uma conduta por parte do sujeito passivo (um fazer, não-fazer, dar ou restituir por parte do outro polo da relação jurídica). |
1. Dever – em sentido estrito, é a situação jurídica de quem está obrigado a uma prestação em relação a outrem. O polo passivo (devedor) é obrigado a realizar uma prestação ao polo ativo (titular do direito em sentido estrito).
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2. Privilégio – é a faculdade de praticar um ato ou de inserir-se em uma situação jurídica. Diz respeito a uma conduta por parte do polo ativo, o titular do privilégio, cujos efeitos recaem sobre o próprio sujeito ativo. |
2. Não-direito – é a situação que se contrapõe ao privilégio. O titular do privilégio tem a faculdade de praticar um ato; o polo passivo dessa relação não tem direito (tem o não-direito) de impedir que o polo ativo realize a conduta objeto do privilégio.
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3. Poder – é a facudade de produzir determinados efeitos jurídicos em relação ao polo passivo. Por meio do poder, o titular do direito promove efeitos sobre outro sujeito, inserindo-o em uma situação jurídica, ainda que contra sua vontade. |
3. Sujeição – é a condição de quem será necessariamente submetido aos efeitos jurídicos do ato praticado pelo titular de um poder. O poder encerra uma espécie de privilégio, pois o sujeito passivo não pode impedir que o titular exerça o ato (quem está em sujeição tem, também, o "não-direito" de impedir que o ato seja realizado); é, porém, mais que isso: além de o sujeito passivo não poder impedir a realização do ato por parte do polo ativo, estará, obrigatiriamente, sbmetido aos efeitos do ato, inserindo-se na situação jurídica dele decorrente, mesmo contra sua vontade. |
4. Imunidade – é o atributo jurídico que permite ao seu titular não ser afetado pelos efeitos jurídicos do ato de determinado sujeito. O polo ativo tem imunidade em relação ao polo passivo se os atos deste não forem aptos a produzir efeitos sobre aquele. Ter poder sobre outro não significa estar imune em relação ao outro. |
4. Incompetência – é a ausência de qualificação jurídica para a prática de um ato em relação a determinado sujeito, considerado dotado de imunidade em relação ao agente. O praticante do ato é o polo passivo da relação, pois, seus efeitos não atingem o destinatário, vez que o agente não é reconhecido pela ordem jurídica como titular de um poder sobre o destinatário. A imunidade é oposta à sujeição, porque competência é poder. Ser incompetente em relação a outro não significa estar sujeito a esse outro. |
A primeira observação a ser realizada quanto à definição proposta por Hohfeld é a acepção estrita que concedeu às expressões "direito" e "dever". Diferentemente da abordagem reducionista, que pretendia conceber as ditas expressões de modo genérico, de sorte a serem capazes de encerrar todos os demais conceitos possíveis no âmbito da relação jurídica, a definição aqui trazida toma "direito" como o termo específico designativo da situação de quem é titular de uma pretensão legítima a uma prestação. Quem carrega um "dever", por sua vez, está juridicamente obrigado a realizar a prestação objeto do "direito" do polo ativo da relação. Prestação é o ato humano objeto de uma obrigação. O objeto da prestação (o ato humano) será sempre um dentre quatro hipóteses: fazer, não-fazer, dar ou restituir [17].
Em sentido amplo, direito é toda situação ativa em uma relação jurídica, toda posição jurídica de vantagem. Nessa acepção, "privilégio", "poder" e "imunidade" são "direitos". Em sentido estrito, porém, "direito" é apenas a faculade de exigir uma prestação e "privilégio", "poder" e "imunidade" são posições jurídicas ativas assemelhadas a "direito", mas distintas de seu conceito.
Uma segunda questão a pontuar é a distinção entre "privilégio" e "poder", no polo ativo da relação jurídica. No sentido proposto pelo autor, o "privilégio" consiste na faculdade de praticar um ato cujos efeitos recaem sobre o próprio titular do privilégio. No polo passivo, contrapõe-se a situação jurídica de "não-direito", a saber, o vazio quanto a uma norma que autorizasse impedir o sujeito ativo de praticar o ato objeto do privilégio. A título de exemplo, com relação ao instituto jurídico da "propriedade", tecnicamente, dever-se-ia falar não em "direito de propriedade", mas em "privilégio de propriedade". O termo "direito" estaria reservado à exigibilidade de uma conduta por parte do outro. A propriedade, que encerra a possibilidade de uso, gozo e disposição de uma coisa (res) confere a seu titular o "privilégio" de uso, pois diz respeito a uma facultas agendi em relação ao próprio polo ativo. Os efeitos do ato "uso" recaem sobre o próprio titular do privilégio. Em contrapartida, o "poder" diz respeito à possibilidade de emanar um ato cujos efeitos recaem sobre o outro sujeito da relação. Para além do simples "não-direito" de impedir a prática do ato, o "poder" faz com que o indivíduo se submeta, necessariamente, aos efeitos do ato praticado pelo sujeito ativo. Os direitos (sentido tradicional, "privilégios", no sentido de Hohfeld) que encerram um "poder" são denominados na doutrina "direitos potestativos". Do latim potestas, poder.
"O direito potestativo não exige um determinado comportamento de outrem nem é suscetível de violação. É, assim, figura inconfundível com a de direito subjetivo e, para alguns, até com a de relação jurídica, à qual se considera externo e antecedente. A outra parte não é sujeita ao poder do titular, mas à alteração produzida. Mas, como ele, o direito potestativo é expressão de autonomia privada. O direito potestativo distingue-se do direito subjetivo. A este contrapõe-se um dever, o que não ocorre com aquele, espécie de poder jurídico a que não corresponde um dever, mas uma sujeição, entendendo-se, como tal, a necessidade de suportar os efeitos do exercício do direito potestativo. Como não lhe corresponde um dever, não é suscetível de violação e, por isso, não gera pretensões." [18]
Exemplo de direito potestativo (ou simplesmente "poder", para usar o conceito estrito de Hohfeld) é o que tem o empregador com relação à demissão sem justa causa do empregado a ele vinculado. O empregador tem o "poder" de demitir o empregado sem justa causa (caso em que absorve o "dever" de pagar a indenização trabalhista, que é "direito" do trabalhador). O empregado, além de não ter autorização jurídica para impedir a prática do ato, fica sujeito aos efeitos dele decorrentes, a saber, a extinção da relação de trabalho. O "poder" do empregador consiste exatamente nisso, em que os efeitos jurídicos do ato "demissão" recaiam sobre o destinatário "empregado", ainda que contra sua vontade.
Interessante notar que é nesse exato sentido que o termo "poder" é utilizado, por exemplo, na definição legal do contrato de mandato. A procuração, instrumento do mandato, nos termos do art. 653 do Código Civil, materializa o contrato mediante o qual uma parte "confere poderes" a outra para a prática de atos em seu nome. No limite dos "poderes" constantes do instrumento, os efeitos dos atos do mandatário recaem sobre o mandante. Assim, se o procurador vende determinado bem da propriedade de quem outorgou procuração e tal "poder" se encontrava previsto no instrumento, para todos os efeitos jurídicos, a venda terá sido realizada pelo titular do direito de propriedade. O "poder" conferido ao mandatário faz com que os efeitos do ato "venda" recaiam sobre o mandante, considerado, sob essa ótica, polo passivo da relação. Se o mandante conferiu ao mandatário poderes de alienação sem estabelecer restrições de valor, não há que quesionar, após realizado o negócio, a validade do contrato de compra e venda apenas por considerar ter sido possível a obtenção de melhor preço. O "poder" que conferiu ao mandantário faz com que esteja "sujeito" aos efeitos do ato praticado, ainda que contra sua vontade.
Por fim, cabe destacar que, ao lado da "imunidade", coloca Hohfeld a "incompetência". A imunidade diz respeito à possibilidade de não sofrer os efeitos do ato jurídico praticado pelo outro polo da relação jurídica. Evidente se faz, portanto, que, quem não está imune estará em "sujeição" com relação ao outro, o que significa dizer que o outro terá "poder" em relação ao não-imune. Essa constatação se faz porque "competência é poder", conforme afirma o Prof. Marcílio Florêncio Mota, da Universidade Católica de Pernambuco. Competência é, precisamente, a qualificação jurídica pessoal para a prática de um ato. Assim, para utilizar o mesmo exemplo, o empregador é competente para demitir seu funcionário, o que revela que tem sobre o mesmo o "poder" de praticar o referido ato; relativamente ao funcionário da empresa concorrente, contudo, o empregador não tem competência para a prática do ato "demissão". O fato de ser o administrador "incompetente" (no sentido técnico-jurídico aqui assumido) revela que não tem poder sobre o trabalhador vinculado à outra empresa, o que é equivalente a afirmar que o funcionário da referida concorrente tem "imunidade" relativamente aos atos de demissão praticados pelo gestor da primeira empresa.
4.2. Tabela de opostos
A tabela de opostos tem como conteúdo os mesmos conceitos definidos na tabela de correlatos. O que difere é a disposição em que os apresenta. Tem por objetivo informar os conceitos incompatíveis entre si, à luz da formulação de uma relação jurídica na qual se verifique um deles. A cada conceito associado à noção de "direito" (subjetivo), opõe-se um conceito incompatível com a situação jurídica contemplada no polo passivo. No dizer de Carrió, "cada modalidade jurídica ativa é representada em conexão com aquela modalidade passiva que, em lugar de complementá-la, opõe-se como contraditória na pessoa do mesmo sujeito."
Significa dizer: a tabela de opostos apresenta os oito conceitos jurídicos fundamentais, quatro relativos ao polo ativo da relação jurídica e quatro relativos ao polo passivo. A cada conceito do polo ativo se opõe o conceito correspondente impossível de se verificar no polo ativo quando presente nele presente a situação jurídica descrita no conceito correspondente. Se um sujeito ostenta frente ao outro direito com relação a um objeto X, isso exclui que o sujeito tenha não-direito para com o outro em relação ao mesmo objeto.
A tabela é como segue:
TABELA DE OPOSTOS |
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1. Direito – em sentido estrito, é a faculdade de exigir uma prestação, uma conduta por parte do sujeito passivo (um fazer, não-fazer, dar ou restituir por parte do outro polo da relação jurídica). |
1. Não-direito – é a versão oposta à noção de direito em sentido estrito, a saber, a situação de quem não tem a faculdade de exigir uma prestação por parte de um pretenso sujeito passivo. |
2. Privilégio – é a faculdade de praticar um ato ou de inserir-se em uma situação jurídica. Diz respeito a uma conduta por parte do polo ativo, o titular do privilégio, cujos efeitos recaem sobre o próprio sujeito ativo. |
2. Dever – consiste, em sentido estrito, na obrigatoriedade de praticar uma conduta (fazer, não-fazer, dar ou restituir). O dever é incompatível com o privilégio, pois quem tem a faculdade de praticar um ato não pode estar obrigado a realizá-lo.
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3. Poder – é a facudade de produzir determinados efeitos jurídicos em relação ao polo passivo. Por meio do poder, o titular do direito promove efeitos sobre outro sujeito, inserindo-o em uma situação jurídica. |
3. Incompetência – é a ausência de poder para a prática de um ato em relação a outrem. Quem tem o poder de submeter os efeitos de um ato a outro, tem competência em relação a esse sujeito.
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4. Imunidade – é o atributo jurídico que permite ao seu titular não ser afetado pelos efeitos jurídicos do ato de determinado sujeito. O polo ativo tem imunidade em relação ao polo passivo se os atos deste não forem aptos a produzir efeitos sobre aquele. Ter poder sobre outro não significa estar imune em relação ao outro. |
4. Sujeição – é o atributo que confere ao polo passivo a obrigatoriedade de se submeter aos efeitos do ato praticado pelo polo ativo. Se alguém tem imunidade em relação a outro no que concerne a um determinado ato, isso significa que não há sujeição em relação a esse outro no que tange ao determinado ato. |
De fato, a constatação parece razoavelmente lógica. Se A tem em relação a B um "direito" concernente a um objeto X, isso exclui que A não tenha o mesmo direito com relação a B (tenha o não-direito); se A tem, frente a B, o "privilégio" para a prática de um ato X, isso exclui o fato de que A tenha, com relação a B, o "dever" de realizar o ato X; se A tem, perente B, o "poder" de infligir determinado efeito jurídico, isso exclui que A seja incompetente para produzir os mesmos efeitos em relação a B; por fim, se A é "imune", em relação a B, no que tange a um específico ato X, isso é incompatível com a noção de que A esteja em "sujeição" para com B relativamente ao mesmo ato.
O uso impreciso realizado na prática conduz a graves desvios. O foro por prerrogativa de função, por exemplo, ostentado pelos detentores de cargos públicos de status constitucional, é comumente denominado "privilégio de foro". Trata-se, contudo, no estrito sentido de Hohfeld, de "dever": quem está sujeito ao foro por prerogativa funcional tem a obrigação de fazer sua defesa perante o juízo especial segundo a competência em razão da pessoa. Não se trata de faculdade, à qual pode optar o agente político. Em verdade, o julgamento, v. g , do Presidente da República por crime comum perante o STF pode ser visto, como o é com maior frequência, como no interesse do indiciado, mas nada impede que, em uma circunstância específica, seja entendido pela defesa como prejudicial (por possibilitar menor número de revisões do julgado, por exemplo). Ainda que visto como negativo, terá de ser respeitado. Logo, não pode ser entendido como "privilégio", vez que é comando normativo impositivo. Ademais, como visto, o "dever" de praticar um determinado ato em relação a alguém é incompatível com o "privilégio" de realizá-lo, frente ao mesmo sujeito.
Nesse sentido, Daniel Brantes Ferreira é bastante elucidativo:
"Nos termos postos por Hohfeld em seu esquema, privilégio é o oposto de dever e o correlato de ausência de pretensão. Sendo assim, se X tem o direito ou a pretensão que Y, o outro indivíduo, não possa adentrar suas terras, ele tem, portanto, o privilégio de adentrar suas próprias terras. Em outras palavras, X não tem o dever de ficar fora de suas terras, ou seja, o privilégio de entrar é a negativa do dever de ficar fora. Nesse sentido, podemos traduzir privilégio como não-dever ou ausência de dever. [...]
Similarmente ao exemplo citado, podemos mencionar outro exemplo trazido por Hohfeld: se A não realizou com B um contrato de prestação de serviços, portanto, o privilégio de A não realizar o serviço é a mera negativa do dever de realizá-lo, dever este que teria se houvesse efetuado o contrato, ou seja, perderia seu privilégio. Desta forma, privilégio tem sempre uma conotação oposta a do dever, por isso são conceitos fundamentais opostos no esquema de Hohfeld." [19]