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Republicanismo e participação cidadã

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13/06/2010 às 00:00
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IV. Participação Cidadã

Reconhecer a virtude cívica como um componente imprescindível do tipo de comportamento ativo que se requer do cidadão na perspectiva republicana, pode suscitar certa desconfiança em relação à sociedade brasileira em razão da curta experiência no ambiente das instituições democráticas e dos traços de autoritarismo remanescentes na esfera estatal e na sociedade civil que se traduzem em uma cultura política não-democrática[15].

Contudo, não se pode ignorar a presença de diversas formas de participação política no Brasil desde o início da transição democrática, geradas nos processos sociais ou facilitadas por mecanismos institucionais. A dimensão pedagógica é um efeito adicional aos ganhos imediatos dessas práticas[16], pois as ações políticas tradicionais se enfraquecem e perdem terreno lenta e gradualmente enquanto as participativas se fortalecem[17].

"Esse fortalecimento dá-se, por um lado, com a assunção de deveres e responsabilidades políticas específicas e, por outro, com a criação e exercício de direitos. Implica também o controle social do Estado e do mercado, segundo parâmetros definidos e negociados nos espaços públicos pelos diversos atores sociais e políticos"[18].

O mesmo autor considera que a participação cidadã diferencia-se da chamada "participação social e comunitária", em razão de não ter por objetivo apenas a prestação de serviços à comunidade e não se restringir à simples participação em grupos ou associações para defesa de interesses específicos ou expressão de identidades[19].

O objetivo de atender às tais necessidades específicas ou de expressar identidades pode estar presente, mas quer-se sempre algo mais com essa espécie de participação. Ela é um processo em construção reunindo as demandas coletivas e gerais, debatidas no espaço público e não reivindicadas nos gabinetes, combinando o uso de mecanismos institucionais com sociais, inventados no cotidiano das lutas e superando a clássica dicotomia entre representação e participação[20].

"Ao referir a ‘participação cidadã’ tenta-se, portanto, contemplar dois elementos contraditórios presentes na atual dinâmica política. Primeiro o ‘fazer ou tomar parte’, no processo político-social, por indivíduos, grupos, organizações que expressam interesses, identidades, valores que poderiam se situar no campo do ´particular’, mas atuando num espaço de heterogeneidade, diversidade, pluralidade. O segundo, o elemento ‘cidadania’, no sentido cívico, enfatizando as dimensões de universalidade, generalidade, igualdade de direitos, responsabilidades e deveres. A dimensão cívica articula-se à idéia de deveres e responsabilidades, à propensão ao comportamento solidário, inclusive relativamente àqueles que, pelas condições econômico-sociais, encontram-se excluídos do exercício dos direitos, do ‘direito a ter direitos’" [21].


V. Conclusão

A idéia de valorizar o tema da cidadania dentro de uma teoria renovada do republicanismo não é, ou não deve ser um esforço nostálgico de retorno a uma época perdida e dourada. Mesmo porque é muito pouco provável que tal época já tenha existido. A cidadania é uma construção histórica e a ação política e jurídica deve ter bem em conta a realidade social circundante e estar voltada para a materialização do bem comum.

Parece-nos que a grande virtude dessa abordagem é proporcionar uma prática que procura restituir a força – virtù – ao cidadão, iserindo-o em uma relação que não permite passividade e alienação da própria vontade. Isso, de certo modo, proporciona a restituição de conteúdos éticos à sociedade política e ao direito – elemento do qual o direito se esforçou por prescindir em favor da propalada Ciência Pura do Direito. A contrapartida da liberdade do cidadão é a consciência de interdependência entre os membros da sociedade humana.

A cidadania foi e continua sendo o indicador da democracia ao longo da história recente da humanidade. Podemos matizar seu conteúdo, traçar os percursos mais viáveis para a sua consecução, moderar seus imperativos conforme as distintas matrizes culturais. O certo é que a cidadania é um fenômeno dinâmico, e cuja plenitude é inatingível se considerada a constante transformação das necessidades e capacidades humanas. A cidadania mais plena é aquela capaz de conferir a dignidade mais substantiva e universal, segundo os pressupostos de uma época e lugar.


Notas

[1] MARSHALL, T.H. Cidadania, Classe Social e Status. Zahar, Rio de Janeiro, 1967.

[2] SCHUCK, Peter H. Liberal Citizenship in ISIN, Engin F. and TURNER, Bryan S. Handbook of Citizenship Studies. Sage, London, 2002. p.132. Tradução livre.

[3] É o que se pode concluir da leitura da obra de Marshall na qual afirma: "Se se invoca a cidadania em defesa dos direitos, as obrigações correspondentes da cidadania não podem ser ignoradas. Estas não exigem que um indivíduo sacrifique sua liberdade individual ou se submeta, sem motivo, a qualquer exigência feita pelo governo. Mas exigem que seus atos sejam inspirados por um senso real de responsabilidade para com o bem-estar da comunidade". Ver MARSHALL, T.H. Op. Cit. p. 104.

[4] Ver entre outros autores de referência: Gerard Delanti; Michael Walzer; Ernesto Laclau; Chantal Mouffé e Jurgen Habermas.

[5] "Mas a tendência moderna em direção da igualdade social é, acredito, a mais recente fase de uma evolução da cidadania que vem ocorrendo continuamente nestes últimos 250 anos. Minha tarefa inicial, portanto, deve ser a de preparar o terreno para um ataque aos problemas de hoje através da escavação do subsolo da história passada". MARSHALL, op. cit. p. 63.

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[6] SCHUCK, Peter H.Op. Cit. p.136. Tradução livre.

[7] Expressão largamente preterida nos meios acadêmicos atualmente em favor do termo "dimensão", sob o argumento de que "geração" sugere substituição de uns direitos por outros, quando em realidade o que ocorre – ou sói ocorrer – é uma interpenetração ou coexistência no tempo e no espaço entre os referidos direitos.

[8] CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil, o longo caminho. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002. p. 12.

[9] O texto de Richard Dagger "A Cidadania Republicana" proporciona um bom panorama sobre o revival do interesse pelos valores éticos republicanos na teoria política atual. Ver DAGGER, Richard. Republican Citizenship in ISIN, Engin F. and TURNER, Bryan S. Handbook of Citizenship Studies. Sage Publication, London, 2002, p. 145.

[10] TOCQUEVILLE, Alexis de. De la Démocratie en Amérique. Paris: Gallimard, 1986.

[11] VIEIRA, Lizst. Cidadania e Globalização. p. 27.

[12] Idéia cara para Rousseau em seu Contrato Social. Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Ediouro, 1994.

[13] DAGGER, Richard. Op. Cit. p. 151.

[14] Idem, p. 149. Tradução livre.

[15] AVRITZER, Leonardo. Cultura Política, Atores Sociais e Democratização. Uma crítica às teorias da transição para a democracia. Disponível em

http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_28 acesso em 18/03/2009.

[16] SOUZA, Marcelo Lopes de. A Prisão e a Ágora. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 266.

[17] Se a democratização no Brasil pode ser analisada em função das mudanças nas práticas dos atores sociais em âmbito local, ela também pode ser analisada sob o ponto de vista da continuidade de práticas políticas tradicionais, na medida em que a transição para a democracia e a Assembléia Constituinte ocorreram sob o controle de atores políticos ligados ao regime autoritário. No entanto, o fato de atores políticos conservadores terem detido o controle do processo constituinte, derrotando a sociedade civil organizada em questões tão relevantes quanto a reforma agrária ou a forma do sistema político, não impediu a abertura de espaços para um conjunto de políticas participativas inovadoras. AVRITZER, Leonardo. O Orçamento Participativo in Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo, Paz e Terra, 2002, p. 18.

[18] TEIXEIRA, Elenaldo. O Local e o Global. Limites e desafios da participação cidadã. São Paulo: Cortez, p. 30.

[19] Idem, p. 31.

[20] Idem, p. 33.

[21] Idem, p. 32.


Referências Adicionais

ALMOND, Gabriel A. and Verba, Sidney. Civic Culture: political attitudes and democracy in five nations.Boston: Little Brown & Company, 1965.

AVRITZER, Leonardo. Experiências Nacionais de Participação Social. São Paulo: Cortez, 2009.

MAQUIAVEL. Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

ALMOND, Gabriel A. and Verba, Sidney. Civic Culture: political attitudes and democracy in five nations.Boston: Little Brown & Company, 1965.

PATEMAN, Carole. Participação e Teoria Democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

PUTNAM, Robert D. Comunidade e Democracia – a Experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2007.

WALZER, Michael. Civility and Civic Virtue In: Radical Principles. Basic Books, 1980.

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Sobre o autor
Paulo Cesar do Lago

Servidor Público do Estado de São Paulo Bacharel pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bolsista CAPES/PROSUP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LAGO, Paulo Cesar. Republicanismo e participação cidadã. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2538, 13 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15025. Acesso em: 16 abr. 2024.

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