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As origens da teoria da argumentação no pensamento de Chaïm Perelman

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26/06/2010 às 00:00
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4. A vitória de Descartes?

Pois bem, como já dito, a visão platônica não se coaduna com a idéia de raciocínio dialético aristotélico, pois depende da idéia de verdade. Porém, mesmo assim, a retórica não perdeu seu espaço durante a idade média e continuou a ser estudada nas universidades. O grande golpe, que a fez cambalear durante três séculos, veio com a modernidade, mais especificamente, com o pensamento de René Descartes (1596 – 1650). De acordo com Perelman:

Ora, a concepção claramente expressa por Descartes, na primeira parte do ‘Discurso do método’, era a de considerar ‘quase como falso tudo quanto era apenas verossímil’. Foi ele que, fazendo da evidência a marca da razão, não quis considerar racionais senão as demonstrações que, a partir de idéias claras e distintas, estendiam, mercê de provas apodícticas, a evidência dos axiomas a todos os teoremas. [25]

Buscando diretamente as palavras de Descartes:

Há muito tempo eu notara que, quanto aos costumes, por vezes é necessário seguir, como se fossem indubitáveis, opiniões que sabemos serem muito incertas, como já foi dito acima; mas, como então desejava ocupar-me somente da procura da verdade, pensei que precisava fazer exatamente o contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se depois disso não restaria em minha crença alguma coisa que fosse inteiramente indubitável. [26]

Perelman afirma que:

Descartes e os racionalistas puderam deixar de lado a retórica na medida em que a verdade das premissas era garantida pela evidência, resultante do fato de se referirem a idéias claras e distintas, a respeito das quais nenhuma discussão era possível. Pressupondo a evidência do ponto de partida, os racionalistas desinteressaram-se de todos os problemas levantados pelo manejo de uma linguagem. [27]

Enfim, é nítida a relevância que Perelman concede ao pensamento cartesiano como causa do declínio da retórica. Afinal, Descartes reduziu o alcance da razão. Assim, todos os problemas e questões que não se adequavam ao seu método simplesmente foram excluídos do campo do racional. Trata-se de característica também dos empiristas, conforme reconhece Perelman:

Para os partidários das ciência experimentais e indutivas, o que conta é menos a necessidade das proposições do que a sua verdade, sua conformidade com os fatos. O empirista considera como prova não ‘a força à qual o espírito cede e vê-se obrigado a ceder, mas aquela à qual ele deveria ceder, aquela que, impondo-se a ele, tornaria a sua crença conforme ao fato’. Embora a evidência por ele reconhecida não seja a da intuição racional, mas a da intuição sensível, embora o método por ele preconizado não seja o das ciências dedutivas, mas o das ciências experimentais, ainda assim está convencido de que as únicas provas válidas são as provas reconhecidas pelas ciências naturais. [28]

Em síntese, racionalistas ou empiristas, consolidados pela epistemologia da modernidade, ambos desconsideraram a retórica. Ela era relacionada ao aparente, ao efêmero, ao falso. O método científico implantou-se na mentalidade de todos e o paradigma científico apoderou-se da razão. E, desta forma, todo o campo valorativo acabou sendo deixado de lado. Para Perelman, na modernidade:

Somente os juízos de realidade seriam a expressão de um conhecimento objetivo, empírica e racionalmente fundado, sendo os juízos de valor, por definição, irracionais, subjetivos, dependentes das emoções, interesses e decisões arbitrárias de indivíduos e grupos de toda espécie. [29]

A evidência cartesiana não deixou espaço para qualquer discussão. Aliás, segundo Perelman: "Uma evidência imediata resolve o problema da passagem da verdade para a crença ou da crença para a verdade" [30]. Há apenas uma tese correta e quem não lhe aderir estará equivocado. E se, por acaso, o problema não era calculável, então não seria resolvido com a razão, mas sim com base em outros fatores (emoção, vontade, sorte). Embora nem todos concordassem com Descartes, cite-se, por exemplo, o pensamento de Giambattista Vico (1668 - 1744), não há dúvida alguma de que por um determinado período, ele restou vitorioso. Também não há como negar que sem o rigor defendido por Descartes a ciência não teria alcançado os patamares que hoje se conhece.

Cabe lembrar, conforme salientado pelo próprio Perelman, que o declínio da retórica também foi resultado de uma postura interna da própria retórica, um certo movimento autofágico, em virtude do enfoque dado a ela, concentrado em aspectos técnicos, e questões muito mais ligadas à oratória [31] e a erística [32]. Estes dois campos sempre estiveram contidos na retórica. O grande problema foi quando eles se engrandeceram e passaram a ocupar muito espaço na referida disciplina. Aliás, sobre a erística, deve-se destacar a obra de Arthur Schopenhauer (1788- 1860) chamada "Dialética Erística", através da qual o referido filósofo expõe inúmeras formas de se ganhar uma discussão sem ter qualquer razão. Este tipo de trabalho, em virtude das indevidas interpretações, acabavam por contribuir à deturpação da imagem da retórica e ao distanciamento endêmico dos filósofos em relação a ela.

De qualquer forma, à margem deste fator interno, o paradigma científico foi crucial para que os estudiosos perdessem o interesse pela retórica. Assim, para que ela voltasse à cena, era necessário que o referido paradigma fosse abalado e isto aconteceu de forma difusa no decorrer do século XIX, graças a discussões ligadas às ciências humanas, e durante todo o século XX, quando a própria ciência natural começou a ser questionada, principalmente depois do advento da mecânica quântica e das teorias de Albert Einstein (1879 - 1955). Para Perelman:

Se, como demonstrou Thomas S. Kuhn, em sua obra consagrada às revoluções científicas, cada busca científica insere-se em uma visão do mundo e em uma metodologia, que não podem dispensar juízos de valor, apreciações preliminares a qualquer teoria e a qualquer classificação, a qualquer elaboração de uma terminologia apropriada, relegar tais juízos de valor ao arbitrário e ao irracional retira todo fundamento científico do edifício da ciência, o qual garante os juízos de realidade cuja objetividade parecia a mais segura. [33]

Que fique claro, a teoria da argumentação está ligada a uma ruptura do paradigma cientificista, à constatação de sua insuficiência. Perelman não acredita que ela tenha vindo para suplantar a teoria científica, mas sim para complementá-la: "Os lógicos devem completar a teoria da demonstração assim obtida com uma teoria da argumentação" [34].

Em termos estritos, é a própria lógica formal que está em xeque quando se questiona o paradigma científico, pois ela está em sua base. Os cientistas não podem viver sem os princípios da identidade, não-contradição e do terceiro excluído. Para eles o que importa são as regras de inferência, já que todas as premissas estão pressupostas. Como se sabe, quando o paradigma está consolidado, as premissas tornam-se axiomas, ou seja, proposições evidentes em si mesmas e indemonstráveis, não cabendo qualquer discussão em relação a elas. Portanto, o cientista não tem que se preocupar com a força dos argumentos, mas simplesmente com o respeito às regras de inferência, pois isto o leva a uma conclusão correta. O grande problema é que alguns campos da vida humana não se encaixam nesta estrutura, como é o caso da filosofia e do direito.

A lógica formal e os princípios da identidade, não-contradição e terceiro excluído integram a base do pensamento cientificista, seja de um racionalista, que se valerá da dedução, seja de um empirista, com sua indução. Porém, apenas com este instrumental não se consegue trabalhar com valores. Segundo Atienza:

[...] a lógica dedutiva só nos oferece critérios de correção formais, mas não se ocupa das questões materiais ou de conteúdo que, claramente, são relevantes quando se argumenta em contextos que não sejam os das ciências formais (lógica e matemática) [...] é possível que a lógica (lógica dedutiva) não permita nem sequer estabelecer requisitos necessários com relação ao que deve ser um bom argumento; como veremos, um argumento não lógico – no sentido de não dedutivo – pode ser, contudo, um bom argumento. [35]

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O grande pecado do cientificismo e da lógica formal é não dar conta de questões valorativas. E aqui vem o grande questionamento de Perelman:

Deveríamos, então, tirar dessa evolução da lógica e dos incontestáveis progressos por ela realizados a conclusão de que a razão é totalmente incompetente nos campos que escapam ao cálculo e de que, onde nem a experiência, nem a dedução lógica podem fornecer-nos a solução de um problema, só nos resta abandonarmo-nos às forças irracionais, aos nossos instintos, à sugestão ou à violência? [36]

Perelman nega-se a acreditar que os valores tenham sido abandonados pela razão. Porém, acredita que, quando se está diante de valores, outra é a forma de raciocinar. Daí a importância da retórica. Para o filósofo belga:

Percebemos nesse ponto uma nítida diferença entre o discurso sobre o real e o discurso sobre os valores. De fato, aquilo que se opõe ao verdadeiro só pode ser falso, e o que é verdadeiro ou falso para alguns deve sê-lo para todos: não se tem de escolher entre o verdadeiro e o falso. Mas aquilo que se opõe a um valor não deixa de ser um valor, mesmo que a importância que lhe concedamos, o apego que lhe testemunhamos não impeçam de sacrificá-lo eventualmente para salvaguardar o primeiro. [37]

Assim, como em um ciclo que se fecha, retorna-se ao momento que Perelman decidiu estudar a justiça, conforme exposto nos item anteriores deste trabalho. A lógica formal e o pensamento positivista não lhe deram as ferramentas para solucionar os problemas que o perturbavam, então teve que ampliar os seus horizontes, romper as amarras que prendiam a razão e partir para a teoria da argumentação. Perelman percebeu que:

Com o desmoronamento da filosofia prática, com a negação do valor de todo raciocínio prático, todos os valores práticos, tais como a justiça, a eqüidade, o bem comum, o razoável, passam a ser simples palavras vazias que cada um poderá encher de um sentido conforme a seus interesses. [38]

Enfim, foi para não deixar os valores no campo do arbítrio, da violência, do irracional, que Chaïm Perelman partiu em busca da argumentação, de uma teoria que explicasse como no conflito de idéias uma prevalece e a outra sucumbe pela força do discurso.


5. CONCLUSÃO

Em síntese, este trabalho, com o alcance e profundidade que se espera de um artigo, apresentou a origem do pensamento de Chaïm Perelman (1912 – 1984) no campo da teoria da argumentação.

Conclui-se que, inicialmente, o filósofo belga teve uma forte influência dos filósofos analíticos, que o fez pensar em um mundo sem juízos de valor. Desta forma, aventou uma noção formal de justiça ("os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma") que, não obstante seu rigor e precisão, não seria aplicável a casos concretos. Foi aí que Perelman teve o seu momento epifânico e decidiu verificar como raciocinar a respeito de valores.

Tornou-se um grande crítico de René Descartes e de toda a concepção racionalista cientificista que pretendia tratar as ciências humanas (v. g. a filosofia e o direito) nos mesmos moldes das ciências ligadas à natureza. Nesta nova busca, Perelman deparou-se com a obra de Aristóteles (Organon e Retórica), especificamente com os chamados raciocínios dialéticos, o que acabou inspirando-o a desenvolver sua teoria da argumentação, por ele nomeada como "nova retórica".


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Órganon. Bauru: EDIPRO, 2005.

ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2002.

COPI, Irving Marmer. Introdução à lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978.

DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

PERELMAN, Chaïm. Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação. São Paulo: Martins Fontes, 1996.


Notas

  1. PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica, p. XXI.
  2. ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito, p. 81.
  3. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 82.
  4. Idem, p. 81.
  5. PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie.
  6. Op. cit., p. 11.
  7. Muitos deles estão na coletânea "Ética e Direito", traduzida pela Editora Martins Fontes, utilizada neste trabalho.
  8. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 81.
  9. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito, p. 6.
  10. Idem, p. 9.
  11. Ibidem, p. 19.
  12. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito, p. 19.
  13. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 82.
  14. Embora muitos se refiram ao Organon como uma obra de Aristóteles, na verdade, ela consiste em um conjunto de suas obras relacionadas à lógica, que foram organizadas por Andronico de Rodes, no século I a.c.
  15. PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit., p. 5.
  16. Idem, p. 2.
  17. Ibidem, p. 3.
  18. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 21.
  19. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica, p. 147.
  20. Idem, p. 141.
  21. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 83.
  22. Idem.
  23. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica, p. 152.
  24. PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit., p. 7.
  25. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 65.
  26. PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit., p. 1.
  27. DESCARTES, René. Discurso do método, p. 37.
  28. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica, p. 142.
  29. PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit., p. 2.
  30. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica, p. 153.
  31. PERELMAN, Chaïm. Retóricas, p. 100.
  32. Oratória: arte de falar em público.
  33. Erística: arte de ganhar um debate, independentemente da consistência de seus argumentos.
  34. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica, p. 153.
  35. PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit., p. 11.
  36. ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 33.
  37. PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit., p. 3.
  38. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica, p. 146.
  39. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica, p. 152.
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Sobre o autor
Bruno Ponich Ruzon

advogado, especialista em Direito do Estado e Filosofia Moderna e Contemporânea, pela Universidade Estadual de Londrina, e professor de Filosofia Jurídica na Faculdade Norte Paranaense (UNINORTE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUZON, Bruno Ponich. As origens da teoria da argumentação no pensamento de Chaïm Perelman. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2551, 26 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15107. Acesso em: 20 abr. 2024.

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