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Urna eletrônica: avanço ou retrocesso?

01/05/1999 às 00:00
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Passado o momento das últimas eleições no Brasil, creio ser oportuno realizar-se em todo país uma discussão madura e racional acerca da votação eletrônica. Não se trata de mera contraposição ao avanço tecnológico alcançado por meio desse sistema.

Trata-se de questionar, sem preconceito, a vulnerabilidade do processo, e de firmar a necessidade de serem introduzidas sérias alterações visando ao seu aprimoramento. Em edição do dia 24.10.98 do jornal Correio Popular, de Campinas (SP), o consultor em informática Francisco Boér discorreu de forma muito clara sobre a possibilidade de adulteração de urnas eletrônicas, afirmando que a fraude pode ser executada, inclusive de maneira bastante simples, seja na fase de confecção do hardware, seja no momento da instalação do software ou até mesmo por meio de programas auxiliares.

Segundo o noticiário, esse cidadão teria proposto ação junto ao Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo alertando sobre as possibilidades de fraudes e pedindo alterações no sistema. A tese de Boér teria sido comprovada pelo desenvolvimento de um sistema similar.

Pois bem, com a devida vênia de alguns juízes eleitorais que consideram remota a possibilidade de pirataria nesse sistema, vale ressaltar que nem precisaria ser expert em informática para detectar que, mediante métodos simples, a possibilidade de fraude é bastante real. Indo além — e sem pretender fazer acusação direta a quem quer que seja — devo dizer que talvez a fraude até já esteja sendo executada nas votações.

Assim, é necessário deixar de lado as idéias românticas acerca da inviolabilidade do sistema, a fim de permitir que, valendo-se de intervenções técnicas e métodos pertinentes, os especialistas encontrem uma forma de proceder, no menor lapso de tempo, às alterações que se fizerem necessárias para resguardar o processo da possibilidade de fraudes. Não podemos continuar passando ao largo da questão e aceitando como verdade absoluta a presunção de que seria impossível transpor os artifícios de segurança antifraude já inseridos no sistema.

Abordando outro aspecto da questão, é de analisarmos também se a forma atual permite realmente a consumação do voto do cidadão e até mesmo se não caberia averiguar se estaria garantida a juridicidade do ato de votar. Podemos começar por questionar o fato de que o eleitor, ao votar pelo método eletrônico, fica sem qualquer comprovação da verdadeira destinação do seu voto. Digitar simplesmente os números do candidato que escolheu e ter que acreditar fielmente que o voto foi computado corretamente apenas pelo fato de que uma fotografia foi exibida no vídeo, tendo em vista a quantidade de fraudes que o ser humano com sua capacidade criativa consegue engendrar, não me parece o bastante para validar o ato de vontade do eleitor. Com perdão, parece até uma forma de subestimação da capacidade intelectiva do eleitor. Mal comparando, seria como se o eleitor estivesse presenciando a execução de um truque de mágica e devesse acreditar piamente que o resultado ocorreu por conta de uma capacidade paranormal divina conferida à pessoa do mágico.

Adentrando um pouco mais pelos rumos do Direito, sabe-se que votar é notoriamente um ato pessoal, personalíssimo, ou seja, é um direito que diz respeito ao próprio ego do elemento que o exerce.

No dizer do jurista Plácido e Silva, por direitos pessoais entendem-se "aqueles afetam a própria pessoa e devem ser por ela própria exercitados (...) e que (...) tomam às vezes a designação de personalíssimos por se mostrarem direitos puramente individuais e protetores da vida, da liberdade e da honra".

O que se faz por intermédio da urna eletrônica é indicar o voto, ou seja, usando de linguagem sofismática, quem realmente vota pelo eleitor é a máquina! Dessa forma, cabe questionar a validade do sistema até mesmo em face do princípio do direito personalíssimo do cidadão, que estaria sendo vulnerado à vista da impossibilidade de constatação de que, realmente, o seu ato de vontade pessoal estaria sendo respeitado ao digitar o número do candidato no terminal eletrônico de votação. O próprio Boér, citado anteriormente, dispõe sobre as facilidades de desvio na destinação dos votos.

Numa rápida visão, a mim aparenta que o sistema de apuração eletrônica, este sim, tem sido bastante eficiente, mas não o de votação propriamente dita que, decididamente, não assegura o direito de o cidadão votar e comprovar o seu voto, o que seria mais um modo de evitar as fraudes. Sendo pragmático, se o computador emitisse um comprovante ao eleitor após a digitação e a confirmação, e se, aí sim, tal comprovante fosse depositado numa urna, talvez conseguíssemos assegurar um pouco mais a confiabilidade do sistema.

Por fim, cabe comentar que é necessário seja estabelecida uma forma de descomplicar o método de votação eletrônica, haja vista a confusão generalizada que se verificou durante o primeiro turno das eleições de 1998, prejudicando diversos candidatos.

Conforme se constatou, milhares de pessoas nada sabiam sobre o uso da máquina e milhares delas por todo país deixaram de votar em razão das dificuldades. Foi lamentável perceber que muitos brasileiros talvez tenham deixado de fazer valer a sua vontade nas urnas pela dificuldade em conseguir suar o equipamento e repito — sem acusação direta a qualquer pessoa ou instituição — a grande probabilidade de haverem ocorrido fraudes eleitorais.

Portanto, resta perguntar e responder com toda sinceridade: a votação eletrônica, da forma como se apresenta atualmente, traduz-se num avanço ou num retrocesso da democracia? O que, realmente, é mais importante, a rapidez ou a legitimidade do processo?

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Considero que, vaidades pessoais à parte, às autoridades ligadas ao assunto cumpriria iniciar imediatamente investigação sobre as possibilidades abordadas, tomando urgentes providências para alterar e aprimorar o sistema, a fim de que nas próximas eleições não precisemos mais contar com o fantasma da fraude. O que deve ser preservado, acima de tudo, é o respeito ao cidadão que acredita no poder das urnas para melhorar o país. As autoridades brasileiras devem uma resposta ao nosso povo sobre essa questão e é preciso ter coragem para enfrentá-la. Urge uma posição concreta sobre o assunto.

Evidente que não há como nos aprofundarmos sobre o tipo propriamente de alterações que poderiam ser aplicadas ao equipamento antes do próximo pleito, porquanto cabe aos especialistas no assunto fazê-lo. De toda forma, ficam consignados aqui o apelo e o alerta de um cidadão e político preocupado, sobretudo, com a manutenção da democracia, com a legitimação da vontade popular e com a honra do cidadão, que merece continuar exercendo o seu direito de maneira segura por uma das formas mais sagradas: O VOTO.

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Sobre o autor
Jacó Bittar

presidente estadual interino do PSB/SP, ex-sindicalista, fundador da CUT e ex-prefeito de Campinas (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BITTAR, Jacó. Urna eletrônica: avanço ou retrocesso?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 31, 1 mai. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1547. Acesso em: 26 abr. 2024.

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Texto publicado originalmente no jornal Correio Braziliense.

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