Capa da publicação Dignidade da pessoa humana
Capa: DepositPhotos
Artigo Destaque dos editores

Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana

Exibindo página 2 de 3
23/12/1998 às 00:00
Leia nesta página:

4. O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição brasileira de 1988

Em Kant, como vimos, o que caracteriza o ser humano, e o faz dotado de dignidade especial é que ele nunca pode ser meio para os outros, mas fim em si mesmo. Como diz Kant, "o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade"39.

Conseqüentemente, cada homem é fim em si mesmo. E se o texto constitucional diz que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, importa concluir que o Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função do Estado. Aliás, de maneira pioneira, o legislador constituinte, para reforçar a idéia anterior, colocou, topograficamente, o capítulo dos direitos fundamentais antes da organização do Estado.

Assim, toda e qualquer ação do ente estatal deve ser avaliada, sob pena de inconstitucional e de violar a dignidade da pessoa humana, considerando se cada pessoa é tomada como fim em si mesmo ou como instrumento, como meio para outros objetivos. Ela é, assim, paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público e "um dos elementos imprescindíveis de atuação do Estado brasileiro"40.

No entanto, tomar o homem como fim em si mesmo e que o Estado existe em função dele, não nos conduz a uma concepção individualista da dignidade da pessoa humana. Ou seja, que num conflito indivíduo versus Estado, privilegie-se sempre aquele. Com efeito, a concepção que aqui se adota, denominada personalista, busca a compatibilização, a interrelação entre os valores individuais e coletivos; inexiste, portanto, aprioristicamente, um predomínio do indivíduo ou o predomínio do todo. A solução há de ser buscada em cada caso, de acordo com as circunstâncias, solução que pode ser tanto a compatibilização, como, também, a preeminência de um ou outro valor.

A pessoa é, nesta perspectiva, o valor último, o valor supremo da democracia, que a dimensiona e humaniza41. É, igualmente, a raiz antropológica constitucionalmente estruturante do Estado de Direito o que, como vimos, não implica um conceito "fixista" da dignidade da pessoa humana, o "homo clausus", ou o "antropologicun fixo". Ao contrário, sendo a pessoa unidade aberta, sugere uma "integração pragmática"42.

Saliente-se, ainda, que, pelo caráter intersubjetivo da dignidade da pessoa humana, defendido por W. Maihofer, citado por Pérez Luño 43, na elaboração de seu significado parte-se da situação básica (Grundsituation) do homem em sua relação com os demais, isto é, da situação do ser com os outros (Mitsein), em lugar de fazê-lo em função do homem singular encerrado em sua esfera individual (selbstein). O que, ressaltamos nós, tem particular importância na fixação, em caso de colisão entre direitos fundamentais de dois indivíduos, do minimun invulnerável, além de, como destacou Pérez Luño, contribuir no estabelecimento dos limites e alcance dos direitos fundamentais.

Relembre-se, neste momento, a decisão do Tribunal Constitucional espanhol que, precisando justamente o significado da primazia da dignidade da pessoa humana (art. 10.1. da Constituição espanhola), sublinhou que a dignidade há de permanecer inalterável qualquer que seja a situação em que a pessoa se encontre, constituindo, em conseqüência, um mininum invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar44.

Neste sentido, ou seja, que a pessoa é um minimun invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, dissemos que a dignidade da pessoa humana é um princípio absoluto; porquanto, repetimos, ainda que se opte, em determinada situação, pelo valor coletivo, por exemplo, esta opção não pode nunca sacrificar, ferir o valor da pessoa.

Distanciamo-nos, pois, do pensamento de Robert Alexy, que, como vimos, rejeita, radicalmente, a existência de princípios absolutos, chegando a afirmar que se os há, impõe-se modificar o conceito de princípio.

Ernst Bloch, citado por Pérez Luño45, destaca que a dignidade da pessoa humana possui duas dimensões que lhe são constitutivas: uma negativa e outra positiva. Aquela significa que a pessoa não venha ser objeto de ofensas ou humilhações. Daí o nosso texto constitucional dispor, coerentemente, que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" (art. 5º, III, CF). Com efeito, "a dignidade — ensina Jorge Miranda46 — pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas".

Impõe-se, por conseguinte, a afirmação da integridade física e espiritual do homem como dimensão irrenunciável da sua individualidade autonomamente responsável; a garantia da identidade e integridade da pessoa através do livre desenvolvimento da personalidade; a libertação da "angústia da existência" da pessoa mediante mecanismos de socialidade, dentre os quais se incluem a possibilidade de trabalho e a garantia de condições existenciais mínimas"47.

Por sua vez, a dimensão positiva presume o pleno desenvolvimento de cada pessoa, que supõe, de um lado, o reconhecimento da total autodisponibilidade, sem interferências ou impedimentos externos, das possibilidades de atuação próprias de cada homem; de outro, a autodeterminação que surge da livre projeção histórica da razão humana, antes que uma predeterminação dada pela natureza48.

Vimos que a proclamação do valor distinto da pessoa humana teve como conseqüência lógica a afirmação de direitos específicos de cada homem. A dignidade da pessoa humana é, por conseguinte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais, a "fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais"49, a fonte ética, que confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais50, o "valor que atrai a realização dos direitos fundamentais"51, "el valor básico (Grundwert) fundamentador de los derechos humanos"52. "Los derechos fundamentales son la expresión más inmediata de la dignidade humana"53.

Daí falar-se, em conseqüência, na centralidade dos direitos fundamentais dentro do sistema constitucional, que eles apresentam não apenas um caráter subjetivo mas também cumprem funções estruturais, são "conditio sine qua non del Estado constitucional democrático"54.

Outrossim, a fundamentalidade destes direitos55, tanto formal como material. Ou seja, as normas de direito fundamental ocupam o grau superior da ordem jurídica; estão submetidas a processos dificultosos de revisão; constituem limites materiais da própria revisão; vinculam imediatamente os poderes públicos; significam a abertura a outros direitos fundamentais.

Dessa maneira, a interpretação dos demais preceitos constitucionais e legais há de fazer-se à luz daquelas normas constitucionais que proclamam e consagram direitos fundamentais, as normas de direito fundamental. Com razão, Canotilho fala "que a interpretação da Constituição pré-compreende uma teoria dos direitos fundamentais"56. E, nas palavras de Pérez Luño,

"para cumplir sus funciones los derechos fundamentales están dotados de una especial fuerza expansiva, o sea, de una capacidad de proyectar-se, a través de los consguientes métodos o técnicas, a la interpretación de todas las normas del ordenamiento jurídico. Así, nuestro Tribunal Constitucional há reconocido, de forma expressiva, que los derechos fundamentales son el parámetro ‘de conformidad con el cual deben ser interpretadas todas las normas que componen nuestro ordenamiento’"57.


BIBLIOGRAFIA

AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional positivo. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993

AMIRANTE, Carlo. Diritti fondamentali e sistema constituzionale nella Republica Federale Tedesca. Roma: Lerici, 1980.

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987.

BASTOS, Celso Ribeiro, e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. 1º vol. São Paulo: Saraiva, 1988.

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 2ª reimpressão. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1991.

_______. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. 2ª ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1992.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional.6ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996._____. Teoria do Estado. 3ª Ed. São Paulo: Malheiros,1995.

_____. Do Estado liberal ao Estado Social. 5ª Ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.

BRITO, José Henrique Silveira de. Introdução à Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de I. Kant. Porto: edições Contraponto, 1994

CAMPOS, Benedito de. Constituição de 1988. Uma análise marxista. São Paulo. Editora Alfa-Omega, 1990.

CANOTILHO, J.J Gomes, Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1993.

_______. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra : Ed. Coimbra, 1994.

CARDOSO DA COSTA, José Manuel M. A Lei fundamental de Bonn e o direito constitucional português. in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LXV, 1989.

CARVALHO, Amilton Bueno de. (Org.). Direito Alternativo na jurisprudência. São Paulo: Acadêmica, 1993.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional didático. 3ª ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

CASTAN TOBEÑAS, José. Los derechos del hombre. 4ª. Ed. Madrid: Réus, 1992.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 4ª Ed. São Paulo: Ática, 1995.

CHUERI, Vera Karam de, Filosofia do Direito e modernidade. Dworkin e a possibilidade de um discurso instituinte de direitos. Curitiba: JM editora, 1995.

COSSIO DIAZ, José Ramos. Estado Social y Derechos de Prestacion. Madrid: Centro de estudios constitucionales, 1989.

CRETTELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988, vol. I. 3ª ed. Rio de Janeiro: forense, 1992.

DEL VECHIO, Giorgio. Lições de Filosofia de Direito.5ª ed. Coimbra: Armênio Armado, 1979.

DWORKIN, Ronald. I diritti presi sul serio. Bologna: il Mulino, 1982.

EWALD, François, Foucalt, a norma e o Direito. Lisboa: Veja, 1993.

FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996.

FERNANDEZ SEGADO, Francisco. Teoria jurídica de los derechos fundamentales en la Constitución Española de 1978 y en su interpretación por el Tribunal Constitucional. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ª31 n.121, p.69-102. jan./mar. 1994.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. Vol. I. São Paulo: Saraiva, 1990.

FERREIRA, Pinto, Comentários à Constituição brasileira, 1º vol. São Paulo: Saraiva, 1989.

FROMM, Erich. Conceito marxista do homem. 8ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. La constitucion como norma y el tribunal constitucional. 3ª ed. Madrid: Civitas, 1985.

____. Reflexiones sobe la ley y los principios generales del Derecho. Madrid: Editorial Civitas s.a, 1986.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Cosntituição de 1988: interpretação e crítica. 2ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ensaios de teoria constitucional. Fortaleza: Ed. Universidade Federal do Ceará, 1989.

HART, Herbert L. A. O conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbelkian, 1986.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Col. Os pensadores. São Paulo: Abril, 1993.

_______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, s.d.

LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbelkian, 1989.

LIMA GUERRA, Marcelo. Sobre critérios de racionalidade das valorações jurídicas, in Nomos, Revista do curso de Mestrado em Direito da UFC

MACHADO, J. Baptista. Introdução ao direito e ao discurso legitimador, Coimbra: Almedina, 1991.

MARX, Karl. A questão judaica. 2ª ed. São Paulo: editora moraes, 1991.

MONDIN, Battista. O homem, quem é ele? Elementos de antropologia filosófica, São Paulo: Edições Paulinas, 1980.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomos II e IV. 3ª ed. rev. e atual. Coimbra: Ed. Coimbra, 1991.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 1997.

MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem, violência. Elementos de uma teoria constitucional, I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995.

NABAIS, José Casalta. Os Direitos fundamentais na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Coimbra,1990. Separata do Vol. LXV (1989) do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

NAVARRETE, José F. Lorca. Derechos fundamentales y jurisprudencia. Madrid: Piramide, 1994.

NOGARE, Pedro Dalle. Humanismos e anti-humanismos. Introdução à Antropologia filosófica. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 1990.

OLIVEIRA, Manfredo A. de, A Filosofia na crise da modernidade. São Paulo: Loyola, 1992.

PASCAL, Georges. O pensamento de Kant. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1977.

PECES-BARBA, Gregorio Martinez. Curso de derechos fundamentales, vol I, Teoria General. Madri: Eudema, 1991

PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 3ª ed. Madrid: tecnos, 1990.

PRIETO SANCHIS, Luis. Estudios sobre derechos fundamentales. Madrid: Debate, 1990.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

___________. Questões de Direito Público. São Paulo: Saraiva, 1997.

ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

STUMM, Raquel Denize. Principio da proporcionalidade no Direito Constitucional brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1995.

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 3ª ed. São Paulo: malheiros, 1997

VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia Filosófica. Vol. I e II. 3ª Ed. corrigida. São Paulo: Loyola, 1993.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Fernando Ferreira dos Santos

promotor de Justiça no Piauí, mestre em Direito Público pela UFC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. -1652, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/160. Acesso em: 23 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos