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O fornecimento de informações a administrações tributárias estrangeiras

com base na cláusula da troca de informações, prevista em tratados internacionais sobre matéria tributária

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01/10/2000 às 00:00
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Sumário: 1 – Considerações introdutórias. 2 – A garantia de sigilo fiscal ao sujeito passivo da obrigação tributária. 3 – Especificidades da cláusula da troca de informações fiscais. 4 – A constitucionalidade da cláusula da troca de informações fiscais. 5 – A juridicidade da cláusula da troca de informações fiscais no ordenamento jurídico infraconstitucional. 6 – Conclusões.


Resumo: O presente estudo tem por objeto a cláusula da troca de informações fiscais, prevista em tratados internacionais de que o Brasil é parte, e que constitui exceção ao denominado "sigilo fiscal". Visando assegurar correta aplicação dos tratados internacionais e da legislação tributária interna e, sobretudo, prevenir ou eliminar a evasão tributária internacional, referida cláusula não é inconstitucional e, em caso de conflito, prevalece sobre disposição de lei interna.


1.CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

A época atual se caracteriza pela crescente liberalização e globalização das economias nacionais. Por outro lado, no campo da tributação, a soberania estatal continua a manifestar-se de forma particularmente contundente, considerando principalmente que o poder tributário é uma das mais importantes prerrogativas dos Estados.

Do confronto entre a globalização econômica e a soberania tributária, surgem, com freqüência, problemas de dupla tributação e de evasão tributária. Ambos os fenômenos são nocivos, por estabelecerem situações de injustiça tributária nas relações internacionais, e por criarem obstáculo ao comércio e aos investimentos internacionais.

De acordo com o princípio da territorialidade, as leis tributárias aplicam-se apenas aos fatos ocorridos no território abrangido pelo poder tributário. Em sistemas tributários assentes em impostos reais, referido princípio permite que se resolva a maioria dos problemas tributários de natureza internacional ou, mesmo, evita o seu surgimento. Tais problemas afloraram com a difusão dos impostos pessoais, como o imposto sobre sucessões e, principalmente, o imposto sobre a renda, ao se pretender tributar o contribuinte sobre a totalidade da sua renda, independentemente da origem dela. Dada a complexidade desses problemas, as soluções contidas no Direito interno nem sempre são suficientes para resolvê-los, tendo, portanto, que se fazer uso de tratados internacionais.

Nos tratados internacionais sobre matéria tributária, destaca-se a cláusula da troca de informações entre as Administrações Tributárias, essencial para a aplicação de tais tratados e para assegurar correta e célere aplicação da legislação tributária interna. O intercâmbio de informações constitui, ademais, importante mecanismo de prevenção ou eliminação da evasão tributária internacional. Tal forma de cooperação internacional tem-se tornado a cada dia mais necessária, considerando o número crescente de contribuintes que obtêm rendas e dispõem de capitais no exterior.

O objetivo geral deste estudo consiste em examinar a possibilidade jurídica de serem atendidos, pelo Governo brasileiro, pedidos de informações individualizadas sobre contribuintes, com base na cláusula da troca de informações, constante de todas as convenções internacionais destinadas a evitar a dupla tributação e a prevenir a evasão tributária em matéria de impostos sobre a renda, firmadas pelo Brasil.

Para tanto, cuidar-se-á, inicialmente, da garantia de sigilo fiscal, assegurada ao sujeito passivo da obrigação tributária.

Em seguida, tratar-se-á de algumas peculiaridades da cláusula da troca de informações fiscais, notadamente das suas finalidades, dos seus limites e dos órgãos incumbidos de pô-la em prática.

Logo após, será examinada a cláusula da troca de informações fiscais sob o aspecto da constitucionalidade e, por último, a posição que ocupa no ordenamento jurídico infraconstitucional brasileiro.

Saliente-se que, embora normalmente não recomendável do ponto de vista metodológico, serão feitas, ao longo do presente trabalho, longas transcrições de algumas decisões do Supremo Tribunal Federal, necessárias para melhor entendimento de assunto que ainda não tem sido bem explorado pela doutrina.


2. A GARANTIA DE SIGILO FISCAL AO SUJEITO PASSIVO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA

No interesse da correta aplicação da legislação tributária, a Fazenda Pública dispõe de informações obrigatoriamente prestadas pelos próprios contribuintes e por terceiros, ou colhidas mediante diligência de fiscalização. Relativamente à fiscalização, os artigos 194 e 195 do Código Tributário Nacional prevêem o que segue:

"Art. 194. A legislação tributária, observado o disposto nesta Lei, regulará, em caráter geral, ou especificamente em função da natureza do tributo de que se tratar, a competência e os poderes das autoridades administrativas em matéria de fiscalização da sua aplicação.

Parágrafo único. A legislação a que se refere este artigo aplica-se às pessoas naturais ou jurídicas, contribuintes ou não, inclusive às que gozem de imunidade tributária ou de isenção de caráter pessoal.

Art. 195. Para os efeitos da legislação tributária, não têm aplicação quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas do direito de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais dos comerciantes, industriais ou produtores, ou da obrigação destes de exibi-los.

Parágrafo único. Os livros obrigatórios de escrituração comercial e fiscal e os comprovantes dos lançamentos neles efetuados serão conservados até que ocorra a prescrição dos créditos tributários decorrentes das operações a que se refiram."

De acordo com o artigo 116, inciso VIII, da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, o servidor público tem o dever de manter sigilo sobre assuntos da repartição. No que concerne especificamente à Fazenda Pública e a seus funcionários, o artigo 198 do Código Tributário Nacional dispõe, ipsis verbis, que:

"Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, para qualquer fim, por parte da Fazenda Pública ou de seus funcionários, de qualquer informação, obtida em razão do ofício, sobre a situação econômica ou financeira dos sujeitos passivos ou de terceiros e sobre a natureza e o estado dos seus negócios ou atividades.

Parágrafo único. Excetuam-se do disposto neste artigo, unicamente, os casos previstos no artigo seguinte e os de requisição regular da autoridade judiciária no interesse da justiça."

De seu turno, o artigo 199 do Código Tributário Nacional determina que

"Art. 199. A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio".

O artigo 198 do Código Tributário Nacional proíbe, pois, a divulgação, pela Fazenda Pública e por seus funcionários, para qualquer fim, e sem prejuízo do que a lei penal prevê, de informes sobre a situação financeira ou econômica, bem como sobre os negócios dos sujeitos passivos ou de terceiros. De tal proibição, são excepcionados os casos previstos no artigo 199 do Código Tributário Nacional, os de requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça, os de requisição de comissão parlamentar de inquérito (art. 58, § 3º, da Constituição Federal), os de requisição do Ministério Público da União no exercício de suas atribuições, em determinadas situações (Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, art. 8º, § 2º), importando saber se são também excepcionados da proibição os casos previstos em convenções internacionais destinadas a evitar a dupla tributação e a prevenir a evasão tributária em matéria de impostos sobre a renda, firmadas pelo Brasil.

Ademais, o artigo 28 da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, determina que "O Banco Central do Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários e a Secretaria de Receita Federal manterão um sistema de intercâmbio de informações, relativas à fiscalização que exerçam, nas áreas de suas respectivas competências, no mercado de valores mobiliários".

Com efeito, a Administração Pública é regida pelo princípio da legalidade (art. 37 da Constituição Federal), o que significa dizer que só pode fazer o que a lei autorizar. Além dos casos acima referidos, não há no ordenamento jurídico brasileiro leis determinando ou facultando a Fazenda Pública a repassar a outros órgãos da Administração, para que sejam utilizadas com objetivos outros que não seja a fiscalização do cumprimento da legislação tributária, informações sobre sujeitos passivos e terceiros, obtidas no exercício de sua competência, concernentes aos respectivos negócios e situações financeiras ou econômicas.

O fornecimento, pela Fazenda Pública, de informações obtidas sob a égide do sigilo fiscal a outros órgãos da Administração Pública ou a organismos estrangeiros ou internacionais, para fins diversos daqueles concernentes à verificação do cumprimento da legislação tributária, poderá constituir, ademais, desvio de poder ou de finalidade, ainda que não se trate de ato lesivo a interesse público. A Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, na alínea "e" do parágrafo único do seu artigo 2º, dispõe que "o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência."

A Lei nº 8.021, de 12 de abril de 1990, que disciplina a obtenção de informações e o exame, por autoridade fiscal, de documentos, livros e registros das Bolsas de Valores, de Mercadorias, de Futuros e assemelhadas, dispõe, ipsis verbis, no § 2º do seu artigo 7º, que

"Art.7º...

§ 2º As informações obtidas com base neste artigo somente poderão ser utilizadas para efeito de verificação do cumprimento de obrigações tributárias".

Ademais, o Decreto-Lei nº 5.844, de 23 de setembro de 1943, que "Dispõe sobre a cobrança e fiscalização do imposto de renda", determina, no artigo 201, o que segue:

"Art. 201. Tôdas as pessoas que tomarem parte nos serviços do Imposto de Renda são obrigadas a guardar rigoroso sigilo sôbre a situação de riqueza dos contribuintes.

§ 1º A obrigação de guardar reserva sobre a situação de riqueza dos contribuintes se estende a todos os funcionários do Ministério da Fazenda e demais servidores públicos que, por dever de ofício, vierem a ter conhecimento dessa situação.

§ 2º É expressamente proibido revelar ou utilizar, para qualquer fim, o conhecimento que os servidores adquirirem quanto aos segredos dos negócios ou da profissão dos contribuintes."

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É mister ainda lembrar que constitui crime a violação de sigilo funcional, que consiste, segundo o artigo 325 do Código Penal, em "Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação".


3. ESPECIFICIDADES DA CLÁUSULA DA TROCA DE INFORMAÇÕES FISCAIS

Reveste-se de especificidades, todavia, o intercâmbio de informações previsto em tratados internacionais sobre matéria tributária. Com efeito, todas as convenções internacionais destinadas a evitar a dupla tributação e a prevenir a evasão tributária em matéria de impostos sobre a renda, firmadas pelo Brasil, contêm a cláusula da troca de informações, formulada seguindo o disposto no artigo 26 do modelo de convenção da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico e da Organização das Nações Unidas, cuja redação é a que segue:

"Artigo 26º

Troca de informações

1. As autoridades competentes dos Estados Contratantes trocarão entre si as informações necessárias para aplicar esta Convenção ou as leis internas dos Estados Contratantes relativas aos impostos abrangidos por esta Convenção, na medida em que a tributação nelas prevista não seja contrária a esta Convenção. A troca de informações não é restringida pelo disposto no Artigo 1º. As informações obtidas por um Estado Contratante serão consideradas secretas, do mesmo modo que as informações obtidas com base na legislação interna desse Estado, e só poderão ser comunicadas às pessoas ou autoridades (incluindo tribunais e autoridades administrativas) encarregadas do lançamento ou cobrança dos impostos abrangidos por esta Convenção, ou dos procedimentos declarativos ou executivos relativos a esses impostos ou de decisão de recursos referentes a estes impostos. Essas pessoas ou autoridades utilizarão as informações assim obtidas apenas para os fins referidos. Essas informações poderão ser reveladas no decurso de audiências públicas de tribunais ou de sentença judicial.

2

. O disposto no nº 1 nunca poderá ser interpretado no sentido de impor a um Estado Contratante a obrigação:

a)De tomar medidas administrativas contrárias à sua legislação e à sua prática administrativa ou às do outro Estado Contratante;

b)De fornecer informações que não possam ser obtidas com base na sua legislação ou no âmbito da sua prática administrativa normal ou das do outro Estado Contratante;

c)De transmitir informações reveladoras de segredos ou processos comerciais, industriais ou profissionais, ou informações cuja comunicação seja contrária à ordem pública."

Do dispositivo convencional redigido de acordo com o modelo acima transcrito, verifica-se que as trocas de informações tributárias têm lugar exclusivamente entre as administrações tributárias centrais, e, embora possam ser realizadas por meio de requerimento, de ofício, ou espontaneamente, as convenções firmadas pelo Brasil contemplam apenas a troca de informações por meio de provocação. Ademais, o dever de cada Estado prestar informações comporta restrições ou limites, que podem ser sintetizados em:

a) limites em razão dos tributos: informações podem ser prestadas apenas quanto aos impostos objeto da convenção;

b) limites em razão da competência: os Estados contratantes não são obrigados a adotar medidas administrativas contrárias a sua legislação ou prática administrativa, ou às do outro Estado contratante, nem a fornecer informações que não poderiam ser obtidas com base na sua própria legislação ou no âmbito da sua prática administrativa normal, ou das do outro Estado contratante;

c) limites em razão da matéria: os Estados contratantes não podem fornecer informações que revelem segredo comercial, industrial, profissional, processo comercial ou industrial, ou informações cuja comunicação seja contrária à ordem pública.

É mister lembrar que a cláusula relativa à troca de informações tributárias é essencial para a aplicação dos tratados internacionais sobre matéria tributária e para assegurar a correta e célere aplicação da legislação tributária interna, constituindo, todavia, sobretudo meio destinado a solucionar o problema da evasão tributária internacional, que projeta as suas nefastas conseqüências não apenas no campo de tributação, mas, também, no da economia do Estado de onde as rendas se evadem, propiciando ainda desrespeito ao princípio da igualdade na tributação.

Novo e grande impulso à evasão tributária internacional tem dado a colocação em circulação de uma massa gigantesca de capitais internacionais, a ser empregada onde possa gerar os maiores lucros com os menores custos. Diante das suas tão grandes proporções, a evasão tributária internacional suscita, obviamente, sérias apreensões por parte dos Estados que dela são vítimas, motivo pelo qual estes Estados têm o interesse e a necessidade de adotar medidas tendentes a evitar, eliminar ou diminuir os efeitos do fenômeno. Entre tais medidas, as de caráter unilateral encontram limite na soberania territorial dos demais Estados.

A repressão à evasão tributária internacional requer, pois, estreita colaboração entre as administrações tributárias dos Estados, levada a efeito por meio de medidas multilaterais, sempre que possível, ou, pelo menos, com a adoção de medidas bilaterais, entre as quais se insere a cláusula da troca de informações tributárias prevista nas convenções internacionais bilaterais destinadas a evitar a dupla tributação e a prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre a renda.


4. A CONSTITUCIONALIDADE DA CLÁUSULA DA TROCA DE INFORMAÇÕES FISCAIS

Expostas as características básicas e a importância da cláusula da troca de informações, constante de tratados internacionais de natureza tributária de que o Brasil é parte, impende examinar tal cláusula sob o aspecto da constitucionalidade. Importa pois verificar se informações individualizadas sobre contribuintes podem ser fornecidas pelo Governo brasileiro, em cumprimento a obrigações assumidas pelo Brasil por meio de tratados internacionais, tendo em vista o que estabelece a Constituição Federal no § 1º do artigo 145 e nos incisos X e XII do artigo 5º, nos seguintes termos:

"Art.145...

§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades do contribuinte."

"Art 5° ...

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;".

O exame da constitucionalidade da referida cláusula da troca de informações revela-se necessário porque, no Brasil, como acontece na grande maioria dos Estados da sociedade internacional, ante o confronto entre os tratados internacionais e a Constituição, prevalece esta última, dada a sua superioridade hierárquica. Sobre o assunto, o Ministro Celso de Mello, em despacho datado de 17 de julho de 1996, proferido em pedido de liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.480-3-Distrito Federal, afirmou, com proficiência, o que segue:

"TRATAD0S INTERNACIONAIS E SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. O exercício do treaty-making power, pelo Estado brasileiro - não obstante o polêmico art. 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (ainda em curso de tramitação perante o Congresso Nacional) -, está sujeito à observância das limitações jurídicas emergentes do texto constitucional.

A Constituição qualifica-se como o estatuto fundamental da República. Nessa condição, todas as leis e tratados celebrados pelo Brasil estão subordinados à autoridade normativa desse instrumento básico. Nenhum valor jurídico terá o tratado internacional, que, incorporado ao sistema de direito positivo interno, transgredir, formal ou materialmente, o texto da Carta Política.

É que o sistema jurídico brasileiro não confere qualquer precedência hierárquico-normativa aos atos internacionais sobre o ordenamento constitucional. É essencial reconhecer, portanto, que a inconstitucionalidade de tratados internacionais impedirá a aplicação de suas normas na ordem jurídica interna brasileira, ao contrário do que prevalece, p. ex., no sistema normativo vigente em Portugal, cuja Constituição (1976) - com as alterações introduzidas pela Segunda Revisão Constitucional (1989) - excepcionalmente admite a incidência de normas formalmente inconstitucionais constantes de tratados internacionais (art. 277, nº 2): ‘A inconstitucionalidade orgânica ou formal de tratados internacionais regularmente ratificados não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurídica da outra parte, salvo se tal inconstitucionalidade resultar de violação de uma disposição fundamental’.

A relação de eventual antinomia entre o tratado internacional e a Constituição da República impõe que se atribua, dentro do sistema de direito positivo vigente no Brasil, irrestrita precedência hierárquica à ordem normativa consubstanciada no texto constitucional. Daí a procedente advertência de JOSÉ FRANCISCO REZEK ("Direito dos Tratados", págs. 462/463, item nº 388, 1984, Forense), para quem:

‘Assim, posto o primado da constituição em confronto com a norma pacta sunt servanda, é corrente que se preserve a autoridade da lei fundamental do Estado, ainda que isto signifique a prática de um ilícito pelo qual, no plano externo, deve aquele responder.

Embora sem emprego de linguagem direta, a Constituição brasileira deixa claro que os tratados se encontram aqui sujeitos ao controle de constitucionalidade, a exemplo dos demais componentes infraconstitucionais do ordenamento jurídico.

Tão firme é a convicção de que a lei fundamental não pode sucumbir, em qualquer espécie de confronto, que nos sistemas mais obsequiosos para com o Direito das Gentes tornou-se encontrável o preceito segundo o qual todo tratado conflitante com a constituição só pode ser concluído depois de promover a necessária reforma constitucional.

Abstraída a constituição do Estado, sobrevive o problema da concorrência entre tratados e leis internas de estatura infraconstitucional. A solução, em países diversos, consiste em garantir prevalência aos tratados. Noutros, entre os quais o Brasil contemporâneo, garante-se-lhes apenas um tratamento paritário, tomadas como paradigma as leis nacionais e diplomas de grau equivalente’ (grifei).

Foi por essa razão - e tendo presente o absoluto primado da Constituição da República sobre os atos de direito internacional público - que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, atuando em sede de controle normativo abstrado (Rp nº 803-DF), declarou a inconstitucionalidade parcial da Convenção nº 110 da Organização Internacional do Trabalho (RTJ 84/724, Rel. Min. DJACI FALCÃO).

O eminente Prof. CELSO LAFER, quando Ministro das Relações Exteriores, ao propor à Presidência da República o encaminhamento, ao Congresso Nacional, do texto da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, entendeu conveniente enfatizar, em sua Exposição de Motivos, com inteira correção e absoluto rigor acadêmico, a necessária subordinação hierárquica dos atos internacionais à ordem normativa fundada na Constituição da República:

‘Infelizmente, o Brasil até hoje não ratificou a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, em cuja elaboração participaram brilhantes especialistas nacionais. Dúvidas, a meu ver infundadas, surgidas no seio do próprio Executivo, acerca da compatibilidade de algumas cláusulas sobre entrada em vigor de tratados e a prática constitucional brasileira em matéria de atos internacionais (...) retardaram sua submissão ao referendo do Congresso Nacional. Esse impedimento é tanto mais injustificado quando se considera a possibilidade de fazer-se, no momento da ratificação, alguma reserva ou declaração interpretativa, se assim for o desejo do Poder Legislativo. Seja como for, a eventual aprovação integral da Convenção, mesmo sem qualquer reserva, pelo Congresso Nacional, nunca poderia ser tomada como postergatória de normas constitucionais, já que no Brasil não se tem admitido que os tratados internacionais se sobreponham à Constituição’ (Diário do Congresso Nacional, Seção I, de 19.05.92, pág. 9.241 - grifei).

O fato irrecusável, no sistema jurídico vigente no âmbito do Estado brasileiro, reside na circunstância de que todos os tratados e convenções celebrados pelo Brasil devem necessariamente conformar-se ao domínio normativo da Constituição da República, sob pena de ineficácia das cláusulas convencionais."

O disposto no § 1º do artigo 145 da Constituição não guarda direta pertinência com o intercâmbio de informações estipulado pelas convenções internacionais destinadas a evitar a dupla tributação e a prevenir a evasão tributária em matéria de impostos sobre a renda, firmadas pelo Brasil. Com efeito, as informações que o Brasil se obrigou a fornecer são todas aquelas prestadas pelos próprios contribuintes e por terceiros, ou colhidas mediante diligência de fiscalização, com as restrições ou limites especificados em tais acordos internacionais. Mencionado dispositivo constitucional concerne à faculdade concedida à administração tributária para identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades do contribuinte, respeitando-se, obviamente, os direitos individuais, e nos termos da lei, especialmente para conferir efetividade aos objetivos que consagra, quais sejam: o princípio da personalização dos impostos e o da adequação destes à capacidade econômica do contribuinte.

Também o inciso XII do artigo 5º da Constituição não tem pertinência com a situação em exame. A exegese de tal dispositivo constitucional assentou-se no sentido de ser inviolável o direito individual de a ação comunicativa não ser interceptada, não o conteúdo da comunicação em si, protegido pelo direito à privacidade, que não é absoluto, conforme se verá. Sobre o assunto, José Afonso da Silva (in Curso de direito constitucional positivo, p. 438) se manifesta da seguinte forma: "Ao declarar que é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas, a Constituição está proibindo que se abram cartas e outras formas de correspondência escrita, se interrompa o seu curso e se escutem e interceptem telefonemas." Do mesmo modo, Tércio Sampaio Ferraz Júnior (in "Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à fruição fiscalizadora do Estado". Revista dos tribunais - Cadernos de direito tributário e finanças públicas, São Paulo l (1) 149, out./dez. 1992) afirma que "... o inciso XII (proteção à comunicação de dados) impede o acesso à própria ação comunicativa, mas não aos dados comunicados." Colhe-se também lição de Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins (in Comentários à Constituição do Brasil, p. 73), para quem:

"Uma inovação da Constituição foi estender a inviolabilidade aos ‘dados’. De logo faz-se mister tecer críticas à impropriedade desta linguagem. A se tomar muito ao pé da letra, todas as comunicações seriam invioláveis, uma vez que versam sempre sobre dados. Mas pela inserção da palavra no inciso vê-se que não se trata propriamente do objeto da comunicação, mas sim de uma modalidade tecnológica recente que consiste na possibilidade das empresas, sobretudo financeiras, fazerem uso de satélites artificiais para comunicação de dados contábeis".

Assim, a constitucionalidade da cláusula da troca de informações, inserida em tratados internacionais de que o Brasil é parte, deve ser aferida verificando-se a sua compatibilidade com o denominado "direito à privacidade", previsto no inciso X do artigo 5º da Constituição, ao declarar invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Este dispositivo constitucional tem sido objeto de controvérsias, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, de modo a não se afigurar fácil a tarefa de determinar-lhe o sentido, de precisar-lhe o alcance. Grande esforço intelectual destinado a esclarecer o conteúdo de tal dispositivo constitucional foi realizado por Tércio Sampaio Ferraz Júnior, chegando a resultados irretorquíveis. Segundo este autor (op. cit., p. 143)

"Embora os comentadores não vejam diferença entre vida privada e intimidade (cf. Ferreira Filho, 1990:35, Cretella Júnior, 1990:257), pode-se vislumbrar um diferente grau de exclusividade entre ambas. A intimidade é o âmbito do exclusivo que alguém reserva para si, sem nenhuma repercussão social, nem mesmo ao alcance de sua vida privada que, por mais isolada que seja, é sempre um viver entre os outros (na família, no trabalho, no lazer em comum). Não há um conceito absoluto de intimidade. Mas é possível exemplificá-lo: o diário íntimo, o segredo sob juramento, as próprias convicções, as situações indevassáveis de pudor pessoal, o segredo íntimo cuja mínima publicidade constrange. Já a vida privada envolve a proteção de formas exclusivas de convivência. Trata-se de situações em que a comunicação é inevitável (em termos de relação de alguém que, entre si, trocam mensagens), das quais, em princípio, são excluídos terceiros. Terceiro é, por definição, o que não participa, que não troca mensagens, que está interessado em outras coisas. Numa forma abstrata, o terceiro compõe a sociedade, dentro da qual a vida privada se desenvolve, mas que com esta não se confunde (cf. Luhmann, 1972). A vida privada pode envolver, pois, situações de opção pessoal (como a escolha do regime de bens de casamento) mas que, em certos momentos, podem requerer a comunicação a terceiros (na aquisição, por exemplo, de um bem imóvel). Por aí ela difere da intimidade, que não experimenta esta forma de repercussão.

Já a honra e a imagem têm ostensivamente um sentido comunicacional, que inevitavelmente envolve terceiros. Ambos, especialmente a imagem, são situações personalíssimas perante os outros. Direito à honra é, assim, direito de sustentar o modo pelo qual cada um supõe e deseja ser bem visto pela sociedade. É uma combinação entre auto-respeito e respeito dos outros. A honra se projeta na imagem que, embora de alguém, é sempre como alguém julga e quer aparecer para os outros. O direito à imagem é o direito de não vê-la mercantilizada, usada, sem o seu exclusivo consentimento, em proveito de outros interesses que não os próprios. Por último, embora graduando-se nos diferentes objetos, o princípio da exclusividade tem perante todos, um mesmo propósito: a integridade moral do indivíduo, aquilo que faz de cada um o que é e, desta forma, lhe permite inserir-se na vida social e na vida pública" (Obs.: os grifos são do autor).

Merecem também destaque os conceitos de intimidade e de vida privada de Roberto Quiroga Mosquera (in Tributação no mercado financeiro e de capitais, pp. 67-8), que são os seguintes:

"Caldas Aulete, dicionarista português, define intimidade como ‘qualidade do que é íntimo’ e íntimo, por sua vez, como o adjetivo que significa ‘intrínseco, mui interno, muito de dentro’. Ao conceituar a palavra íntimo o ilustre dicionarista esclarece, também, que vida íntima é a ‘vida muito particular, de família, do interior da casa’. Claro está, pois, que o legislador constitucional, ao estipular a garantia à inviolabilidade da intimidade, está por se referir a tudo aquilo que diz respeito ao particular das pessoas, às suas coisas pessoais, dados e informações intra e intersubjetivos, guardados em sigilo pelas pessoas, se assim o desejarem.

Já a expressão vida privada, o lexicógrafo a define como ‘a vida particular, o viver da pessoa que não toma parte nos negócios públicos’. Em outras palavras , a inviolabilidade da vida privada, assegurada no artigo 5º da Carta de 1988, diz respeito às relações particulares do homem, não se cogitando das relações institucionais, corporativas ou públicas. Representam, pois, informações de cunho pessoal, restritas e, em princípio, também sigilosas."

No Supremo Tribunal Federal, o sigilo, tanto fiscal quanto bancário, tem sido entendido como expressão do direito à privacidade, consagrado pela Constituição Federal no artigo 5º, inciso X, não se revestindo este de caráter absoluto. Na petição 577-5-DF (RTJ 148/366), que tinha por objeto o sigilo bancário, o Relator, Ministro Carlos Mário Velloso, no seu voto, afirmou o que segue:

"O sigilo bancário protege interesses privados, é ele espécie de direito à privacidade, inerente à personalidade das pessoas e que a Constituição consagra (C.F., art. 5º, X), além de atender ‘a uma finalidade de ordem pública, qual seja a de proteção do sistema de crédito’, registra Carlos Alberto Hagstrom, forte no magistério de G. Ruta (Le Secret Bancaire en droit Italien, Rapport, p. 17; Carlos Alberto Hagstrom, ‘O Sigilo Bancário e o Poder Público’, rev. de direito Mercantil, 79/34). Não é ele um direito absoluto, devendo ceder, é certo, diante do interesse público, do interesse da justiça, do interesse social, conforme, aliás, tem decidido esta corte (RMS 15.925-GB, Relator o Ministro Gonçalves de Oliveira; RE nº 71.640-BA, Relator Ministro Djaci Falcão, RTJ 59/571; MS 1.047, Relator Ministro Ribeiro da Costa, Rev. Forense 143/154; MS 2.172, Relator Ministro Nelson Hungria, ‘DJ’ de 5.1.54; RE nº 94.608-SP, Relator Ministro Cordeiro Guerra, RTJ 110/195). Esse caráter não absoluto do segredo bancário, que constitui regra em direito comparado, no sentido de que deve ele ceder diante do interesse público, é reconhecido pela maioria dos doutrinadores. (Carlos Alberto Hagstrom, ob. cit., pág. 37; Sérvio Carlos Covello; "O Sigilo bancário como ‘Proteção à intimidade’, rev. dos Tribs., 648/27, 29; Ary Brandão de Oliveira, Considerações Acerca do Segredo Bancário, Rev. de Dir. Civil, 23/144, 119). O Segredo há de ceder, entretanto, na forma e com observância de procedimento estabelecido em lei".

O Dr. Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, no trabalho intitulado "Procedimento para Encaminhamento da Comunicação de Crime Fiscal ao Ministério Público", publicado no volume de apoio ao 2º Seminário sobre Crimes contra a Ordem Tributária, realização de Repertório IOB de Jurisprudência e ocorrido em 29 de março de 1996, afirma o que segue:

"Ressalto que, no julgamento do Mandado de Segurança nº 21.729-4-DF, impetrado pelo Banco do Brasil contra o Procurador-Geral da República, o Excelso Supremo Tribunal Federal definiu, mais uma vez, que os sigilos fiscal e bancário não são absolutos, sendo legítima a sua transferência quando, de alguma forma, o interesse público reclame a sua justificada prevalência, tendo denegado a segurança diante da harmonia do art. 8º, inciso VIII, § 2º, da LC nº 75/93, com o art. 5º, X e XII, da CF/88."

O objeto do referido Mandado de Segurança nº 21.729-4-DF foi essencialmente o sigilo bancário, com o qual o sigilo fiscal mantém afinidade. Não é absoluto o sigilo bancário, conforme tem entendido o Supremo Tribunal Federal, nem tampouco o sigilo fiscal, cuja transferência há de ser feita quando presente irrecusável interesse público, e desde que não haja contrariedade a lei.

Considerando, pois, não ser absoluto o sigilo fiscal, espécie de direito à privacidade, podendo haver a sua transferência diante do interesse público, do interesse da justiça, do interesse social, observado o procedimento estabelecido em lei, e atento aos limites ou restrições das informações a serem prestadas no âmbito dos acordos sobre dupla tributação internacional, que podem versar apenas sobre os impostos objeto de tais acordos, e desde que não sejam reveladoras de segredos comerciais, industriais ou profissionais, processos comerciais ou industriais, ou que contrariem a ordem pública, conclui-se não ser inconstitucional a cláusula da troca de informações constante de tais acordos internacionais. Ademais, de conformidade com o disposto no artigo 4º, inciso IX, da Constituição, o Brasil é regido, nas suas relações internacionais, por, entre outros, o princípio da "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade". Ora, a troca de informações de natureza tributária entre os Estados, a fim de combater a evasão tributária internacional, constitui modalidade de cooperação de grande valia para o progresso dos Estados vítimas de tal fenômeno.

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Sobre o autor
Antônio de Moura Borges

procurador da Fazenda Nacional, professor na Universidade de Brasília, professor e diretor do curso de Direito da Universidade Católica de Brasília, mestre em Direito Comparado pela Southern Methodist University (EUA), doutor em Direito pela Universidade de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORGES, Antônio Moura. O fornecimento de informações a administrações tributárias estrangeiras: com base na cláusula da troca de informações, prevista em tratados internacionais sobre matéria tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1611. Acesso em: 25 abr. 2024.

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