II) Sobre o Poder Constituinte.
II.a) Breve Introdução Histórica.
Poder constituinte é, de forma genérica, o poder do qual
deriva a confecção da constituição que regulará o ordenamento jurídico
de um determinado Estado. É o poder que dá ao Estado a sua constituição,
sua norma mais importante. Conquanto se possa entender constituição como o conjunto
de regras que determina como serão organizadas e ditadas as normas jurídicas
de um determinado Estado (constituição no sentido formal para Kelsen) –
sendo, portanto, poder constituinte aquele que tem o poder de ditar aquele
conjunto de regras –, a noção de poder constituinte e os estudos
jurídicos e políticos realizados a seu respeito têm sua origem histórica
nos movimentos constitucionalistas derivados das revoluções liberais dos
fins do século XVIII. Por isso a advertência de Paulo Bonavides que
diferencia poder constituinte da sua teoria. Segundo este constitucionalista
brasileiro, o poder constituinte sempre se faz presente no momento em que uma
sociedade estatui os fundamentos de sua organização jurídico-estatal. No
entanto, a tentativa de teorizar esse poder só surgiu no período das
revoluções da época do Iluminismo [49]. Ainda segundo ele: A teoria do poder constituinte é basicamente uma teoria da
legitimidade do poder. Surge quando uma nova forma de poder, contida nos
conceitos de soberania nacional e soberania popular, faz sua aparição
histórica e revolucionária em fins do século XVIII [50]. Assim, o poder constituinte é teorizado no momento de
mudança da legitimação do poder: da vontade pessoal do monarca para a
vontade impessoal da nação ou do povo [51]. As principais revoluções são a Independência dos
Estados Unidos (formalizada pelo tratado de Versalhes no ano de 1.783, sendo a
Constituição promulgada em 1.787) e a Revolução Francesa (ocorrida em
1.789 e constituição aprovada em 1.791). Ambas as revoluções declaravam o povo como detentor
legítimo do poder constituinte. Mas as diferenças sociológicas e políticas
das duas sociedades deram origem a percepções diversas no que diz respeito
ao reconhecimento desse poder popular. Na França, entendeu-se que a
assembléia constituinte formada detinha poder soberano pois era representante
do povo, não necessitando de nenhuma consulta a este (justamente por ser o
seu representante direto e, portanto, sua vontade era a mesma do povo). Já os
americanos instituíram as Convenções, assembléias que deveriam elaborar a
constituição mas com poderes limitados e, por isso, deveriam submeter a
constituição à aprovação popular (como legítimo detentor do poder
constituinte soberano. No entanto, a doutrina americana foi logo acolhida na
França e a Convenção nacional francesa de 1.792 (da qual resultou a
constituição de 1.793) determinou que a constituição deveria ser
confirmada pelo povo. Há aqui, assim como na doutrina americana, a
diferenciação entre detentor legítimo do poder constituinte e órgão que o
representa na elaboração do documento constitucional [52]. II.b) Aspectos Gerais do Poder Constituinte. Identificado o poder constituinte com o poder de ditar
normas constitucionais, o grande problema que surge é identificá-lo na sua
manifestação para que se possa realizar um estudo acerca das suas
características e sua importância tanto para a idéia de constituição
quanto para a idéia de soberania. Primeiramente, deve-se ressaltar que é possível falar-se
em poder constituinte derivado (de grande importância para o estudo jurídico
do direito constitucional) e em poder constituinte originário (fenômeno
importantíssimo no estudo sociológico e político de um determinado Estado
mas de grande dificuldade de ser estudado no âmbito puramente jurídico, pois
trata-se da manifestação de um poder que transcende em muito os limites
estritos de um ordenamento jurídico). O primeiro (que não faz parte do objeto de estudo do
presente trabalho) diz respeito ao poder que um órgão legislativo tem de
alterar as normas da constituição. Mas é limitado, pois não pode alterar a
substância da constituição, já que não pode modificar os fundamentos do
ordenamento jurídico, alterando aquilo que foi determinado pela vontade do
detentor do poder constituinte originário (legítimo portador do poder de
determinar as bases da constituição do Estado). Se o fizer, passa a ser
poder originário. Já o poder constituinte originário é aquele que dita as
bases da constituição, os valores básicos do ordenamento que irão balizar
o convívio social. É aquele poder que determina a primeira constituição
histórica (para utilizar a famosa expressão kelseniana).Nesse
sentido, também, a orientação de Canotilho: ... no fundo, o poder constituinte se revela sempre
como uma questão de ‘poder’, de ‘força’ ou de autoridade política
que está em condições de, numa determinada situação concreta, criar,
garantir ou eliminar uma constituição entendida como lei fundamental da
comunidade política [53]. Seguindo essa linha de idéias, há, segundo Jorge Miranda,
um poder constituinte material e um formal. O primeiro é aquele que conforma
qual é a idéia de direito, que dá o conjunto de valores que irá prevalecer
na constituição dirigindo o conteúdo material das normas a serem
elaboradas. O segundo é o poder que normatiza essa idéia de direito, que
sistematiza e formaliza a constituição, objetivando aqueles valores que
devem prevalecer [54]. O poder constituinte material, portanto, precede
logicamente o formal, pois é ele que dá o substrato que deverá ser a base
da constituição. E precede-o historicamente, porque (sem considerar, mesmo,
a Constituição institucional de antes do constitucionalismo) há sempre dois
tempos no processo constituinte, o do triunfo de certa idéia de Direito ou do
nascimento de certo regime e o da formalização dessa idéia ou desse regime;
e o que se diz da construção de um regime político, vale também para a
transformação de um Estado. [55] "O nascimento do Estado coincide com a sua primeira
Constituição, porque na Constituição vão exteriorizar-se as
representações particulares do conceito de Estado" [56].
Formado o Estado, ele pode transformar-se ou restaurar-se após deixar de
existir. Nesses momentos cruciais é que se faz identificável o poder
constituinte material, pois é o causador das mudanças profundas o suficiente
para derrubar a ordem constitucional vigente e traz a necessidade de uma nova
constituição para a consubstanciação do Estado. O poder constituinte se faz presente, portanto, nos
momentos de formação ou de transição do Estado [57]; é o poder
que causa a instabilidade na ordem social a fim de criar uma nova forma de
convivência, impõe novos valores a serem seguidos e determina a necessidade
de uma nova ordem jurídica a fim de objetivar esse novo modo de relação
social. Assim, Jorge Miranda mostra como é estreita a relação
entre poder constituinte e revolução. A revolução é um elemento formador
do direito que tem como resultado a substituição da ordem jurídica vigente
(e, portanto, da sua Constituição) e afirma os novos valores que se deseja
implementar. Tais valores podem não ser suficientemente valiosos no
plano do Direito natural, e a legitimidade que inspiram pode revelar-se
precária; no entanto, são eles, e só eles, que justificam a viragem
política institucional e que imprimem um cunho próprio à Constituição a
redigir de seguida. (...) Sob este ângulo, configura-se indiferente que o
autor da revolução seja um governante em funções, um titular de um órgão
do poder constituído usurpando o poder constituinte – é o que se chama golpe
de Estado; ou que seja um grupo ou movimento vindo de fora dos poderes
constituídos – insurreição ou revolução stricto sensu
[58]. Daí a afirmação de Paulo Bonavides referindo-se às
revoluções do final do século XVII: "A teoria do poder constituinte
teve para a concepção revolucionária a mesma forma que a doutrina da
soberania para a implantação das realezas absolutas" [59].
Pois o detentor do poder constituinte é quem decide sobre a organização do
Estado e seus valores, sem subordinar-se a nada. Outra questão que surge é saber se o poder constituinte
sofre algum tipo de limitação. Em se tratando de poder constituinte formal,
a limitação existe tanto pela elaboração documentos prévios (que não
possuem caráter vinculador nas constituições ocidentais, mas possuíam esse
caráter nos Estados de tendência marxista) [60] quanto da idéia
de direito proveniente do poder constituinte material [61]. Assim, Jorge Miranda identifica três limites materiais ao
poder constituinte: a) transcendente – dirigi-se ao poder constituinte
material ("provém de imperativos de Direito natural, de valores éticos
superiores, de uma consciência jurídica coletiva (conforme se
entender)"); b) imanente – dirigi-se ao poder constituinte
formal ("são os limites ligados à configuração do Estado à luz do
poder constituinte material ou à própria identidade do Estado de que cada
Constituição representa apenas um momento da marcha histórica"); c) heterônomo – pode limitar tanto o poder
constituinte material quanto o formal ("Limite heterônomo de Direito
internacional não são senão os que correspondem a limitações do
conteúdo da Constituição por virtude de deveres assumidos pelo Estado para
com outro ou outros Estados ou para com a comunidade internacional no seu
conjunto. (...) Quanto aos limites heterônomos do Direito interno são
tipicamente os limites recíprocos, em união federativa, entre poder
constituinte federal e poderes constituintes dos Estados Federados")
[62]. Assim como no caso da soberania, para Carl Schmitt o poder
constituinte é um poder de fato e, por isso, identificável. Nesse sentido,
adota a mesma linha argumentativa que já foi exposta, afirmado que o poder
constituinte é aquele que determina as bases da constituição. Mas amplia
essa idéia e aduz que, como o poder de dispor sobre a constituição pertence
ao detentor do poder constituinte, as questões constitucionais cruciais que
podem alterar a essência da Constituição vigente devem ser decididas pelo
titular desse poder de determinação das bases do ordenamento. Por isso,
segundo ele, uma vez editada a constituição, o poder constituinte não
desaparece. Ele permanece ativo para resolver esses conflitos [63]. Coerente com a sua preocupação de identificar
empiricamente aquele que exerce um poder, extraindo desse fato todos os
aspectos relevantes para o estudo do direito constitucional, Schmitt admite
que o poder constituinte é exercido por aquele que tem o poder para
determinar uma nova constituição para o Estado. Assim, o poder constituinte
pertence ao rei numa monarquia (ou, mais especificamente, à dinastia), o que
dá à constituição uma legitimidade dinástica, caso a autoridade e a
força que permitem essa decisão sejam reconhecidas. Já na democracia o
poder constituinte pertence ao povo e a constituição possui uma legitimidade
democrática. No entanto, nada impede que, numa revolução ou num golpe de
Estado esse poder seja subtraído. Eis, então, o que Carl Schmitt compreende por poder
constituinte: Poder constituinte é a vontade política cuja força ou
autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre modo e
forma da própria existência política, determinando assim a existência
da unidade política como um todo. Das decisões dessa vontade deriva a
validez de toda ulterior regulação legal-constitucional. As decisões. ..
são qualitativamente distintas das normatizações legais-constitucionais
estabelecidas sobre sua base. (...) O poder constituinte é vontade política:
Ser político concreto [64]. De acordo com o critério de formalização do direito de
modo a permitir a criação de um objeto próprio da ciência jurídica,
Kelsen ignora os fatores políticos, sociológicos e ideológicos que dão o
conteúdo material da norma jurídica. Uma norma não é válida porque seu
conteúdo é algo bom em si mesmo. A validade da norma decorre do fato de ela
ser criada de acordo com o que determina uma norma superior. Em outras
palavras, a validade de uma norma é dada por uma outra norma hierarquicamente
superior. O ordenamento jurídico é composto por conjunto de normas
escalonado hierarquicamente, de modo que uma norma é válida se não
contraria o disposto na norma superior. Porém, uma busca pelo fundamento de validade de uma
determinada norma pode levar a alguns problemas. A norma que está no topo da
cadeia hierárquica e que, portanto, dá o fundamento de validade de todas as
demais normas do ordenamento, é a constituição. Mas, se a constituição
também é uma norma, fica a questão de se saber qual é o seu fundamento de
validade. Segundo Kelsen, o fundamento de validade da constituição é a
constituição que a precede historicamente e assim sucessivamente até que se
chegue à primeira constituição histórica. Essa primeira constituição
histórica é aquela que foi elaborada num momento de ruptura institucional;
é realmente a primeira constituição que dá forma ao Estado ou é a
constituição que não possui qualquer vínculo jurídico com a anterior.
Contudo, também a primeira constituição histórica é uma norma que
necessita de um fundamento de validade. Nesse momento, o jurista austríaco se
depara com duas possibilidades que levariam à incoerência do seu
raciocínio: a) continuar imaginando normas que dêem o fundamento de
validade umas das outras a partir da primeira constituição histórica (isso
levaria a um regresso ao infinito, o que, por argumento ao absurdo,
demonstraria a inexistência de um fundamento de validade da ordem jurídica); b) admitir que o direito provém de um ato de decisão
daquele que detém o poder para impor os fundamentos da ordem jurídica (teria
de reconhecer o poder constituinte originário e, para explicar o fundamento
de validade da primeira constituição histórica, teria de colocar esse poder
como objeto da ciência jurídica, contrariando seu critério de pureza
metodológica). Kelsen elabora uma terceira saída. Cria, como fundamento
de validade último do ordenamento jurídico, uma norma que deve ser
pressuposta, sem qualquer conteúdo material e que não faz parte do
ordenamento, mas que apenas diz que a ordem jurídica deve ser regulada de
acordo com o que é determinado pela primeira constituição histórica. É a
chamada norma fundamental, que permite o corte epistemológico para o
conhecimento puro do direito. A passagem seguinte, apesar de longa, mostra com
nitidez o raciocínio kelseniano: Se por Constituição de uma comunidade se entende a
norma ou as normas que determinam como, isto é, por que órgãos e através
de que processos – através de uma criação consciente do Direito,
especialmente o processo legislativo ou através do costume – devem ser
produzidas as normas gerais da ordem jurídica que constitui a comunidade, a
norma fundamental é aquela norma pressuposta quando o costume, através do
qual a Constituição surgiu, ou quando o ato constituinte (produtor da
Constituição) posto conscientemente por determinados indivíduos são
objetivamente interpretados como fatos produtores de normas; quando – no
último caso – o indivíduo ou assembléia de indivíduos que instituíram
a Constituição sobre a qual a ordem jurídica assenta são considerados
como autoridade legislativa. (...) Ela própria (a norma fundamental)
não é uma norma posta, posta pelo costume ou pelo ato de um órgão
jurídico, não é uma norma positiva, mas uma norma pressuposta, na medida
em que a instância constituinte é considerada como a mais elevada
autoridade e por isso não pode ser havida como recebendo o poder
constituinte através de uma outra norma, posta por uma autoridade superior
[65]. Fica claro que Kelsen reconhece a existência de um poder
constituinte que não está subordinado a qualquer norma jurídica e que é o
responsável pela criação da constituição de ruptura, que dá as bases do
ordenamento jurídico, mas que, por se tratar de um fator real de poder, não
pode ser objeto de estudo de uma ciência jurídica no seu sentido mais
estrito. II.e) Rápida visão sobre a problemática da Constituição Européia. O processo de integração dos Estados que compõem a
União Européia traz questões intrigantes para a discussão presente, pois
põe em xeque tanto a noção de soberania quanto a idéia de poder
constituinte. Se, por um lado, o processo de integração aproxima cada
vez mais os Estados-membros de forma a criar uma situação de fato que torne
cada vez mais difícil (até mesmo quase impossível) a dissociação da
comunidade européia ou mesmo uma saída isolada de algum membro (em que pese
algumas ameaças recentes advindas dos processos eletivos da França e da
Áustria – claramente relacionadas a discursos políticos de extrema direta)
e cria uma independência ao ponto de o Tribunal de Justiça das Comunidades
Européias afirmar um direito constitucional europeu impondo o princípio da
prevalência do direito comunitário sobre o direito interno [66], por outro,
a União Européia é fruto de tratados que determinam competências de
atuação da União, mais não transfere a totalidade dos poderes de decisão
e afirma o princípio da identidade constitucional dos Estados-membros, que
não pode ser vulnerada [67]. Esta questão é que tem causado perplexidade à
teoria da constituição vigente. Daí a precisa colocação de Francisco Lucas Pires: O Estado continua, de resto, a manter, porém, uma
disciplina de condições estritas sob qualquer ato de transferência de
soberania, a saber
: o objeto de transferência é o exercício, não a
titularidade do poder soberano; a transferência tem apenas um objetivo
limitado e determinado de maneira expressa, para lá da qual não pode ser
exercida; é suposto que pode ser revogada.
A verdade, porém, é que estas condições, mesmo quando formalmente respeitadas, são largamente ilusórias, chocam-se com a dinâmica de crescimento dos ‘poderes implícitos’ e de formas de apropriação da competência (art. 235° do TUE, por exemplo) por parte das organizações supranacionais. Tanto a competência específica uma vez delegada como aquelas outras criadas em nome de necessidades funcionais da própria organização em causa, acabam por escapar, por exemplo, ao controlo de qualquer autoridade ou Tribunal Constitucional nacional. Daí a sensação de impotência e incompletude [68].
Segundo o mesmo autor, essa situação de fato da imposição do direito comunitário sobre as ordens jurídicas nacionais (ainda que respeitado o princípio da identidade nacional) deve-se mais ao medo de que a Comunidade Européia desintegre-se do que à certeza de uma tratamento igualitário na imposição desse direito comunitário sobre os Estados ou a uma possibilidade de interpretação textual dos tratados referentes à integração [69].
Essa atitude de integração e de afirmação do direito comunitário europeu por parte do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, bem como a existência de normas de caráter intrinsecamente constitucional (normas relativas a direitos fundamentais e organização do aparato burocrático da União Européia, além de garantir uma certa divisão de poderes) permite que os constitucionalistas europeus falem de existência de uma constituição européia ou, ao menos, pugnem por uma.
Não só a idéia de direitos fundamentais está presente no Tratado da União Européia, mas também exigência de que só Estados democráticos possam participar desse processo de integração, além de exaltar os valores da paz e do desenvolvimento [70].
No entanto, essa identificação de uma constituição européia a partir da existência de normas de conteúdo constitucional material e da sua afirmação jurisprudencial gera o que a doutrina tem chamado de "défice democrático da União Européia" [71]. O principal órgão da União continua sendo o Conselho (apesar das crescentes atribuições e competências do Parlamento Europeu, até mesmo como um meio de amenizar esse défice democrático), que é composto por membros indicados pelos Estados e, apesar de ser um órgão tipicamente executivo, concentra competências legislativas importantes. Essa situação faz com que as decisões mais importantes no que diz respeito à União Européia não sofra o controle direto das populações dos Estados (ou dos "povos europeus"). Apesar disso, o próprio Tratado da União Européia fala de uma "cidadania européia", o que deveria implicar numa possibilidade maior de controle e exercício das decisões tomadas e de uma participação efetiva e mais direta na produção normativa.
Principalmente no que tange à construção do direito constitucional europeu, não há uma participação próxima efetiva das populações dos Estados, não há, por assim dizer, a identificação de um poder constituinte, o que gera a impressão de uma União Européia tecnocrática.
Abstração feita de as Constituições também poderem ser estabelecidas por Tratados bilaterais ou multilaterais e haver exemplos históricos disso mesmo, onde essa debilidade da ‘construção’ comunitária apareceria em toda a sua nudez seria quando se lembra que os Tratados fundadores continuam a ser, para lá de todas as construções doutrinárias ou jurisprudenciais, meras convenções de direito internacional público. No lugar do sumo poder que é o poder constituinte, temos convenções retalhadas como um puzzle pelo requerimento da unanimidade [72].
A partir da identificação desse défice democrático é que a doutrina, para legitimar a constituição européia, busca argumentar a existência de um povo europeu e de valores fundamentais compartilhados por todos os povos da Europa (o próprio Tratado da União Européia faz alusão às "tradições constitucionais comuns").
Sobre o compartilhamento de valores e tradições constitucionais comuns é bastante ilustrativa a seguinte passagem de Peter Häberle:
Resumindo: legisladores, jurisprudência constitucional e ciência jurídica (constitucional) constituem na Europa um substrato jurídico comum indissociável que contém elementos do tipo ‘Estado constitucional’, quer dizer, antes de tudo respeito à dignidade humana, democracia pluralista, direitos humanos e liberdades fundamentais, Estado de Direito (império da lei), justiça social, autogestão administrativa em nível municipal, subsidiariedade, tolerância e proteção de minorias,, regionalismo e federalismo. Quanto maiores sejam as variantes das formas particulares e maior o grau de diferenciação e abstração ou, no caso, de concreção dos princípios, tanto mais variadas serão as formas as quais se ponha em evidência a remição ao ‘legado comum’ e aos valores ‘ético-espirituais’, passando pelos princípios gerais de Direito contidos em cada uma das Constituições até alcançar os standards europeus, a homogeneidade conceitual e a categoria de ‘Estado europeu constitucional’ [73].
Já a busca de um povo europeu estaria centrada em verificar uma existência de identidade dentro da diversidade cultural, lingüística e histórica dos povos que compõem a Europa.
Nesse sentido, de grande importância a posição de Peter Häberle buscando um identidade do povo europeu no reconhecimento de uma cultura (abrangendo manifestações culturais universalizáveis tais como a arte e a ciência, bem como um direito comum, principalmente no que tange ao direito civil e ao direito constitucional) construída em conjunto e compartilhada por toda a Europa [74].
Frise-se, no entanto, que, apesar do reconhecimento da necessidade de se identificar um povo europeu (de forma que os diversos povos se identifiquem como um povo: o europeu), Francisco Lucas Pires não só nega a necessidade de um poder constituinte para uma constituição européia como afirma ser esse um défice benéfico:
Ao contrário da condenação do déficite democrático, os de estadualidade e poder constituinte como que poderiam ser ‘santificados’, ou, pelo menos, ‘beatificados’. Se falta ainda enlaçar mais completamente o Direito Comunitário e a Democracia, também é verdade que quanto mais ambos prescindissem do poder da estadualidade e o seu acúmem de ‘poder’ constituinte mais caminhariam pelo seu próprio pé [75].