Introdução.
Atualmente o conceito clássico de soberania tem sofrido fortes ataques tanto das modernas teorias políticas e jurídicas quanto da jurisprudência ao ter de resolver demandas que versem sobre direito internacional. Fala-se em fim da soberania ou de um conceito flexível, de modo a permitir que a doutrina utilize o conceito sem, no entanto, compreendê-la como poder absoluto.
Essa discussão acerca do que é a soberania nada mais é do que reflexo da crise do Estado, ou seja, conseqüência da mudança que se operou na forma de se compreender o Estado do modo como surgiu na modernidade a partir do Absolutismo e o surgimento do modelo comunitário de organização social (fruto da globalização e que tem na União Européia o seu exemplo mais claro e instigante).
O conceito clássico de soberania surge exatamente no momento de afirmação do Estado Nacional e permanece com ele sem grandes alterações, compreendido, inclusive, como corolário do exercício do poder estatal. Nada mais natural, portanto, que no momento em que o Estado (da maneira como é entendido na modernidade) passe por uma crise – ao ponto de se falar abertamente no seu fim – o conceito de soberania também se veja ameaçado.
No entanto, apesar das considerações acima, a idéia de soberania não pode ser descartada (assim como a de Estado) sem graves conseqüências para a idéia de democracia e sem afetar drasticamente as relações de poder que ocorrem na sociedade. Ao se entender a globalização como conseqüência de um retorno ao modelo econômico liberal, o que parece ocorrer a princípio é a transferência do poder do Estado para os detentores do poder econômico. Não só retorna a idéia de Estado mínimo como o Estado, como fenômeno jurídico, deixa de ser necessário, pois as relações de mercado são cada vez mais internacionalizadas, em escala global.
Juntamente com o desaparecimento das fronteiras de mercado, a internacionalização das relações comerciais e a avançada tecnologia de informação possibilitam que também se desfaçam as fronteiras culturais e jurídicas (os sistemas normativos precisam regular condutas e relações que se dão em locais muito mais amplos que as fronteira geográficas dos Estados).
Esses fatores fazem com que, no plano das relações reguladas no âmbito do direito internacional público, aqueles Estados econômica, tecnológica e belicamente mais fortes possam se impor perante as demais para defender seus interesses, que são geralmente ditados por grandes conglomerados econômicos. A internacionalização do mercado e das culturas é utilizada como desculpa para que um Estado se veja limitado no modo de regular seu modo de vida interno. Cresce a idéia de que o direito interno deve ser subordinado ao direito internacional. A idéia de soberania como conceito flexível é utilizado como mecanismo retórico para imposições advindas da "comunidade internacional". Nesse sentido, é de grande importância uma defesa do conceito de soberania como forma de se combater, juridicamente, uma imposição da força.
Assim, este trabalho busca fazer uma análise das questões acima suscitadas e mostrar a importância de manter o conceito de soberania como algo relevante e que deve ser mantido como ferramenta retórica de defesa para Estados com menor poder de barganha no cenário internacional e mesmo como parte da manutenção da democracia intra e inter-estatal.
Para isso, seguir-se-á o seguinte roteiro: retomada da discussão sobre soberania entendida à maneira clássica (para isso serão expostos os conceitos de Jean Bobin, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau); exposição dos conceitos de soberania trabalhados por dois dos maiores constitucionalistas do século XX (Carl Schmitt e Hans Kelsen); breve discussão acerca da noção de poder constituinte originário; exposição sumária do que é democracia na modernidade e equiparação das noções de soberania e democracia como mecanismos de manutenção da independência dos povos.
De todo modo, o objetivo último desse ensaio é ressaltar a importância de se manter forte a noção de soberania como forma de proteção dos Estados com menor capacidade de negociação com as chamadas grandes potências e de modo a se evitar uma hegemonia no cenário internacional. Porém, pelas limitações deste trabalho, o aprofundamento das questões levantadas deverá ficar para um segundo momento.
I) As Diversas Concepções de Soberania.
I.a) Os conceitos clássicos de soberania: Bodin, Hobbes e Rousseau.
I.a.1) O conceito de soberania de Jean Bodin.
"Soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma
nação" [01]. Esta é a maneira que Bodin começa a discutir
a soberania e é o conceito central para desenvolver suas reflexões sobre o
poder soberano. Por perpétuo deve-se entender que o poder é exercido por
toda a vida daquele que o detém. No caso de uma democracia ou de uma
aristocracia, ele, o poder, perdura indefinidamente. No caso de um monarca,
este o detém durante toda a sua vida. Assim, não é soberano aquele que recebe o poder, ainda
que absoluto, por um determinado período de tempo. Ele é apenas um
mandatário, um representante daquele que realmente detém o poder soberano e
recuperará o poder absoluto assim que o prazo para o exercício do poder se
extinguir. Se há um período de tempo é porque o poder é limitado e
voltará para aquele que determinou o prazo. Ilustrativa é a seguinte passagem de Bodin: O que diríamos de alguém que recebe poder absoluto do
povo por todo tempo de sua vida? Aqui há que ter uma distinção. Se o poder
absoluto é dado a ele puro e simples não sendo do tipo de um magistrado ou
de um comissário e não na forma de um consentimento precário, então ele
certamente é, e tem o direito de se denominar, um monarca soberano. Pois,
aqui, o povo desempossou-se e despiu-se de seu soberano poder para colocar o
monarca na sua posse e cobri-lo com ele. O povo transferiu todo o seu poder,
autoridade, prerrogativas e direitos soberanos ao monarca e colocou-o nele, do
mesmo modo como alguém abre mão de sua posse ou propriedade de algo que lhe
pertence. (...) Mas se o povo concede seu poder a alguém pelo período de sua
vida na condição de administrador, líder, ou apenas para livrar-se do
exercício do seu poder, então ele não é um soberano, mas um simples
administrador, líder, regente, governante, ou guardião e procurador de poder
de outrem [02]. Assim, não basta que aquele que exerça o poder o faça
por toda a sua vida. O soberano é o legítimo proprietário do poder, não
deve prestar contas a ninguém, ele o detém de maneira originária, sem
qualquer condição. Já por absoluto deve-se entender que o soberano não
reconhece ninguém que lhe seja superior, com a exceção de Deus, a quem ele
deve reverência. Não há nada que, a princípio, limite o poder do soberano,
ele não deve obediência a nada a não ser às leis divinas e naturais. Todo
esse poder significa que o soberano é a autoridade máxima a ser obedecida.
Não está subordinado, assim, a nenhuma lei que tenha origem humana, nem
mesmo às leis costumeiras de sua nação. Não está sujeito nem mesmo às
leis de seus predecessores, que podem ser alteradas a qualquer momento. Isso implica que, para Bodin, a soberania resulta do poder
de impor e anular a lei [03]. Se alguém tem esse poder, de maneira
perpétua, então é soberano. Nas palavras do jurista: "Nós então
vemos que o ponto central da majestade soberana e absoluto poder consiste em
dar a lei aos súditos em geral sem os seus consentimentos" [04]. Mas Bodin admite determinadas restrições do poder
soberano, que não somente as lei de Deus. Primeiro, o soberano tem de agir de
acordo com o interesse público. Ele claramente diferencia entre o que é
patrimônio do rei e o que é patrimônio da nação, que deve ser gerido no
seu interesse. Além disso, o soberano está vinculado ao que é justo. Se,
por exemplo, uma lei de seu antecessor ou um costume for justa, só podem ser
alteradas se houver algum benefício à comunidade. O soberano também não
pode usurpar a propriedade privada. Só pode retirar a propriedade de alguém
por motivos justos e deve pagar a devida indenização ou negociação
[05]. Outra limitação é a referente aos contratos realizados
pelo soberano. Estes devem sempre ser cumpridos, a não ser que sejam
injustos. Não faz diferença, segundo o jurista francês, se o contrato é
feito com um súdito ou com um estrangeiro (Bodin chega a dizer que a
obrigatoriedade da cumprimento do contrato se baseia numa "eqüidade
natural") [06]. I.a.2) O conceito de soberania em Hobbes A principal coisa que se tem de observar na doutrina de
Hobbes é que, para ele, o homem é movido pela razão e pelas paixões, mas
estas muitas vezes suplantam aquela no momento da escolha dos atos, o que gera
insegurança no convívio social, pois cada um tende a buscar seus interesses
próprios ou a satisfazer as suas paixões. Isso faz com que os indivíduos
deixem de observar as leis naturais (que são dadas por Deus) ou que se tornem
incapazes de reconhecê-las. Já as leis naturais são, segundo esse teórico
do absolutismo inglês, as leis morais que todo ser humano deve seguir (como
justiça, eqüidade, caridade, etc.). Esclarecidas essas idéias, fica mais evidente o conceito
de soberania de Thomas Hobbes. Segundo ele, o homem, antes da formação de um
Estado, vive num estado de natureza, que se caracteriza pela luta de todos
contra todos, pois todos são livres para fazerem o que bem entenderem. Nesse
sentido, tudo pertence a todos, pois o único modo de garantir a propriedade
privada é pelo emprego da força individual ou pela reunião de alguns
indivíduos. Num determinado momento um grupo de homens (o suficiente
para se proteger contra ataques externos) pode compreender que, para que
possam viver com maior segurança, devem se abster de suas liberdades
naturais. Precisam transferir o poder de decidir sobre suas vidas a alguém,
para que todos convivam sob as mesmas regras e se unam para defenderem-se
contra os mesmo inimigos externos comuns. É o pacto social. O objetivo
principal dessas regras gerais é proteger a vida. Veja-se o que diz Norberto
Bobbio: A justiça é ordem. Esta teoria surge do fato de
considerar como fim último do direito a paz social. Ela sustenta que a
exigência fundamental segundo a qual os homens criaram o ordenamento
jurídico é de sair do estado de anarquia e de guerra, no qual viveram no
estado de natureza. O direito é remédio primeiro e fundamental contra os
males que derivam do bellum ommium contra omnes. E esse realizou o seu
fim quando, por meio de um poder central capaz de emanar normas coercitivas
para todos os associados, é estabelecida uma ordem social, qualquer que seja
essa. O direito natural fundamental que essa teoria deseja salvaguardar é o direito
à vida. O direito como ordem é o meio que os homens no decorrer da
civilização, encontram para garantir a segurança da vida. Um exemplo
característico dessa concepção de justiça encontra-se na filosofia
política de Hobbes [07]. O homem (ou assembléia de homens) que recebe o poder da
comunidade para garantir a paz e a estabilidade política, simboliza a união
de todos. O pacto é no sentido de que cada um se destitua de seu poder de
auto-governança, com a condição de que os outros também o façam,
autorizando todas as ações daquele que recebe esses poderes: forma-se o
Estado. Todos devem submeter suas vontades à vontade do
representante e suas decisões à sua decisão. Isto é mais do que
consentimento ou concórdia, pois resume-se numa verdadeira unidade de todos
eles, numa só e mesma pessoa, realizada pelo pacto de cada homem com todos os
homens, de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: ‘Cedo e
transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou a esta
assembléia de homens, com a condição de que transfira a ele teu direito,
autorizando de maneira semelhante todas as suas ações’. Feito isso, à
multidão assim unida numa só pessoa chama-se Estado, em latim civitas
[08]. Eis, de acordo com o teórico inglês, a essência do
Estado: Uma grande multidão institui a uma pessoa, mediante pactos
recíprocos uns com os outros, para em nome de cada um como autora, poder usar
a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para
assegurar a paz e a defesa comum [09]. Nesse sentido, aquele que recebe o direito de representar a
pessoa que essa multidão instituiu (o Estado) é o soberano e seu poder é
absoluto, pois ele tem o dever de fazer de tudo para garantir a paz, a vida e
a segurança dos demais, que são seus súditos. Num Estado instituído, o pacto, então, é o seguinte: a
multidão, no intuito de dar um fim à guerra de todos contra todos, se une e
escolhe alguém para ser o representante do Estado que seus integrantes estão
formando. Para isso, alienam-se de todas as suas liberdades e seus poderes em
benefício do representante (a quem pertencerá o poder soberano), que em
troca deverá assegurar-lhes segurança e proteção contra seus inimigos
comuns. Uma vez realizado esse pacto, os súditos não podem mais desfazê-lo,
pois, como o soberano não participou do pacto, não pode quebrá-lo [10]. Hobbes é um dos primeiros teóricos a fundamentar o poder
sem necessitar de argumentos divinos. O poder do soberano não provém de
Deus, mas sim do pacto realizado pelos seus súditos. É, pois, um dos
primeiros autores da corrente do contratualismo. Mas, de qualquer forma, o
poder do soberano está sempre submetido às leis divinas. O rei (ou a
assembléia soberana), não poder ir contra os mandamentos divinos. Muito interessante a observação de Marcelo Alves sobre o
contrato hobbesiano: O contrato hobbesiano rompe, assim, com o contrato
medieval. Este distinguia entre um Contrato Social (pactum societatis)
e um Político (pactum subiectionis), no qual o primeiro fundava a
sociedade e o segundo instituía o Estado, ou melhor, a relação entre povo e
príncipe. Na tese de Hobbes, povo e Estado imergem do mesmo acordo, são
univitelinos [11]. Conquanto Hobbes admita que um súdito, ao realizar o pacto
social, está sujeito a um poder ilimitado e ao arbítrio daquele que detém
esse poder (a possibilidade de submissão às suas paixões), essa sujeição
perde a relevância quando se tem em mente o horror da desordem e da guerra
civil, condições que cabe ao poder soberano evitar. De acordo com a doutrina hobbesiana, ao se instituir um
Estado as ações do soberano são as ações de todo corpo político e, por
conseguinte, a ação de cada súdito; isso em razão do pacto pelo súdito
celebrado, que transfere, juntamente com os demais indivíduos, o seu poder de
se autogovernar para aquele que passa a representar o Estado. Assim, não há
como o súdito reclamar das ações do soberano, pois estará apenas
reclamando de suas próprias ações [12]. Há, contudo, além do pacto que institui o Estado, outra
forma de se adquirir o poder soberano: por meio da força (o que Hobbes chama
de Estado por aquisição). Os outros povos, que são vencidos na guerra,
podem se tornar súditos do soberano vencedor. Isso se, em virtude da
condição que tem o soberano vencedor de garantir a segurança e a vida dos
vencidos, for realizado um pacto no qual o súdito declara sua fidelidade ao
soberano em troca da proteção e o soberano garante a proteção. Há,
portanto, um pacto. No entanto, diferentemente do anterior, o pacto é feito
com o soberano e não apenas entre os súditos. Entretanto, se esse pacto não for realizado entre vencedor
e vencido, não há obrigações recíprocas. Assim, um escravo não tem
qualquer dever para com aquele que o mantém cativo, e pode se virar contra
ele para defender sua liberdade. Para garantir a segurança, a estabilidade e a paz, o poder
soberano não pode ser dividido (pois existiriam controvérsias a respeito de
como exercitar o poder), não pode ser retirado (uma vez realizado o pacto,
este não pode ser desfeito legitimamente) e não pode ter limite, pois cabe
ao soberano decidir o que é melhor para o Estado que representa e não pode,
por isso, estar sujeito às leis, para poder revogá-las quando achar
conveniente. Também o poder religioso tem de estar nas mãos do soberano,
para que não haja dúvidas sobre a quem se deve obedecer: ao clero ou ao
soberano. De acordo com a doutrina de Hobbes, o súdito não tem o
direito de se opor ao soberano, a não ser para defender a própria vida (e,
neste caso, até mesmo se foi julgado legitimamente). Também os súditos não
têm o direito de se unir para defenderem alguém que esteja com sua vida
ameaçada, a não ser que as deles também estejam. No entanto, se algum dos
associados tiver sua vida garantida pelo soberano, sua participação na
união deixa de ser legítima [13]. Para finalizar, deve ficar claro que o dever de segurança
não é apenas o de preservação, mas sim o de garantir uma vida digna: Não entendemos aqui, por segurança, uma simples
preservação, mas também todas as outras comodidades da vida, que todo
homem, por um trabalho legítimo, sem perigo ou inconveniente do Estado,
adquire para si próprio [14]. Tem o soberano, por tanto, o dever de gerar o bem-estar e
garantir o emprego. Não só, deve ainda prestar auxílio aos incapazes de
gerar seu próprio sustento. Mais adiante acrescenta Hobbes: Por um acidente inevitável, sempre que muitos homens se
tornam incapazes de se sustentar com seu trabalho, não devem ser deixados à
caridade de particulares mas ser supridos – tanto quanto as necessidades da
natureza o exigirem – pelas leis do Estado. Assim como é falta de caridade,
pois, em qualquer homem abandonar aquele que não tem forças, também o é no
soberano de um Estado expô-lo aos acasos de uma tão incerta caridade
[15]. Em resumo, o poder soberano tem de ter todas as
atribuições necessárias para a realização de seus fins, que são,
sobretudo, proteger a vida e dar segurança a seus súditos. As ações do
soberano devem sempre ser dirigidas para a consecução desses fins [16]. I.a.3) A soberania popular de Rousseau.
Como se depreende do que acima foi dito, mesmo os
defensores de um poder soberano absoluto, sem qualquer limitação, não
afirmam que esse poder é dado ao seu detentor para o que ele faça dele o que
bem entender. O poder tem uma finalidade, que pode ser chamada de uma
finalidade pública, qual seja: atender aos interesses da nação (no caso de
Hobbes, garantir a paz e a estabilidade política). No entanto, com um poder tão grande depositado em uma
única pessoa, muito difícil seria encontrar quem dele não abusasse,
imiscuindo interesse público e privado. Além disso, uma nova camada
ascendia, expandindo cada vez mais seu poderio econômico e crescendo no
cenário político. Essa camada era a burguesia. A idéia de propriedade ganha
em importância, e um novo modelo de produção se afirma. Conseqüentemente,
novos valores [17] permeiam a sociedade e o Absolutismo passa a ser
contestado com veemência. Para garantir a propriedade e as liberdades individuais é
necessário um novo direito que garanta e positive esses valores [18]
(liberdade, igualdade e propriedade, tidos como direitos naturais derivados da
razão e denominados, na história do constitucionalismo, direitos de primeira
geração) e controle do poder absoluto, para não se ficar sob o arbítrio do
príncipe, garantindo liberdade e segurança nas relações privadas
(principalmente nas comerciais). Daí a teoria do direito natural e do contratualismo de
John Locke, que dizia que o contrato social não faz sentido se não for para
garantir os direitos inseguros do estado de natureza (liberdade, igualdade e
propriedade). Segundo Locke, o indivíduo celebra o contrato social no intuito
de ver seus direitos garantidos e protegidos e o soberano é limitado ao
respeito desses direitos naturais [19]. Por outro lado, era também necessário limitar o poder
materialmente, de forma interna, em suas próprias estruturas, para que o
abuso pudesse ser ao menos limitado. Daí a teoria da separação dos poderes,
tão conhecida na obra de Montesquieu, de forma que um poder, exercendo
funções diferentes das dos outros, pudesse controlar e não concentrar todos
os atos do poder soberano numa só pessoa. Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo e magistratura o
poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade,
pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam
leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Não haverá também liberdade se o poder de julgar não
estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao
poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria
arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder
executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor [20]. Rousseau segue na esteira da garantia dos ideais liberais,
principalmente no que tange à igualdade e à liberdade, também admitindo a
proteção à propriedade como um dos fatores que leva à formação do
Estado. No entanto, o filósofo genebrino apresenta um diferencial em sua
teoria contratualista: a defesa da soberania popular, que tem como essência o
interesse público. Em linhas gerais, o contrato social formulado por Rousseau
não é muito diferente daquele descrito por Hobbes e, conseqüentemente, o
conceito de soberania é bastante próximo. Segundo Rousseau, no momento da
formação do pacto os indivíduos transferem todo o seu poder ao soberano.
Dessa forma, a soberania é, assim como para Hobbes, um poder absoluto,
inalienável e indivisível. Também não está submetida às suas próprias
leis. Mas a grande diferença está em quem as pessoas que
realizam o pacto depositam o poder. Eles transferem o poder a si mesmos, mas,
agora, não como uma soma de indivíduos, mas como um corpo uno movido pela
vontade geral. Esse corpo uno é o que Rousseau chama de "corpo
político" [21]. Rousseau supõe que o homem é levado a se unir em uma
sociedade quando as dificuldades por ele encontradas no estado de natureza
sobrepujam sua capacidade de resistência. Assim, os indivíduos, para
garantirem suas sobrevivências, realizam o pacto social alienando-se de seus
direitos do estado de natureza, sua liberdade de fazer tudo o que for
necessário para sua sobrevivência, formando o corpo político [22].
Assim ele explica o que é esse corpo: Essa pessoa pública, assim formada pela união de todas as
demais, tomava outrora o nome de Cidade, e hoje o de República
ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado
quando passivo, soberano quando ativo e Potência quando
comparado aos seus semelhantes. Quanto aos associados, eles recebem
coletivamente o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos,
enquanto participantes da atividade soberana, e súditos, enquanto
submetidos às leis do Estado" [23]. A grande dificuldade que Rousseau admite na sua obra é,
portanto, explicar como alguém pode alienar todos os seus direitos e, ainda
assim, permanecer livre. A solução está justamente na originalidade
apontada na sua teoria: o poder é transferido a todos, que devem agir como um
único corpo. E, para que esse corpo funcione é necessário que as decisões
fundamentais sejam tomadas por todos, sempre visando ao interesse geral, o que
é possível pela identificação da vontade geral. Sendo a vontade geral a
vontade que dirige à busca do interesse de todos e, portanto, é do interesse
de cada um, o cidadão não obedece senão a si mesmo, permanecendo livre,
não devendo obediência a nenhum particular. Assim: "... em vez de destruir a igualdade natural, o pacto
fundamental substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima
aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens
e, podendo ser desiguais em força ou em talento, todos se tornam iguais por
convenção e de direito [24]. Necessário esclarecer, então, o que é essa vontade
geral. A vontade geral é aquela que está de acordo com o interesse de todos,
ainda que esse interesse seja um mal [25]. Por isso satisfaz a
todos. Em oposição à vontade geral está a vontade particular, que se
refere aos interesses egoísticos de um indivíduo, de um grupo (ainda que
esse grupo seja composto pela maioria dos cidadãos) ou de uma facção. O que
caracteriza a vontade geral não é o número de votos, mas o interesse comum.
Mas, segundo Rousseau, "a vontade geral é invariavelmente reta e tende
sempre à utilidade pública; mas daí não se segue que as deliberações do
povo tenham sempre a mesma retidão" [26]. O povo pode não
encontrá-la em suas deliberações ou mesmo ser enganado. Já a vontade particular poder estar de acordo com a
vontade geral, mas isso é mera coincidência. Mas, como na maioria das vezes
a vontade particular é diferente da vontade geral, o Estado tem o poder de
coerção para forçar o súdito a cumprir as leis (que derivam da vontade
geral), pois o indivíduo pode ser tentado a agir em busca do interesse
privado, em detrimento do interesse coletivo. A soberania decorre, portanto, do respeito à vontade
geral, pois só quando o corpo político age buscando o interesse comum é que
se caracteriza o exercício do poder soberano, sem que alguém (ou alguns)
subjugue outrem. Assim como a natureza dá a cada homem poder absoluto sobre
seus membros, o pacto social dá ao corpo político poder absoluto sobre todos
os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como
ficou dito, o nome de soberania [27]. E, assim como o poder soberano, suas características e
limites decorrem de idéia de vontade geral. O poder é absoluto porque não
há nada que o limite, nem suas leis e nem mesmo a necessidade de que as leis
sejam boas. É inalienável porque se o corpo político (que é o soberano)
passa simplesmente a obedecer, então perde a qualidade de povo e deixa de
existir a soberania. Não podendo, pois, ser transferida a vontade, mas apenas
o poder, então, uma vez transferida a soberania, ela se desfaz e o que resta
é apenas a submissão [28]. A soberania é também indivisível e
seu fruto é a lei (sempre geral e abstrata). As divisões do poder são
referentes apenas ao seu exercício, à execução da lei. Essas divisões
advindas das "partes divididas" estão sempre subordinadas à
"vontade suprema" [29]. Como o limite do poder soberano decorre daquilo que se
refere à vontade geral, que são as matérias referentes ao interesse comum,
as decisões do soberano não podem onerar mais um súdito que outro. Os
limites impostos devem sempre ser iguais. Se assim não for, age como
representante de um interesse particular, perdendo sua competência para
deliberar sobre o assunto. Por fim, muito esclarecedora é a seguinte passagem de
Nicola Matteucci. Segundo ele, em Rousseau: a soberania exprime uma racionalidade substancial, ou,
melhor, exprime a moralidade, por pertencer à vontade geral que se opõe à
vontade particular, por ser a expressão direta da vontade dos cidadãos,
quando estes buscam o interesse geral e não o particular, isto é, quando
atuam moralmente e não de forma utilitarista [30]. I.b) A Soberania no Constitucionalismo do Século XX: Kelsen e Schmitt. I.b.1) O conteúdo formal da soberania em Hans Kelsen Antes de propriamente adentrar nas considerações
realizadas por Kelsen sobre o tema da soberania, algumas considerações
preliminares necessitam ser feitas. Primeiro, Kelsen escreve em um contexto no qual, dentro das
teorias jurídicas e políticas, praticamente não se discute mais a
submissão do poder político à lei, mais especificamente, ao ordenamento
jurídico. O Estado de Direito já é um fato consubstanciado historicamente.
Além dos mecanismos de contenção do poder, o que está em voga – nesse
momento das principais idéias de Kelsen – é a criação de mecanismos
jurídicos que façam o Estado agir positivamente dentro da sociedade: O
Estado Social está no seu período de afirmação como paradigma de Estado. A
idéia de soberania como poder ilimitado perde o sentido, pois, na teoria
jurídica contemporânea, já não há poder do Estado que não esteja
submetido ao ordenamento jurídico, ao império da lei, cuja maior expressão
é a constituição. Outro ponto a se destacar é o fato de que Kelsen quer
afirmar uma possibilidade de uma ciência do direito, balizada nos critérios
de pureza, isenção ideológica e objetividade determinados pela
epistemologia advinda da filosofia analítica, principalmente aquela que
decorre da filosofia praticada pelos neokantianos e pelos integrantes do
Círculo de Viena. Assim, Kelsen está preocupado em descrever o fenômeno
jurídico sem levar em consideração seus aspectos políticos, morais ou
ideológicos. Para isso trata o direito de modo apenas formal, possibilitando
uma verdadeira ciência jurídica do direito. Em outras palavras, não é sua
preocupação identificar fatores reais de poder. Decorre das considerações acima feitas que a soberania,
para Hans Kelsen, não é e não pode ser exercida por um indivíduo ou por um
grupo deles. A soberania, se for entendida como componente inerente ao poder
do Estado, então ela nada mais é que a manifestação da validade e
eficácia do ordenamento jurídico, que é aquilo que determina o modo de
exercer o poder e os seus limites. E esse ordenamento poderia ser limitado
apenas pelo direito internacional. Pensa-se no Estado como um agregado de indivíduos, um
povo, que vive dentro de certa parte delimitada da superfície da Terra, e que
está sujeito a certo poder: um Estado, um território, um povo, um poder.
(...) O poder do Estado ao qual o povo está sujeito que é a validade e a
eficácia da ordem jurídica, de cuja unidade resultam a unidade do
território e a do povo. O ‘poder’ do Estado deve ser a validade e a
eficácia da ordem jurídica nacional, caso a soberania deva ser considerada
uma qualidade desse poder porque a soberania só pode ser a qualidade de uma
ordem normativa na condição de autoridade que é a fonte de obrigações e
de direitos [31]. Assim, é clara a posição de Kelsen no sentido de que só
é possível identificar o poder soberano no ordenamento jurídico, pois
aquele que tem o poder de emitir comandos obrigatórios para todos os
cidadãos só possui esse direito de obrigar por determinação de uma ordem
jurídica que fundamenta esse seu direito [32]. Nesse sentido, juridicamente falando, o problema da
classificação das formas de governo é uma questão de identificar a quem é
dado o poder de legislar pela constituição. Assim, se a constituição
determina que uma só pessoa será o legislador, então o governo é
monárquico; se um grupo minoritário deve legislar, o governo é
aristocrático; se a maioria é a legisladora, o governo é democrático. Isso
porque "... o poder do Estado é a validade e eficácia da ordem
jurídica" [33]. Pois quem determina a organização do Estado
e quem exercerá a função legislativa é o ordenamento jurídico, sendo seu
principal instrumento a constituição. No pensamento de Kelsen, a discussão a respeito da
soberania passa, primeiramente, pela discussão da identificação de o que é
o direito internacional. Segundo o jurista austríaco, não há como negar a
existência do direito internacional, pois, além de os Estados poderem
celebrar entre si tratados (direito internacional parcial) existem normas de
caráter consuetudinário que valem para todos os Estados genericamente,
normas que os Estados não podem isoladamente determinar. Por exemplo, Kelsen
cita as normas de direito marítimo e o fato de um Estado só poder ser
reconhecido como tal pelo ordenamento internacional [34]. E mesmo o conteúdo material das normas jurídicas do
direito interno podem ser limitados ou determinados pela ordem internacional,
de forma que aquele fica limitado por este. Nas palavras de Kelsen: O Direito internacional é relevante também para a esfera
de validade da ordem jurídica nacional. Como as suas normas, especialmente as
criadas por tratados internacionais, podem regulamentar qualquer matéria e,
portanto, também as matérias regulamentadas pelo Direito nacional, ele
limita a esfera de validade material deste último. Os Estados, é verdade,
permanecem competentes, mesmo sob o direito internacional, para regulamentar
em princípio todas as matérias que podem ser regulamentadas por uma ordem
limitada na sua esfera territorial; mas eles conservam essa competência
apenas na medida em que o Direito internacional não regulamente uma matéria
específica. O fato de uma matéria ser regulamentada pelo Direito
internacional tem o efeito de que esta não pode ser regulamentada
arbitrariamente pelo direito nacional [35]. Mas não basta que a ordem internacional limite o âmbito
de atividade do ordenamento jurídico nacional para ser reconhecida como
direito. É necessário que suas normas sejam dotadas das características que
devem ter todas as normas jurídicas. Essas características são, segundo
Kelsen, pertencer a um ordenamento com poder de coerção e, conseqüentemente,
ser dotada de sanção. Para Kelsen, o que caracteriza a norma jurídica é
prever uma sanção como conseqüência de um ato indesejado (e, por isso,
proibido) que pode ser imposta por um poder externo de coerção (ou seja,
mediante o uso da força, que, nesse caso, é legitimada pelo direito)
[36]. Como a ordem jurídica internacional é extremamente
descentralizada, Kelsen afirma que ela é uma ordem jurídica primitiva, assim
como as ordens jurídicas tribais. Não há, assim, um órgão dotado de poder
de coação; apenas aquele que foi ofendido fica legitimado a impor
represálias ou fazer a guerra contra seu ofensor. É a idéia de que a guerra
só pode ser cometida se for por uma causa justa. Se não como reação a um
ilícito internacional, a guerra passa a ser um ilícito. Assim, se um Estado
comete um ilícito, o Estado ofendido tem o direito de declarar guerra ou
impor-lhe represálias. Ele (o direito internacional) possui a técnica da
iniciativa individual. O Estado, violado no seu direito, está autorizado a
agir contra o violador, lançando mão da guerra ou de represálias. Estas
são as sanções específicas providas pelo direito internacional geral
[37]. Quando assim age, o Estado ofendido funciona como um
órgão da comunidade internacional, pois só tem o direito de impor a
sanção porque legitimado pelo reconhecimento do ilícito proibido pela ordem
jurídica internacional. Mas Kelsen admite que o direito internacional pode
evoluir, criando instituições jurídicas como as dos Estados, podendo vir a
constituir uma espécie de "Estado mundial" [38]. Provada a existência do direito internacional, Kelsen
enfrenta as diversas doutrinas que o relaciona com o direito nacional. Logo
descarta a doutrina dualista (ou pluralista), pois não admite que possam
existir duas ordens jurídicas independentes e autônomas, já que, além da
ordem jurídica internacional fundamentar as esferas de validade dos
ordenamentos nacionais e poder limitar a validade material, os próprios
dualistas admitem que, uma vez aprovada internamente, o direito internacional
tem vigência para o Estado, o que demonstra que existe apenas uma ordem
jurídica geral. Só pode prevalecer, assim, a doutrina monista. Esta, no
entanto, possui duas vertentes: a que defende a primazia do direito
internacional e a que defende a primazia do direito nacional. O jurista
vienense, apesar de afirmar sua preferência política pela primeira vertente,
diz que ambas são cientificamente defensáveis. E dessas duas vertentes é
que saem as características da soberania no pensamento kelseniano. Como acima visto, Kelsen nega que um poder físico possa
ser considerado soberano. Isso porque, se assim fosse, ele teria de ser a
causa primeira da formação do ordenamento jurídico. Como, para esse
jurista, uma cadeia de causa e efeito é algo infinito, não se pode
determinar a causa primeira e a idéia de soberania como poder físico não
passa de uma ilusão, pois, se não pode haver nenhuma causa primeira, não
poderia haver soberania. Disso decorre que: O Estado na sua capacidade de autoridade jurídica deve ser
idêntico à ordem jurídica nacional. Dizer que o Estado é soberano
significa que a ordem jurídica nacional é uma ordem acima da qual não
existe nenhuma outra. A única ordem que se poderia supor como sendo superior
à ordem jurídica nacional é a ordem jurídica internacional. Assim, a
questão de saber se um Estado é soberano ou não coincide com a questão de
saber se o Direito internacional é ou não ordem superior ao Direito nacional
[39]. Nesse sentido, como Kelsen admite como cientificamente
possível defender-se as duas correntes monistas, a existência da soberania
é apenas uma hipótese decorrente da escolha de uma dessas duas teorias. Sob
a hipótese da primazia do direito internacional, a soberania só pode ser
entendida relativamente: como um ordenamento que só reconhece como superior o
internacional, nenhum outro. Ao admitir-se a primazia do direito nacional,
"... então o Estado ‘é’ soberano no sentido absoluto, original, do
termo, sendo superior a qualquer outra ordem, inclusive ao Direito
internacional" [40]. I.b.2) Carl Schmitt: soberano é aquele que exerce o poder no estado de
exceção. Carl Schmitt, contemporâneo e um dos principais
debatedores de Kelsen, se defronta com os mesmos problemas que o jurista
austríaco para discutir e afirmar um conceito de soberania. Reconhece, assim,
a afirmação do Estado de Direito e, com isso, a limitação constitucional
do exercício do poder dentro de um Estado. Aquele que tem o poder de decidir
sempre o tem em virtude da determinação imposta pelo ordenamento jurídico.
Sua tese, entretanto, é que só faz sentido falar-se em um conceito de
soberania se for possível identificar quem exerce um poder último,
irrestrito. Assim, ao contrário do caminho da formalização seguido
por Hans Kelsen, Schmitt está preocupado em identificar quem exerça um poder
soberano (no sentido de ilimitado) de fato. No seu entender, não tem sentido
falar-se no exercício de um poder se ele não for exercido de fato. Esse
exercício de fato é, segundo o juspublicista alemão, o poder de dar a
última decisão, sem ser contestado. Nessa esteira, Schmitt busca traçar uma sociologia do
conceito de soberania, que busca encontrar as equivalências entre as
estruturas das idéias prevalecentes num determinado período histórico e as
estruturas do pensamento político dessa época. Por exemplo, nos séculos
XVII e XVIII a idéia de soberania encontra a sua estrutura equivalente na
função que Deus exerce na metafísica da época (cuja base era o
racionalismo cartesiano) [41]. Para esse constitucionalista
alemão, o soberano exerce no Estado Absoluto o papel que Deus exerce no
universo. Seguindo esse raciocínio, Carl Schmitt entende que em
Bodin e Hobbes a soberania, como é o poder absoluto, está acima das leis do
Estado. É, em outras palavras, o poder último de decisão a respeito daquilo
que é o interesse do Estado. Eis aqui a principal característica da
soberania para Schmitt: ser o poder de decisão não sujeito a controle;
portanto, aquele que detém esse poder é o soberano e pode ser apontado
empiricamente. Já na teoria de Rousseau a soberania perde essa
característica e passa a ser encarada do modo que perdura até a sua época:
torna-se formal e passa-se a identificar o Estado ou o direito com a
soberania, como algo que determina o conteúdo das decisões mas não
identifica quem decide nem mesmo é fruto de uma decisão. A idéia de
soberania popular faz com que o poder soberano perca o seu caráter
decisionista, pois agora soberano – que é o povo – é um todo orgânico,
não há alguém com poder de decisão. "A unidade formada pelo povo não possui um caráter
decisionista; ela é uma unidade orgânica, e com a consciência nacional as
idéias surgem da totalidade orgânica do Estado" [42]. Mas de pouco adianta esvaziar a importância do conceito de
soberania transportando-o para o ordenamento jurídico como ordem legal que
limita o exercício do poder, pois o ordenamento jurídico, em si, não decide
nada, apenas indica como dever ser feita a decisão [43]. Isso porque:
"Até mesmo a ordem jurídica, como toda ordem, baseia-se numa decisão e
não numa norma" [44]. O estabelecimento de uma ordem jurídica é fruto
de uma decisão de quem tem o poder de dispor sobre ela. A partir dessas considerações, Schmitt identifica o
problema moderno da discussão da soberania não no conceito, mas na
identificação de quem exerce esse poder de fato ou se existe esse alguém
acima do ordenamento (tese negada pelos "formalistas"). Segundo ele,
no Estado Contemporâneo, onde o poder exercido cotidianamente é limitado por
critérios normativos e pela distribuição de funções cuja principal é a
separação dos poderes, o poder soberano só pode ser identificado num caso
emergencial, no chamado "Estado de exceção". Em geral, não se briga por causa de um conceito, pelo
menos não na história da soberania. Briga-se por causa da sua aplicação
concreta, e isto significa brigar para saber quem toma as decisões em caso de
conflito, para saber no que se constitui o interesse público ou estatal, le
salut public etc. O caso excepcional, aquele caso não circunscrito na
ordem jurídica vigente, pode ser no máximo definido como um caso de
emergência extrema, de perigo à existência do Estado ou algo assim, mas
não pode ser circunscrito numa tipificação jurídica. É só esse caso que
torna atual a questão do sujeito da soberania, isto é, a questão da
soberania em geral [45]. Não se pode definir quando ocorre o Estado de exceção ou
o que pode ser feito durante ele. Essa situação surge num caso emergencial
de perigo para a sobrevivência do Estado e a única coisa que a
constituição pode fazer é indicar quem deve agir. Esta pessoa é quem
deverá tomar as decisões e não estará sujeita a nenhum outro controle.
"Ela se situa externamente à ordem legal vigente, mas mesmo assim
pertence a ela, pois é competente para discutir sobre a suspensão total da
Constituição" [46]. Ao se identificar quem exerce esse poder último de
decisão acha-se o soberano. No Estado de exceção o direito é afastado em virtude da
proteção do Estado e a decisão não é limitada pela lei. O soberano
decide, sem qualquer controle sobre ele, o que é ou não melhor para o
Estado, e suas decisão podem ter qualquer conteúdo. Dentro desse contexto, Carl Schmitt afirma que as normas
só podem ser aplicas dentro de um contexto social normal, mantida e vivida a
estabilidade social ("Não existe norma aplicável no caos"). O
soberano é o responsável, portanto, pela manutenção dessa normalidade ou
pelo seu restabelecimento. Decide, então, em última instância sobre essa
condição de normalidade do Estado [47]. "Soberano é aquele que decide sobre o Estado de
exceção" [48]. Esse, portanto, o conceito que resume o debate sobre
soberania na teoria do Estado Contemporâneo na teoria de Carl Schmitt.