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Boa-fé objetiva: deveres acessórios e a pós-eficácia das obrigações

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14/07/2010 às 15:45

Resumo:


  • Deveres acessórios em contratos são influenciados pela boa-fé objetiva, que se estende além do cumprimento do dever principal, atuando nas fases pré e pós-contratuais, e pode envolver terceiros.

  • A boa-fé objetiva, diferenciada da boa-fé subjetiva, orienta a conduta das partes contratantes, exigindo comportamentos leais, honestos e que respeitem a confiança legítima do outro.

  • A existência de deveres acessórios e a responsabilidade pós-contratual (culpa post pactum finitum) são reconhecidas como parte do vínculo obrigacional, que é dinâmico e complexo, e podem incluir proteção a terceiros.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

6. PROTEÇÃO DE TERCEIROS

A relatividade dos contratos deixou de ser considerada como regra absoluta, já que determinados contratos compreendem, entre os seus efeitos, deveres a serem cumpridos por pessoas estranhas à sua celebração.

Arnold Wald (1994, p. 194-195) antes da vigência do Código Civil de 2002, já sinalizava que

O princípio da relatividade dos contratos, ou seja, da limitação dos seus efeitos aos contratantes, tem sofrido algumas críticas na doutrina contemporânea. Mesmo na legislação brasileira, aponta-se o caso do locatário com contrato válido contra terceiros devidamente registrado no Registro de Imóveis, contrato este que continua prevalecendo contra o credor hipotecário, por exemplo, que, executando o seu crédito, adquire o imóvel em leilão. Não é muito distinta a situação do sublocatário que, pela lei, é autorizado a purgar a mora na locação quando o locatário não paga oportunamente os aluguéis, integrando-se assim na relação locativa da qual não era parte. Surgem, assim, certos efeitos do contrato de sublocação em relação ao locador, que pode passar a ter novo locatário, independentemente de sua vontade.

Nesse sentido, Menezes Cordeiro (2007) fala da quebra do princípio segundo o qual "do convênio entre partes determinadas, não poderia advir ação alguma contra terceiros ou a seu favor".

Nos negócios jurídicos, pode-se visualizar situações que envolvem deveres dos contraentes para com terceiros – chamada eficácia protetora de terceiros, ou hipóteses em que se exige um determinado comportamento de terceiros em face do contrato.

Menezes Cordeiro (2007) lembra que a idéia do contrato com eficácia protetora de terceiros deve-se a Larenz, que defende um alargamento dos deveres acessórios de proteção a certos terceiros, na base das exigências da boa-fé.

Inúmeras são as dificuldades a serem superadas pela doutrina e jurisprudência para alcançar um tratamento adequado da eficácia protetora de terceiros, que, assim como a culpa post pactum finitum, requer a harmonização às demais normas do nosso ordenamento jurídico. Menezes Cordeiro cita importante passo dado pela Corte Alemã em decisão inovadora que reconheceu a violação de deveres acessórios relativamente a terceiro, estranho à relação contratual:

Com os seus antecedentes, a dogmática específica do contrato com eficácia protetora de terceiros arrancou com a sentença do BGH de 25-Abr.-1956. Um fornecedor entrega a uma fábrica certa máquina, sabendo, com naturalidade, que ela destinava-se a ser utilizada por terceiros. A máquina era perigosa, vindo um trabalhador a ferir-se; este, terceiro na compra e venda da máquina, acionou o fornecedor por violação de deveres contratuais que lhe assistiriam, vindo a ter êxito. Em anotação favorável, Larenz celebra o que considera mais um passo em frente no progresso dos deveres de proteção, imputando-os à boa-fé. Outro caso importante pelas reações doutrinárias que veio suscitar é o de BGH 15-Mai.1959. O R. fornecia a uma fábrica – uma empresa siderúrgica – um meio protetor de ferrugem. Durante anos entregou um produto não inflamável; sem explicações oportunas mudou, de súbito, para uma matéria combustível a qual, numa aplicação, inflamou-se, vindo uma empregada a sofrer queimaduras. Esta aciona diretamente o fornecedor do produto por violação de deveres contratuais acessórios que a protegeriam. O BGH, em nome da boa-fé, deu provimento à ação. As reações foram positivas, malgrado algumas reticências. (2007, p.620-621)

Como exemplo de contratos com eficácia em relação a terceiros podemos citar os contratos atípicos de locação de lojas em Shopping Center, nos quais é comumente inserida uma cláusula de constituição obrigatória de pessoa jurídica, que sucederá o locatário original em todos os deveres e obrigações por ele assumidas.

Cite-se também, no Direito do Trabalho, os contratos de prestação de serviços terceirizados, nos quais o inadimplemento das obrigações trabalhistas pelo empregador ensejará a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços.

O fundamento da eficácia protetora de terceiros é a boa-fé objetiva. Ao celebrarem contratos, as partes projetam certos objetivos a serem alcançados em relação a terceiros, visando a avantajar interesses de pessoas não participantes dessa relação, razão pela qual esses terceiros devem ser protegidos assim como aqueles que celebram os contratos.

Os obstáculos para a aplicação da proteção de terceiros com base na boa-fé objetiva devem ser superados com a ajuda da doutrina e jurisprudência, sinalizando os parâmetros a serem observados para a justa solução da relação negocial.


CONCLUSÃO

Encontramo-nos em fase de mudanças, cuja característica mais marcante é a valorização das cláusulas gerais de direito, com ênfase para a boa-fé objetiva. Os princípios da eticidade e da socialidade nem sempre se encaixarão sem quebras no nosso ordenamento, ao serem confrontados com as demais normas e princípios, o que exigirá dos magistrados o prudente ajuste dos processos hermenêuticos.

A nova concepção do vínculo obrigacional como relação dinâmica revela o reconhecimento dos deveres anexos de conduta, impondo às partes o dever de zelar pelo cumprimento satisfatório dos interesses da outra parte, vista agora como parceira contratual.

A boa-fé objetiva não se presta a criar deveres além daqueles esperados com a conclusão do negócio, ao revés, visa a repelir a prática de condutas contraditórias, representando um instrumento indispensável para a realização da justiça.

Por constituir um mandamento ético abstrato, a boa-fé objetiva possibilitou o desenvolvimento da eficácia protetora de terceiros, que representa um avanço ao visualizar o dever dos contratantes para com terceiros, que não são partes no contrato celebrado.


REFERÊNCIAS

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CORDEIRO, Antônio Menezes. A boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2007.

COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2008.

FIÚZA, César. Direito civil: curso completo. 9. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

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GAGLIANO, Pablo Stolze & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil – contratos: teoria geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. IV.

LARENZ, Karl. Base del negocio jurídico y cumplimiento de los contratos. Trad. C. Fernandes Rodriguez. Madri: Revista de Derecho Privado, 2002.

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REALE, Miguel. "Sentido do Novo Código Civil". In: https://www.miguelreale.com.br/artigos/rentncc.htm; site consultado no dia 29.06.2008.

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WAINSTEIN, Bernardo Julius Alves. Novo direito dos contratos. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007.

WALD, Arnold. Obrigações e contratos. 11. ed. São Paulo: RT, 1994.


Nota

1 Segundo Karl Larenz (2002, p. 211), "nos casos de destruição da relação de equivalência, a parte prejudicada, no caso de não ter realizado a prestação, pode negar-se a fazê-lo conquanto que a outra parte não consinta um adequado aumento da contraprestação que restaure a equivalência. Se se rechaça este aumento terminantemente, a parte prejudicada pode resolver ou, em caso de uma prestação de longa duração já começada, denunciar imediatamente o contrato. Se já realizou sua prestação pode, quando não se admita um adequado aumento posterior da contraprestação, reclamar uma indenização pelo importe do enriquecimento da outra parte". (tradução livre).


Abstract: The existence of accessory obligations arising from the contractual relationship only recently attracted the attention of the doctrine and jurisprudence. The display of the link as obligatory for complex and dynamic means recognizing that even fulfilled the primary duty, you can still continue the legal relationship. Under this view, good faith, adopted in the current planning also objective meaning, appear not only during the term of the contract, but also in the pre-and post-contract. The principle of relativity also suffered a re-reading, since some effects of the contracts involve obligations to be fulfilled by third parties outside its conclusion. The objective of this study is to analyze the objective good faith as a parameter that seals the contradictory behavior or harmful for the contracting parties who must act fairly and positively towards the achievement of the contract, whose duties no longer exhausted due to the end of the link negotiation

Key words: objective good faith, obligation, duty attachments, post-effective.

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Sobre a autora
Gretchen Lückeroth Novaes

Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos, advogada da Goulart e Colepicolo Advogados Associados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOVAES, Gretchen Lückeroth. Boa-fé objetiva: deveres acessórios e a pós-eficácia das obrigações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2569, 14 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/16989. Acesso em: 22 dez. 2024.

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