6. PROTEÇÃO DE TERCEIROS
A relatividade dos contratos deixou de ser considerada como regra absoluta, já que determinados contratos compreendem, entre os seus efeitos, deveres a serem cumpridos por pessoas estranhas à sua celebração.
Arnold Wald (1994, p. 194-195) antes da vigência do Código Civil de 2002, já sinalizava que
O princípio da relatividade dos contratos, ou seja, da limitação dos seus efeitos aos contratantes, tem sofrido algumas críticas na doutrina contemporânea. Mesmo na legislação brasileira, aponta-se o caso do locatário com contrato válido contra terceiros devidamente registrado no Registro de Imóveis, contrato este que continua prevalecendo contra o credor hipotecário, por exemplo, que, executando o seu crédito, adquire o imóvel em leilão. Não é muito distinta a situação do sublocatário que, pela lei, é autorizado a purgar a mora na locação quando o locatário não paga oportunamente os aluguéis, integrando-se assim na relação locativa da qual não era parte. Surgem, assim, certos efeitos do contrato de sublocação em relação ao locador, que pode passar a ter novo locatário, independentemente de sua vontade.
Nesse sentido, Menezes Cordeiro (2007) fala da quebra do princípio segundo o qual "do convênio entre partes determinadas, não poderia advir ação alguma contra terceiros ou a seu favor".
Nos negócios jurídicos, pode-se visualizar situações que envolvem deveres dos contraentes para com terceiros – chamada eficácia protetora de terceiros, ou hipóteses em que se exige um determinado comportamento de terceiros em face do contrato.
Menezes Cordeiro (2007) lembra que a idéia do contrato com eficácia protetora de terceiros deve-se a Larenz, que defende um alargamento dos deveres acessórios de proteção a certos terceiros, na base das exigências da boa-fé.
Inúmeras são as dificuldades a serem superadas pela doutrina e jurisprudência para alcançar um tratamento adequado da eficácia protetora de terceiros, que, assim como a culpa post pactum finitum, requer a harmonização às demais normas do nosso ordenamento jurídico. Menezes Cordeiro cita importante passo dado pela Corte Alemã em decisão inovadora que reconheceu a violação de deveres acessórios relativamente a terceiro, estranho à relação contratual:
Com os seus antecedentes, a dogmática específica do contrato com eficácia protetora de terceiros arrancou com a sentença do BGH de 25-Abr.-1956. Um fornecedor entrega a uma fábrica certa máquina, sabendo, com naturalidade, que ela destinava-se a ser utilizada por terceiros. A máquina era perigosa, vindo um trabalhador a ferir-se; este, terceiro na compra e venda da máquina, acionou o fornecedor por violação de deveres contratuais que lhe assistiriam, vindo a ter êxito. Em anotação favorável, Larenz celebra o que considera mais um passo em frente no progresso dos deveres de proteção, imputando-os à boa-fé. Outro caso importante pelas reações doutrinárias que veio suscitar é o de BGH 15-Mai.1959. O R. fornecia a uma fábrica – uma empresa siderúrgica – um meio protetor de ferrugem. Durante anos entregou um produto não inflamável; sem explicações oportunas mudou, de súbito, para uma matéria combustível a qual, numa aplicação, inflamou-se, vindo uma empregada a sofrer queimaduras. Esta aciona diretamente o fornecedor do produto por violação de deveres contratuais acessórios que a protegeriam. O BGH, em nome da boa-fé, deu provimento à ação. As reações foram positivas, malgrado algumas reticências. (2007, p.620-621)
Como exemplo de contratos com eficácia em relação a terceiros podemos citar os contratos atípicos de locação de lojas em Shopping Center, nos quais é comumente inserida uma cláusula de constituição obrigatória de pessoa jurídica, que sucederá o locatário original em todos os deveres e obrigações por ele assumidas.
Cite-se também, no Direito do Trabalho, os contratos de prestação de serviços terceirizados, nos quais o inadimplemento das obrigações trabalhistas pelo empregador ensejará a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços.
O fundamento da eficácia protetora de terceiros é a boa-fé objetiva. Ao celebrarem contratos, as partes projetam certos objetivos a serem alcançados em relação a terceiros, visando a avantajar interesses de pessoas não participantes dessa relação, razão pela qual esses terceiros devem ser protegidos assim como aqueles que celebram os contratos.
Os obstáculos para a aplicação da proteção de terceiros com base na boa-fé objetiva devem ser superados com a ajuda da doutrina e jurisprudência, sinalizando os parâmetros a serem observados para a justa solução da relação negocial.
CONCLUSÃO
Encontramo-nos em fase de mudanças, cuja característica mais marcante é a valorização das cláusulas gerais de direito, com ênfase para a boa-fé objetiva. Os princípios da eticidade e da socialidade nem sempre se encaixarão sem quebras no nosso ordenamento, ao serem confrontados com as demais normas e princípios, o que exigirá dos magistrados o prudente ajuste dos processos hermenêuticos.
A nova concepção do vínculo obrigacional como relação dinâmica revela o reconhecimento dos deveres anexos de conduta, impondo às partes o dever de zelar pelo cumprimento satisfatório dos interesses da outra parte, vista agora como parceira contratual.
A boa-fé objetiva não se presta a criar deveres além daqueles esperados com a conclusão do negócio, ao revés, visa a repelir a prática de condutas contraditórias, representando um instrumento indispensável para a realização da justiça.
Por constituir um mandamento ético abstrato, a boa-fé objetiva possibilitou o desenvolvimento da eficácia protetora de terceiros, que representa um avanço ao visualizar o dever dos contratantes para com terceiros, que não são partes no contrato celebrado.
REFERÊNCIAS:
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GAGLIANO, Pablo Stolze & PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil – contratos: teoria geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. IV.
LARENZ, Karl. Base del negocio jurídico y cumplimiento de los contratos. Trad. C. Fernandes Rodriguez. Madri: Revista de Derecho Privado, 2002.
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REALE, Miguel. "Sentido do Novo Código Civil". In: http://www.miguelreale.com.br/artigos/rentncc.htm; site consultado no dia 29.06.2008.
SAMPAIO, Laerte Marrone de Castro. A boa-fé objetiva na relação contratual. Cadernos de Direito Privado – Série da Escola Paulista da Magistratura. São Paulo: Manole, 2004.
WAINSTEIN, Bernardo Julius Alves. Novo direito dos contratos. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007.
WALD, Arnold. Obrigações e contratos. 11. ed. São Paulo: RT, 1994.
Notas
- Segundo Karl Larenz (2002, p. 211), "nos casos de destruição da relação de equivalência, a parte prejudicada, no caso de não ter realizado a prestação, pode negar-se a fazê-lo conquanto que a outra parte não consinta um adequado aumento da contraprestação que restaure a equivalência. Se se rechaça este aumento terminantemente, a parte prejudicada pode resolver ou, em caso de uma prestação de longa duração já começada, denunciar imediatamente o contrato. Se já realizou sua prestação pode, quando não se admita um adequado aumento posterior da contraprestação, reclamar uma indenização pelo importe do enriquecimento da outra parte". (tradução livre).