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Esboço de um possível guia prático para argumentação a partir da dialética erística de Schopenhauer

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18/07/2010 às 09:40
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Sumário: Introdução. Parte I. O tema e seus limites. Parte II. O esquema geral de Schopenhauer. Parte III. As 38 armadilhas. I. Partindo da idéia de silogismo. II. Utilizando perguntas. III. Artifícios que partem do esquema geral. IV. A ampliação indevida. V. A idéia de autoridade. VI. Explorando o que o adversário nos oferece. VII. Utilizando provas. VIII. Utilizando a raiva. IX. Utilizando a brevidade. X. A fuga. Parte IV. Recapitulando a organização das armadilhas. Conclusão. Bibliografia.


Introdução

"Revolução na sua mente você pode, você faz

Quem sabe mesmo é quem sabe mais".

Chorão, Champignon, Pelado e Negra Li

Em tom de protesto, cantava uma banda de rock brasileira. Cantavam pelos jovens, mas falavam de todas as idades. Talvez fora um desabafo pela pressão que sofrem, por uma eterna busca pelo conhecimento. Aprendem a ler, a escrever, a calcular e, quando se dão conta, estão memorizando nomes de compostos químicos e de teorias sobre a inconstitucionalidade das leis, cedendo à constante cobrança pelo saber. Cobrados pela família, por seus colegas e amigos, pelos professores, por clientes etc., tornam-se, com o passar do tempo, seus maiores cobradores. São obrigados a conhecer porque é o único jeito de lutar por um futuro melhor na sociedade. É o caminho mais seguro para satisfazer seus desejos. A forma mais sensata de se defender dos outros.

Em meio a um turbilhão de fatores que motivam uma sociedade plural e complexa, o individualismo e a competição naturalmente tomam proporções cada vez mais agressivas. Por interesses, egos, vaidades e outras tantas características, os indivíduos abandonam valores como a honestidade e a sinceridade, atraídos por satisfações imediatistas. O conhecimento, que fora utilizado para o bem comum, é desvirtuado, tornando-se uma arma, pronta para disparar em nome dos ideais individualistas.

Numa argumentação, chegar à melhor solução para uma questão é demorado e trabalhoso. Além disso, os que estão comprometidos com a verdade, com a razão, devem estar preparados para ceder, abandonar seus próprios interesses pessoais, quando necessário à justiça do debate. Mais prática e fácil, entretanto, é a solução que, embora possua riscos desastrosos em longo prazo, satisfaz imediatamente os desejos individualistas. Ao invés de chegar a uma solução comum, basta convencer os ouvintes de uma solução que seja mais adequada aos próprios interesses pessoais.

Pressupondo esse individualismo, estudaremos, nesse artigo, artifícios (ou estratagemas) argumentativos. Por meio deles, será possível conhecer formas ou maneiras de, independentemente do compromisso com a razão, vencer um debate. É como comer numa lanchonete fast-food. Mesmo sabendo que está fomentando um sistema de desperdício de alimentos, ainda que saiba que aquela não é uma boa alternativa à sua saúde, o cliente prefere a satisfação rápida e egoísta proporcionada pelos compostos químicos adicionados ao sanduíche. Artifícios argumentativos são como os compostos químicos de um sanduíche: embora tenham a capacidade de gerar soluções que ferem o bem comum, proporcionam satisfação imediata a quem os utiliza.


Parte I

O tema e seus limites

A dialética é a arte de discutir, debater, disputar, controverter etc. Aristóteles pensou a dialética como "exercício pedagógico, técnica da discussão e arte da investigação" [01]. Para os professores Vicente Keller e Cleverson L. Bastos, a dialética é "um conjunto de regras [02] que norteiam uma ação real ou mental, o que a constitui em um método de análise eficiente" [03]. Trataremos, nesse estudo, de uma dialética específica: a chamada Dialética Erística, desenvolvida pelo filósofo Arthur Schopenhauer [04].

Como veremos nos estratagemas relacionados à ampliação indevida [05], "a tese mais genérica é, também, a mais indefesa". Seria impossível tratar com razoável segurança de um tema tão amplo como a dialética. Por isso, restringimos nosso estudo a essa forma especifica de dialética, a Dialética Erística, a fim de encontrar o ponto de apoio às nossas expectativas sobre o assunto. Limitando ainda mais o tema proposto, não abordaremos a Dialética Erística em todas as suas vertentes, mas apenas em uma delas: sua utilidade prática. Como disse Umberto Eco, "recordemos este princípio fundamental: quanto mais se restringe o campo, melhor e com mais segurança se trabalha" [06].

A Dialética Erística é "a arte de discutir de modo a vencer, e isto per faz et per nefas (por meios lícitos ou ilícitos)" [07]. Sua peculiaridade é a falta de compromisso com a verdade. Ao contrário da dialética aristotélica, trata-se de uma dialética desvinculada do compromisso com a razão, ou seja, com a verdade objetiva das coisas. É, como disse o seu criador, uma esgrima intelectual. O professor não pergunta quem tem ou não razão: "dar e aparar golpes, isto é o que interessa" [08]. Nas palavras de Schopenhauer, "deve-se dissociar claramente a descoberta da verdade da arte de fazer com que a nossa proposição seja aceita como verdade" [09]. O importante é ganhar o debate, convencer o adversário, tendo ou não razão [10].

Como afirmamos, abordaremos a Dialética Erística em sua vertente prática. Primeiramente, porque ela tem vocação prática. Olavo de Carvalho ensina que "antes de tudo, ela é um guia prático" [11]. Numa segunda análise, porque a abordagem prática do assunto atribui importância à tese.

Para Claudio de Moura Castro, "uma tese deve ser original, importante e viável" [12]. Nesse caso, a importância, como já ressaltamos, está associada à grande utilidade prática do tema, já que esse estudo pode ser aplicado em qualquer diálogo: desde uma conversa informal até uma discussão acadêmica. O estudo também é viável porque tem por base obras literárias. Além disso, a bibliografia é extremamente reduzida [13] e de fácil acesso. A originalidade ou, nas palavras de Christian Laville e Jean Dionne, "a construção de um saber original ou novo" [14] está na releitura crítica que fizemos dos estudos de Schopenhauer.

Não se trata de mero resumo ou síntese dos estudos deixados pelo filosofo alemão. Reestruturamos as idéias, remodelamos explicações e preenchemos alguns espaços deixados pelo autor com novas explicações e, especialmente, com novos exemplos. Tamanha liberdade ocorreu porque notamos o caráter apresentativo do estudo. Seu próprio autor admite que ele "deve ser considerado como uma primeira tentativa" [15].

Embora nossa abordagem fora original, não ocorreram interferências exageradas ao ponto de distorcer os reais sentidos deixados pelo filósofo alemão. Ao contrário, foi necessário muito cuidado para não alterar o sentido de várias explicações dadas por Schopenhauer. Descobrimos explicações que não foram ditas, mas nos esforçamos no sentido de não alterar o sentido do que foi dito. Leciona Umberto Eco que "quando se fala em ‘descoberta’, em especial no campo humanístico, não cogitamos de intervenções revolucionárias [...] podem ser descobertas mais modestas, considerando-se resultado ‘científico’ até mesmo uma maneira nova de ler e entender um texto clássico..." [16].

Num estudo de organização bibliográfica, parte-se, geralmente, de um problema de pesquisa: o ponto de partida do estudo que se pretende realizar. A presente pesquisa é uma organização bibliográfica que visa aprimorar o estudo epistemológico de Schopenhauer. Embora tenhamos, como foi dito, acrescentado novas explicações e exemplos, a grande pretensão do trabalho é reorganizar o estudo do Filósofo Alemão. Resta saber, contudo, se essa nova organização é possível e, sobretudo, razoável. Daí o problema de pesquisa. Espera-se, com esse estudo, que essa nova organização da Dialética de Schopenhauer seja possível e razoável, o que será demonstrado se essa reorganização conferir maior facilidade à prática da Dialética Erística.

Como uma última ressalva, uma das marcas do texto do nosso estudo é a utilização da primeira pessoa do plural. Tal marca ocorreu porque entendemos a primeira pessoa do plural como entende (mais uma vez) o educador Umberto Eco: "Dizemos ‘nós’ por presumir que o que afirmamos possa ser compartilhado pelos leitores. Escrever é um ato social: escrevo para que o leitor aceite aquilo que lhe proponho" [17].


Parte II

O esquema geral de Schopenhauer

Schopenhauer tentou traçar o que chama de "suporte fundamental, o esqueleto de toda discussão" [18]. De acordo com essa idéia, pode-se reduzir qualquer discussão a esse esquema. Em suma, uma forma lógica de organizar um debate.

Primeiramente, um debate sempre parte de uma tese (ou afirmação). Por um lado, alguém sustenta a tese. Por outro lado, outro tenta derrubá-la. O próprio Schopenhauer nos adverte que a defesa é a finalidade de sua dialética erística [19], mas, como o ataque nos parece mais emocionante, abordaremos, neste estudo, o esquema na perspectiva de quem tenta derrubar a tese (perspectiva do ataque). Faremos desta forma porque entendemos que a emoção do ataque facilita o aprendizado.

Assim, surge a pergunta: como atacar a tese do adversário? Pode-se responder a essa pergunta, numa primeira análise, de dois modos: ou atacamos a tese em si mesma (a coisa ou assunto), ou atacamos o adversário que sustenta a tese.

No primeiro modo, chamado "ad rem" (à coisa), demonstramos que aquela tese não concorda com as verdades tidas como absolutas naquele debate. É claro que não há discussão sem o mínimo de acordos. Se os adversários não concordam em nada, não há a mínima possibilidade de discussão. O próprio Schopenhaeuer diz que "em toda discussão, ou argumentação em geral, é necessário que os contendores estejam de acordo em alguma coisa que se toma como ponto de partida para resolver a questão de que se trata" [20]... "não se discute com quem negue os princípios" [21]. Dessa forma, para refutar a tese, demonstra-se, nas palavras de Schopenhauer, que "a tese não está de acordo com a natureza das coisas, com a verdade objetiva" [22]. Esse é o modo de refutação mais óbvio, ou seja, simplesmente contestar o assunto. Quando alguém diz, por exemplo, que o navegante Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, pode-se refutar essa tese, comprovando que outro navegante esteve no Brasil antes dele. Quando alguém defende a pena de morte no Brasil para os chamados crimes hediondos, argumentando que esse tipo de pena inibiria sensivelmente a prática desses crimes, pode-se refutar essa tese ao mostrar, por exemplo, que os crimes hediondos não diminuíram de maneira significativa em determinado país que adotou a pena de morte, ou que a pena de morte nestes moldes seria inconciliável com os princípios da atual Constituição Brasileira etc.

No segundo modo, entretanto, não se ataca o assunto ou coisa (a tese em si), mas a pessoa do adversário. Dizemos que a tese do adversário não é coerente com as idéias reveladas por ele ao longo de sua vida ou, até mesmo, ao longo do próprio debate. Schopenhauer chama esse modo de refutar de "ad hominem" ou "ex concessis". Olavo de Carvalho comenta: "ad hominem = ‘ao homem’, isto é, a refutação se baseará no que se sabe da pessoa do interlocutor, de suas idéias, hábitos, convicções, etc... a refutação ex concessis (‘pelo que foi concedido’)... se baseia no que já foi admitido anteriormente pelo interlocutor no curso do mesmo debate" [23]. No filme "A sogra" [24], por exemplo, quando Viola Fields (a sogra de Charlie) diz que o casamento é uma união sagrada e para a vida toda etc., Charlie contesta com a pergunta: "mas a senhora não casou 4 vezes?", contestando, dessa maneira, não a tese, mas a pessoa do adversário.

Poderíamos, ainda, numa segunda análise, responder àquela pergunta (como atacar a tese do adversário?) de duas outras maneiras ou métodos. Podemos atacar os fundamentos da tese ou as consequências dela. Schopenhauer chama de refutação direta (nos fundamentos da tese) ou de refutação indireta (nas conseqüências da tese).

A refutação direta se concentra nos fundamentos. Temos, dessa forma, dois caminhos para atacar: ou negamos os fundamentos da tese, ou os aceitamos, mas negamos que aquela tese resulta deles. Alguém pode dizer, por exemplo, que as favelas geram muita violência nos grandes centros urbanos brasileiros e, portanto, deveria haver leis que proibissem a existência de favelas nesses grandes centros. Nesse exemplo, temos dois caminhos para refutar diretamente a tese. O primeiro caminho é negar os seus fundamentos de maneira direta. Podemos dizer, por exemplo, que a mera existência de favelas não é responsável pela violência dos grandes centros urbanos, mas a falta de condições dignas proporcionadas pelo estado aos cidadãos que moram nesses locais gera a violência, ou seja, a ausência do Estado seria a verdadeira responsável pela violência dos grandes centros urbanos. O segundo caminho é admitir os fundamentos, mas negar que eles gerariam aquela tese. Admitiríamos que as favelas são responsáveis por grande parte da violência dos centros urbanos, mas diríamos que o estado brasileiro não teria condições de fazer cumprir leis que determinem a retirada de favelas dos grandes centros e, portanto, a criação de leis que proibissem a existência de favelas naqueles locais (tese) não resolveria o problema.

A refutação indireta, entretanto, se concentra nas prováveis ou possíveis consequências da tese. Demonstramos a impossibilidade da tese diante das eventuais consequências que resultem dela. Teríamos, novamente, dois caminhos. No primeiro, chamado "apagoge" ("ou condução ao absurdo") [25], combinamos a tese do adversário com uma [26] proposição aceita pacificamente para retirar uma conclusão falsa dessa combinação. Afirma-se, por exemplo, que não haveria problema algum em furar (entrar na frente, em posição privilegiada) uma fila de cinema quando se estivesse atrasado. Para refutar, combinamos essa afirmação com outras duas supostamente aceitas naquele debate: a afirmação de que todos têm diretos iguais e a afirmação de que, hipoteticamente, todas as pessoas poderiam chegar atrasadas sempre com o objetivo de evitar as filas. Extraímos, então, uma conclusão absurda, que revela a falsidade da tese: Se todos têm direitos iguais e não há problema algum em furar filas de cinema quando se está atrasado, concluímos que não há problema algum se todos os espectadores de um cinema chegarem atrasados para furar a fila do cinema. No segundo caminho, chamado "instância", damos um exemplo isolado compreendido na tese genérica que a contraria, demonstrando, portanto, sua invalidade. É o chamado "exemplo do contrário" [27]. É, nas palavras de Schopenhauer, a "refutação da proposição universal mediante indicação direta dos casos particulares compreendidos em seu enunciado aos quais ela não pode se aplicar" [28]. A afirmativa "todos os ruminantes têm chifres", por exemplo, é demolida pelo único exemplo do cavalo [29]. Quando se diz que o Brasil é um país que não possui significativa relevância e influência no cenário mundial, rotulando-o como um país em desenvolvimento, pode-se refutar a afirmação ao dizer que a democracia brasileira é uma das mais desenvolvidas, que o voto eletrônico, modelo exportado aos chamados países desenvolvidos, surgiu no Brasil; pode-se afirmar que o Brasil é membro do G20 e que tem posição privilegiada na ONU, sendo, inclusive, o décimo primeiro maior doador para o orçamento daquela instituição; que o Brasil é o décimo maior consumidor de energia do planeta e o terceiro maior do hemisfério ocidental etc. Em outras palavras, podemos refutar a tese do adversário com exemplos contrários ao que ele afirma.

Olavo de Carvalho chama a atenção para a observância do grau de generalidade da tese. Este segundo caminho ("instância" ou "exemplo do contrario") depende muito da generalidade da tese. Se dissermos, por exemplo, que todos os brasileiros respeitam a lei ordinária federal n. 10.098, que estabelece uma reserva das vagas dos estacionamentos de veículos aos portadores de deficiência, apenas um "exemplo em contrário", de um único brasileiro que não respeita a reserva legal, já refuta a tese. Se retirássemos a palavra "todos", haveria uma nova tese: os brasileiros respeitam a lei ordinária n. 10.098, que estabelece uma reserva das vagas dos estacionamentos de veículos aos portadores de deficiência. Nessa nova tese não se especificou se são todos os brasileiros, ou metade, ou a maioria etc. Dessa forma, se déssemos três ou quatro exemplos de brasileiros que não respeitam essa lei, não estaríamos provando a falsidade da tese, mas somente sua relatividade [30].

Poder-se-ia, portanto, responder com um esquema geral à pergunta básica desse debate preliminar: "como atacar a tese do adversário?". Veja:

Esses modos e métodos podem ser misturados de forma aleatória. Pode-se, por exemplo, negar os fundamentos da tese (primeiro caminho do método da refutação direta) utilizando o modo "ad rem" ou o modo "ad hominem", ou utilizar uma instância (exemplo em contrário) para atacar "ad rem" ou "ad hominem" etc. Não é um esquema estanque que manda na argumentação, mas a criatividade do argumentador.


Parte III

As 38 armadilhas

As experiências cotidianas nos ensinam uma dialética espontânea. Como, na vida cotidiana, estamos constantemente debatendo, "cada um está dotado... de sua dialética natural, assim como de sua lógica natural" [31]. É dessa dialética natural que surgem os estudos dialéticos, não apenas os de Schopenhauer, mas os de Aristóteles, Platão, Hegel etc. A dialética é, nesse contexto, "simplesmente uma recapitulação e exposição, reduzida a um sistema e às regras daquela técnica inspirada pela natureza" [32].

A grande diferença entre dialética natural e as dialéticas de Schopenhauer, Aristóteles etc. é a segurança. Enquanto aquela é instintiva, estas são pensadas e testadas. "Ninguém pensa ou infere tão facilmente contra as leis da lógica: falsos juízos são freqüentes, falsos silogismos são extremamente raros" [33].

Por isso, cabe analisar, paralelamente ao esquema geral apresentado na parte anterior, os estratagemas (armadilhas, artifícios) argumentativos deixados por Schopenhauer. Trata-se de um rol de 38 armadilhas para vencer, per faz et per nefas (por meios lícitos ou ilícitos), um debate. Em sua maioria capciosos e enganadores, cada estratagema representa uma possibilidade de vencer ou, ao menos, de não sair como perdedor em uma discussão. Como ressaltamos preliminarmente, trata-se de uma "primeira tentativa" de Schopenhauer. Por isso, o rol de armadilhas não é taxativo, mas exemplificativo. Trata-se apenas de um ponto de partida para o desenvolvimento de uma dialética mais abrangente.

Atribuímos nomes a cada um dos estratagemas, embora Schopenhauer não tenha denominado nenhum deles [34]. Além disso, tomamos a liberdade de agrupá-los por afinidade, alterando, dessa forma, sua ordem de apresentação. Embora alguns dos estratagemas não se encaixem com perfeição nos grupos criados, a nova organização possibilitou maior integração e unidade ao grupo de estratagemas, facilitando a visualização prática da teoria.

I. Partindo da idéia de silogismo

Raciocinar é relacionar idéias. Um argumento é um conjunto de idéias (ou proposições) relacionadas, formando uma estrutura. Na descrição dessa estrutura usualmente utilizamos os termos "premissa" e "conclusão". Utilizando a explicação de Irving M. Copi, "a conclusão de um argumento é aquela proposição que se afirma com base nas outras proposições desse mesmo argumento, e, por sua vez, essas outras proposições que são enunciadas como prova ou razões para aceitar a conclusão são as premissas desse argumento..." [35]. Veja:

De maneira simples e didática leciona Fabio Ulhoa: "se uma idéia serve de ponto de partida para outra, se a sustenta, a fundamenta, então esse vínculo tem uma característica própria. A idéia fundamentadora, chamada premissa, implica a idéia fundamentada, e esta, denominada conclusão, decorre daquela." [36]

Irving M. Copi nos ensina que "‘premissa’ e ‘conclusão’ são termos relativos: uma única proposição pode ser premissa num argumento e conclusão em outro" [37]. Dessa maneira se formam as estruturas dos argumentos. Para afirmar uma conclusão, precisamos provar suas premissas. Quando não conseguimos a aceitação imediata de uma delas, é preciso provar as premissas dessa premissa, que, nesse momento, assume o papel de conclusão. "Será premissa quando relacionada com outra idéia nela fundamentada e será conclusão se ligada a outra que a fundamente" [38].

Dessa maneira, uma mesma idéia (ou proposição) assume diferentes papeis no mesmo argumento. Assim, "‘premissa’ e ‘conclusão’ são termos relativos, como ‘empregador’ e ‘empregado’. Um homem, tomado por si mesmo, não é empregador nem empregado, mas pode ser uma coisa ou outra em diferentes contextos: empregador para o seu jardineiro, empregado para a firma onde trabalha" [39].

Estratagema 4a: Pré-silogismos

Quando o adversário prevê a conclusão à qual queremos chegar, a elaboração dos ataques fica facilitada. Quando a conclusão é previsível, o adversário tem mais tempo e possibilidades de ataque. Deve-se, portanto, evitar previsões. Se temos dúvidas quanto à aceitação de determinadas premissas pelo adversário, podemos utilizar pré-silogismos, isto é, apresentar as premissas das premissas da nossa tese. Em outras palavras, tentamos a aceitação de afirmações que têm por conclusão uma premissa da tese. Se essas afirmações forem aceitas, a conclusão delas (a premissa da tese final) também será admitida pelo adversário. No final, se ele admitir as premissas da tese final, também admitirá a conclusão delas: a tese.

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Estratagema 4b: Premissas dispersas [40]

Como vimos no estratagema 4a (pré-silogismos), deve-se evitar previsões do adversário porque a previsibilidade aumenta a probabilidade de ataques. Uma maneira é jogar as premissas de maneira dispersa (sem ordem e confusamente) no debate. Joga-se uma de cada vez, fazendo com que o adversário admita aos poucos cada uma das premissas sem perceber (ou prever) a conclusão a que iremos chegar. Escondemos nossa conclusão final (a tese), até reunir tudo que precisamos para concluir.

Estratagema 5: Uso intencional de premissas falsas

Quando o adversário não quer aceitar as preposições verdadeiras (porque não as reconhece como verdadeiras ou simplesmente porque percebe que a tese será deduzida como consequência imediata de sua aceitação), utilizamos as falsas. Ora, se conclusões verdadeiras podem surgir a partir de premissas falsas [41], podemos utilizar premissas falsas que o oponente considera verdadeiras para chegar a uma conclusão verdadeira. Adotaremos, então, "preposições que são falsas em si mesmas mas verdadeiras ad hominem, e argumentaremos ex concessis, a partir do modo de pensar do adversário. Em outras palavras, entramos no jogo do adversário, concordando com suas opiniões, apenas para que ele admita o que queremos. Quando ele admite as afirmações (verdadeiras ou falsas) que precisamos para concluir nossa tese, utilizamos essas afirmações para concluir a tese com a aceitação dele.

Pode-se, ainda, utilizar as afirmações falsas admitidas como verdadeiras pelo adversário para refutar suas próprias teses, o que prova, no mínimo, a incongruência de sua posição [42]. "Devemos adaptar-nos a ele e usar o seu modo de pensar" [43].

Estratagema 6: Petição de princípio oculta

Utilizando a definição de André Coelho, a petição de princípio ou petitio principii é, primeiramente, "uma falácia não formal..." [44]. Falácia é um argumento dedutivo inválido. Apesar de inválido, este argumento é capaz de enganar o adversário. Uma falácia não formal [45], por sua vez, é aquela que apresenta, ainda nas palavras de André Coelho, um "defeito semântico (falácias de sentido, como no exemplo: o homem é um animal; animais são irracionais; logo, o homem é irracional – em que claramente o sentido com que se usa animal na primeira e na segunda premissa não é o mesmo) ou persuasivo (falácias de relevância, como no exemplo: João defende aumentos para os professores; mas João é um professor; logo, João está apenas falando em causa própria – em que as premissas não levam à conclusão, embora pareçam levar)" [46]. Completando o conceito, a petitio principii é "uma falácia não formal em que se tenta provar uma conclusão com base em premissas que já a pressupõem como verdadeira" [47]. A petitio principii não é uma falácia porque a conclusão é equivocadamente deduzida das premissas, mas porque a conclusão já está contida nas premissas. Se Deus é um ser perfeito (primeira premissa) e a um ser perfeito não poderia faltar a existência (segunda premissa); Logo, Deus existe [48]. Ora, nota-se claramente que a conclusão não foi deduzida das duas premissas. Ela já estava contida na primeira premissa. Se admitirmos que Deus é um ser perfeito (primeira premissa), obviamente estamos também admitindo que ele existe.

Para evitar o comprometimento da argumentação, ocultamos esta falácia. Schopenhauer cita diversas formas de mascarar uma petitio principii. a) usando um nome distinto (exemplos: "boa reputação", em vez de "honra", "virtude" em vez de "virgindade" etc.) ou usando um conceito que, embora distinto do original, também se aplica ao conjunto de objetos abrangidos pelo conceito original (exemplo: "animais de sangue vermelho" em vez de "vertebrados"); b) Induzimos o adversário à aceitação de uma verdade geral, para afirmarmos uma verdade particular (exemplo: falamos da incerteza de todo saber humano para afirmar a incerteza da medicina); c) Contrariamente à letra "b", fazemos com que o adversário admita várias verdades particulares, para demonstrar a verdade geral (exemplo: falamos da incerteza da medicina e do direito para afirmar a incerteza de todo saber humano); d) Finalmente, demonstrando, quando duas coisas são conseqüência uma da outra, uma postulando a outra.

Estratagema 22: Falsa alegação de petitio principii

Consiste em negar a afirmação do adversário alegando falsamente que há petitio principii [49]. Funciona quando o adversário exige que admitamos uma proposição que seja muito afim ao problema da discussão. Quando a proposição do adversário guarda muitas semelhanças com o problema central colocado por ele (a tese), há uma tendência para que o nosso próprio adversário e os ouvintes enxerguem a proposição como sendo idêntica ao problema, o que seria a suposta petitio principii.

Estratagema 12: Manipulação semântica

Quando falamos sobre um conceito amplo que não tem uma designação específica, utilizamos metáforas para designá-lo. De acordo com este estratagema, devemos escolher a metáfora mais apropriada à defesa da nossa tese. Trata-se de utilizar a identificação semântica mais adequada à nossa argumentação. Se o adversário fala de transformação, utilizamos o termo "subversão" (uma palavra hostil). Se o adversário usa o termo "fanatismo", podemos utilizar o termo "crença" (mais brando). Se um fala de "influência e ligações" ou outro pode falar "suborno e nepotismo".

A manipulação semântica é, no fundo, "uma sutil petitio principii [50]: aquilo que se quer dizer é introduzido já na palavra, na denominação" [51]. Schopenhauer o considera o mais intuitivo dos estratagemas.

Estratagema 11: Salto indutivo

Induzir é o ato de retirar uma conclusão genérica de afirmações particulares [52]. Se o adversário concorda com os casos particulares resultantes da indução que fazemos, ao invés de perguntar se ele também concorda com a verdade geral (conclusão) que deriva desses casos particulares (premissas), devemos introduzir essa verdade geral no debate como se ela já tivesse a aceitação dele. Assim, não só o adversário poderá acreditar que admitiu aquela verdade geral, que fora induzida, mas também os próprios ouvintes poderão acreditar, ao lembrar das várias perguntas sobre casos singulares que o adversário aceitou.

Estratagema 20: Omissão de premissa

Obviamente, se o oponente aceitou todas as nossas premissas, não devemos perguntar mais nada. O próximo passo é simplesmente tirar a conclusão a partir das premissas aceitas. Se quisermos, entretanto, concluir antes da aceitação de todas as premissas necessárias à conclusão, "ainda que esteja faltando uma ou outra premissa, nós a presumimos como aceita e tiraremos a conclusão" [53]. Trata-se de avançar direto para a conclusão, presumindo a aceitação de premissa que não fora discutida. Se ninguém reclamar, saímos no lucro.

Estratagema 14: Falsa proclamação de vitória

Depois de várias perguntas respondidas pelo adversário e sem as respostas necessárias à confirmação da nossa tese, "declaramos e proclamamos triunfalmente demonstrada a conclusão que pretendíamos" [54]. Trata-se de proclamar a vitória como se o adversário a tivesse admitido.

Esse estratagema é um golpe descarado. Se formos descarados e se o adversário for tímido, o golpe poderá dar certo. Schopenhauer afirma que este estratagema corresponde à fallacia non causae ut causae (tratar como prova o que não é prova).

II. Utilizando perguntas

Uma das formas mais comuns de diálogo é a condução do raciocínio por meio de perguntas [55]. As perguntas são jogadas no diálogo e, a partir das respostas, formam-se, pouco a pouco, as premissas. Quando as premissas necessárias à conclusão já se foram aceitas, concluímos a tese. Trata-se de um método vagaroso, claro e preciso para a demonstração de uma tese.

Estratagema 7: Perguntas em desordem

Como o adversário, a partir das perguntas que formulamos, admite as premissas de forma lenta e pensada, o diálogo é claro. Esse estratagema, no entanto, não pretende demonstrar claramente. O objetivo é enganar. Para isso, utilizamos muitas perguntas de maneira apressada, para que o adversário, sem muito tempo para refletir, acabe admitindo o que queremos que ele admita para concluir nossa tese. Dessa forma, mascaramos eventuais falhas ou lacunas que, provavelmente, não seriam admitias pelo oponente se a exposição fosse clara e vagarosa. Por um lado, consiste em fazer várias perguntas pormenorizadas ao mesmo tempo, ocultando, desta forma, o que queremos que o adversário admita. Por outro lado, deve-se "expor rapidamente a sua própria argumentação, fundada nas concessões de outra parte, pois os que compreendem com lentidão não conseguirão acompanhar a discussão e não se darão conta das eventuais falhas e lacunas da demonstração" [56].

Estratagema 9: Perguntas em ordem alterada [57]

Geralmente há uma ordem lógica de perguntas para que se consiga chegar linearmente à conclusão. Este estratagema consiste em inverter ao máximo essa ordem lógica, para evitar que o adversário preveja nossa conclusão. Dessa forma, se o adversário não conseguir prever nossa conclusão, certamente também não conseguirá prevenir-se [58].Podemos, ainda, aproveitar as respostas dadas pelo adversário em meio a essa confusão de perguntas, para tirar várias conclusões, até mesmo contraditórias.

Estratagema 10: Inversão para a negativa

Quando fazemos perguntas ao adversário, geralmente queremos que ele responda de forma afirmativa para que determinada premissa da nossa tese seja confirmada. Se percebemos, no entanto, que o adversário responde, intencionalmente, de forma negativa às perguntas que fazemos, fazemos o contrário. Invertemos as perguntas para que, com a negativa dele, nossa premissa seja confirmada. Para que ele não perceba a inversão, devemos agir como se quiséssemos uma afirmativa dele, quando, na realidade, queremos mesmo a negativa. Se não for possível agir dando a entender que queremos uma afirmativa, deve-se adotar, pelo menos, uma posição neutra (sem indicar aonde queremos chegar).

Estratagema 13: Alternativa forçada

Para que o adversário concorde com a nossa afirmação, apresentamos a afirmação juntamente com uma afirmação contrária que se mostra pouco provável, ressaltando essa oposição. Ele acaba escolhendo a nossa afirmação porque a outra é muito menos provável. "Por exemplo: desejamos que ele [lê-se o adversário] admita que um homem tem de fazer tudo o que seu pai lhe ordene. Para isso perguntamos: ‘Deve-se obedecer ou desobedecer aos pais em todas as coisas?’" [59][60].

III. Artifícios que partem do esquema geral [61]

Tratar-se-á, aqui, de estratagemas diretamente relacionados às idéias daquele esquema geral estabelecido na segunda parte deste estudo.

Estratagema 24: Falsa condução ao absurdo

Neste estratagema, retiramos falsas conseqüências das proposições do adversário, dando a entender que elas estavam realmente ocultas nos argumentos do oponente, ou seja, atribuindo uma imagem de veracidade a essas conseqüências falsas. Distorcemos os conceitos a fim de gerar falsas conseqüências que pareçam ser verdadeiras.

Em vez de deduzir conseqüências absurdas que estão realmente ocultas nos argumentos do adversário, esse estratagema consiste em retirar conseqüências aparentemente verdadeiras das afirmações do oponente. Embora diferentes, os dois casos equivalem ao mesmo método de refutação: a refutação indireta pela condução ao absurdo (ou apagode).

Estratagema 25: Falso exemplo em contrário

É a utilização de um exemplo em contrário (ou instância) "aparente, em que ou o exemplo não pertence ao mesmo gênero a que se refere a verdade que pretende negar, ou é falso, ou não a contradiz efetivamente" [62]. Quando o falecido prefeito de São Paulo, Celso Pitta, foi acusado de favorecer determinado banco quando fora Secretário das Finanças do Município, ele declarou que nunca tivera contato com aquele banco. Os seus adversários apresentaram, em contrapartida, um documento assinado por Pitta, quando secretário, autorizando uma negociação entre a Prefeitura e aquele banco. O exemplo em contrário utilizado pelos adversários não se aplica porque se tratava de um documento padronizado que não implicava nenhum contato direto de Pitta com aquele banco em particular [63]. Trata-se de uma refutação indireta por condução ao absurdo (ou apagode) com a utilização de exemplos em contrário (ou instâncias) aparentes. Quem ataca utiliza uma instância aparente como premissa para a apagode. No exemplo dado, os adversários utilizaram o documento (exemplo em contrário aparente) para conduzir o debate a uma conclusão absurda (a prova do contato de Pitta com o banco), ou seja, para elaborar a condução ao absurdo. [64]

Estratagema 16: Várias modalidades de argumentum ad hominem/ex concessis

Consiste em, a partir das análises da pessoa do adversário, elaborar argumentos ad hominem ou ex concessis [65]. Num diálogo aberto, a análise da pessoa do adversário pode ser pertinente. Embora a análise seja pertinente, a tese continua desvinculada de qualquer pessoa. Sua veracidade não depende dos valores ou comportamentos de quem quer que seja. O engano ocorre, portanto, em achar que a tese em si foi refutada apenas com argumentos ad hominem ou ex concessis.

IV. A ampliação indevida

Quanto mais genérica for uma afirmação, maior será a possibilidade de ataques a ela. Em outras palavras, a tese mais genérica é, também, a mais indefesa porque admite um número maior de ataques. Esses quatro estratagemas estão relacionados à idéia de generalização: ou atacamos além do que foi dito (como se a afirmação do adversário fosse mais genérica do que ela realmente é) ou atacamos o exagero que o adversário realmente cometeu (se necessário, provocando esse exagero).

Estratagema 1: Ampliação Indevida Simples

Trata-se da idéia geral de ampliação indevida: exagerar, capciosamente, a interpretação da tese, na tentativa de admitir a maior generalidade possível à afirmação ("para além de seus limites" [66]). Se o adversário não contestar essa generalização exagerada, haverá novas possibilidades de ataques que derrubarão ou ajudarão a derrubar a tese dele.

Cabe ressaltar que este primeiro estratagema traz a idéia geral de ampliação indevida. Tal conceito, portanto, aplica-se perfeitamente aos estratagemas seguintes (de números 2 e 3). O que distingue este estratagema dos outros dois estratagemas é que, neles, há um modo específico de utilização dessa idéia geral de ampliação indevida: no estratagema 2, por meio da utilização de uma homonímia, e, no estratagema 3, por meio da adição de um novo sentido à tese.

Para evitar os perigos da ampliação indevida, deve-se restringir ao máximo as próprias afirmações, já que, quanto mais restritas elas forem, menores serão as possibilidades de ataque a elas. O antídoto é, portanto, a exposição precisa de cada ponto indevidamente generalizado da tese.

Estratagema 2: Ampliação Indevida por Homonímia Sutil

Ocorre a homonímia quando a mesma palavra ou expressão designa mais de um conceito. Nesse estratagema, utiliza-se a homonímia para ampliar ou generalizar a tese, confundindo o adversário. O primeiro passo é uma afirmação que utiliza outro significado possível da mesma palavra (homonímia), diferente daquele utilizado pelo adversário em sua tese. Não havendo contestações imediatas do oponente sobre essa afirmação falsa, o próximo passo é refutar a afirmação falsa que acabou de ser dita, dando a impressão que a tese do adversário (que utilizava outro significado) foi refutada.

Como exemplo, um diálogo entre um professor e um aluno sobre a aplicação do Princípio do Privilégio Contra a Autoincriminação ("ninguém é obrigado a produzir provas contra sí mesmo"). Para demonstrar a aplicação prática de tal exemplo, o professor citou a Lei 11705/08, a chamada Lei Seca, que impõe sanções administrativas (multa e suspensão da habilitação para direção pelo período de doze meses) e imputa crime (detenção, de seis meses a três anos) aos condutores que apresentarem determinadas concentrações de álcool no sangue. Como a concentração de álcool no sangue é aferida, em regra, pelo teste do bafômetro, no qual o condutor sopra o aparelho (bafômetro) e, após a análise do ar soprado, o aparelho constata a quantidade de álcool no sangue do indivíduo, a imputação do crime dependeria da colaboração do condutor para a realização do teste. Assim, se "ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo", o condutor não é obrigado fazer o exame e, portanto, não poderá, em regra, ser acusado do crime previsto na Lei 11705/08.

Demonstrada, pelo professor, a aplicabilidade do referido princípio no âmbito penal (não haveria imputação de crime se o condutor se recusasse a realizar o teste do bafômetro), o aluno questionou porque os órgãos administrativos estavam aplicando as sanções administrativas da Lei Seca (multa e suspensão da habilitação para direção pelo período de doze meses) quando o condutor se recusava a realizar o teste do bafômetro. Em resposta ao questionamento, o professor respondeu que o princípio se aplicava ao Direito Penal, mas não havia aplicação no Direito Administrativo, ou seja, ao recusar realizar o teste, o condutor não seria acusado de crime, mas sofreria as sanções administrativas previstas em lei. Em seguida, contestou o aluno: "Ora, se o Princípio do Privilégio Contra a Autoincriminação (‘ninguém é obrigado a produzir provas contra sí mesmo’) é um direito fundamental, ele deve ser aplicado em todos as áreas do direito, tanto no direito penal, quanto no âmbito do direito administrativo. Por isso, com a recusa do condutor em realizar o teste, além da não incriminação, não poderia ocorrer, tampouco, a imposição das sanções administrativas previstas na Lei Seca: a multa e a suspensão da habilitação".

Eis que o professor contestou o aluno: "Se um condutor se recusa a fazer o teste para a renovação da habilitação no prazo determinado pelos órgãos da administração pública, que irá aferir sua capacidade de conduzir veículos em vias públicas, ele perde o direito de dirigir. O mesmo ocorre no caso analisado. Se o condutor se recusa a fazer o teste do bafômetro (que mede a quantidade de álcool no sangue), para aferir sua capacidade de conduzir veículos em vias públicas, ele também perderá o direito de dirigir [referindo-se à sanção administrativa que determina a suspensão da habilitação por doze meses]. Se aplicássemos o Princípio do Privilégio Contra a Autoincriminação no âmbito do direito administrativo, a pessoa poderia se recusar a fazer o teste para renovar a carteira, o que seria absurdo!". Após a contestação, o aluno se calou.

Relembrando o conceito inicial, a homonímia ocorre quando a mesma palavra ou expressão designa mais de um conceito. Na última contestação do professor, ele utiliza a palavra "teste" com dois significados distintos em cada uma das duas situações exemplificadas na contestação. No primeiro exemplo, o teste para a renovação da habilitação, trata-se de um teste que avalia a capacidade do indivíduo que se submete a ele de dirigir um veículo em via pública. Se o indivíduo não passar no teste, ele não estará habilitado a dirigir veículos, mas não será acusado de nada, ou seja, não poderá ocorrer imputação de qualquer sanção. Em outras palavras, ele não será incriminado de nada. No segundo exemplo, o teste do bafômetro, será avaliada a quantidade de álcool no sangue do indivíduo que se submete ao exame. Se o indivíduo não passar no teste (for encontrada a quantidade de álcool prevista na lei), ele será incriminado: sofrerá as penas das sanções administrativas e criminais cabíveis.

A mesma palavra ("teste") foi utilizada com dois significados distintos. Uma coisa é um teste que mede a sua capacidade em algo. Outra coisa é um teste que afere se você é ou não culpado, ou seja, um teste que pode te incriminar (culpar) ou não. O primeiro tipo de teste não atribui qualquer culpa ao examinado: ou o sujeito é capaz para desenvolver determinada atividade ou ele é incapaz. O segundo tipo de teste, entretanto, diz se o sujeito é culpado ou não.

Nota-se, portanto, que o professor utilizou a ampliação indevida por homonímia sutil. Ao equiparar dois exemplos que apenas parecem tratar de situações equivalentes, mas que, na verdade, não são equivalentes, ele ampliou o exemplo já admitido pelo aluno a outro caso que nada tinha a ver com a discussão. No primeiro exemplo (teste para a renovação da habilitação), não faz sentido aplicar o princípio citado porque esse princípio ("ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo") só diz respeito às situações nas quais há autoincriminação. No segundo exemplo (teste do bafômetro), no entanto, o princípio mencionado se aplica perfeitamente, já que se trata de uma situação de autoincriminação. Como o aluno não percebeu a diferença, como ele não percebeu que os exemplos tratavam de situações distintas (que não eram análogas), o professor venceu o debate, mesmo sem razão.

Deve-se observar que este estratagema deve ser empregado com sutileza. As homonímias claras e óbvias não enganam ninguém. Apenas as homonímias suficientemente sutis têm o poder de enganar o adversário.

Estratagema 3: Ampliação Indevida por adição de novo sentido à tese/afirmação

A afirmação (ou tese) "é compreendida em um sentido totalmente diferente, e assim refutada com base neste segundo contexto" [67]. Trata-se de ampliar (generalizar) a tese por meio da adição de um sentido novo à afirmação. Se a ampliação indevida por adição de novo sentido não é contestada, refuta-se a tese por meio deste falso conceito admitido (ou não contestado) pelo adversário.

O primeiro passo é uma afirmação falsa que reconta a tese do adversário, mas com sentido distinto do originalmente colocado por ele. Sem contestações, refuta-se a afirmação que acabou de ser dita, dando a impressão de ter refutado a tese.

Estratagema 23: Impelir o adversário ao exagero

Podemos instigar o exagero do adversário. Como as contradições acabam provocando exageros, provocamos o oponente com contradições para induzi-lo a "exagerar para além do que é verdade" [68]. Quando refutamos o exagero que ele cometeu, é como se a proposição original também fosse refutada [69].

Na perspectiva da defesa, entretanto, deve-se restringir, como já foi alertado, ao máximo as afirmações. Se o oponente tentar estender a afirmação para além do que havíamos exposto, devemos "imediatamente reconduzi-lo aos limites da nossa afirmação com um: ‘Eu disse isto e nada mais.’" [70]

V. A idéia de autoridade

Autoridade é, de acordo com um dos significados do Dicionário Aurélio [71], "influência, prestígio, crédito". Por conseqüência, utilizar afirmações que têm aceitação (prestígio, crédito etc.) com o adversário e com os ouvintes, seja porque o seu autor tem prestígio entre eles ou porque a idéia, por si só, tem aceitação geral, é uma forma inteligente de provocar a aceitação do adversário para com as afirmações que queremos que ele admita verdadeiras. Mesmo que não concordemos com essas "autoridades", podemos utilizá-las, já que o interesse é tão somente o convencimento, e isto "per faz et per nefas (por meios lícitos ou ilícitos)" [72].

Estratagema 30: Argumentum ad verecundiam

A idéia de autoridade é altamente contestável. Respeitar a opinião de um estudioso é diferente de acreditar nas suas afirmações simplesmente porque ele disse. Será seguro confiar sem contestações em alguém que julgamos ser uma autoridade em determinada área? A resposta majoritária parece ser o sim. Talvez por conta da exagerada especificação dos conhecimentos ditos científicos, ou talvez porque crer seja mais fácil e cômodo que julgar, o fato é que o pensamento crítico é raro. Esse estratagema consiste em, aproveitando a falta de senso crítico do adversário, utilizar afirmações de autoridades, que, provavelmente, não serão contestadas. Se "o público, mesmo letrado, aceita como autoridades pessoas das quais apenas ouviu falar de longe, e de cujas obras não conhece um título sequer" [73], temos muitas possibilidades de atacá-los. Diante de tantas facilidades, pode-se, inclusive, "apelar a uma autoridade aparentemente adequada" [74], ou realizar citações com sentidos e contextos alterados (falsos), ou, ainda, citar autoridades inventadas. Para Schopenhauer, "são as autoridades que o adversário não entende aquelas que, geralmente, mais efeito obtêm" [75].

Como autoridade, utilizamos, como foi dito, "afirmações que têm aceitação (prestígio, crédito etc.) com o adversário e com os ouvintes, seja porque o seu autor tem prestígio entre eles ou porque a idéia, por si só, tem aceitação geral". Podemos citar Nietzsche ou o próprio Schopenhauer, por exemplo, para a defesa de uma afirmação qualquer. Podemos optar, ainda, por outro tipo de autoridade, ou seja, invocamos argumentos aceitos pela maioria (opiniões senso comum, preconceitos gerais etc.). Pode-se, por exemplo, rotular uma crítica coerente sobre as práticas de determinado homossexual como um preconceito, ou utilizar a idéia geral de que o novo é superior, qualificando como nova determinada visão (como se as demais visões fossem ultrapassadas apenas por serem anteriores àquela) [76]. O exemplo do próprio Schopenhauer é a utilização, nos tribunais, da lei como a autoridade aplicável ao determinado caso concreto. Mesmo sem razão ou bom senso, vários juízes aplicam soluções claramente injustas somente porque determinada lei assim estabelece.

É relativamente fácil convencer o adversário por meio desse estratagema porque grande parte das pessoas simplesmente reproduz argumentos alheios sem o mínimo compromisso de refletir seriamente o argumento. As reproduções fáceis e cômodas tomam o lugar do demorado e trabalhoso senso crítico. Enquanto a ignorância é corriqueira, a reflexão é incomum. Schopenhauer define essa maioria ignorante como "ovelhas que vão atrás do carneiro-guia aonde quer que as leve. Para eles, é mais fácil morrer do que pensar" [77].

A aceitação de determinada afirmação pela maioria não é indício e muito menos prova da veracidade da afirmação. Apenas uma pessoa pode dar origem a uma afirmação que, por credibilidade ou aparência, seja reproduzida em massa. As meras reproduções irrefletidas daquela afirmação baseada na credibilidade de quem disse garantem veracidade à preposição? É absurdo não acreditar em Deus simplesmente porque quase todos acreditam? Devemos adotar determinado posicionamento só porque a maioria dos juristas defende aquela posição? Claro que não.

É pelo temor de contrariar a maioria, de ser taxado como do contra (ou como "um sabichão que quisesse ser mais esperto que o mundo inteiro" [78]), que uma boa parte daqueles que refletem um pouco mais se curva diante da ignorância da maioria. Diz Schopenhauer que "a concordância torna-se uma obrigação [...] os poucos que foram capazes de julgar por si mesmos se calarão, e só poderão falar aqueles que, totalmente incapazes de ter uma opinião e juízo próprios, sejam o eco das opiniões alheias" [79]. Ora, se a maioria não reflete e os poucos que têm senso crítico se calam, restam pouquíssimos adversários com capacidade e coragem para contestar a utilização desse estratagema. As pessoas quase sempre não confiam nelas mesmas. Por isso, dão credibilidade a qualquer autoridade que pareça coerente. Daí as grandes possibilidades de aproveitar a ignorância alheia por meio desse estratagema.

Estratagema 32: Rótulo odioso

Trata-se de reduzir a afirmação do adversário a uma "categoria geralmente detestada" [80]. É rotular maliciosamente o argumento do adversário. Utilizamos um rótulo (liberalismo, burguês, ateísmo, fanatismo etc.) para desqualificar a afirmação do adversário.

Ao utilizar uma etiqueta (rótulo) razoavelmente aceito naquele debate, deixamos, ensina Schopenhauer, duas suposições no ar:

"1) que aquela afirmação é efetivamente idêntica a essa categoria ou, ao menos, está compreendida nela e estamos dizendo: ‘Ah, isto nós já sabemos!’; e 2) que esta categoria já está de todo refutada e não pode conter nenhuma palavra verdadeira" [81].

Diante, por exemplo, de problemas técnicos, um funcionário público defende que a administração deveria contratar determinada pessoa que, embora seja parente dele, é muito competente na área em questão. Uma forma de desqualificar o argumento desse funcionário público é a utilização do rótulo "nepotismo". Ele pode até ter razão, mas, diante de um rótulo tão forte, seus argumentos são rejeitados.

VI. Explorando o que o adversário nos oferece

Utilizamos, neste ponto, aquilo que o adversário nos oferece: seus argumentos e vontades. Distorcemos seus próprios argumentos ou utilizamos seus interesses pessoais para convencê-lo da veracidade das nossas proposições.

Estratagema 26: Retorsio argumenti

A Retorsio argumenti (ou "retorsão do argumento") ocorre quando utilizamos o argumento do próprio adversário para atacá-lo. O exemplo dado por Schopenhaeur: o adversário "diz: ´é apenas um menino, devemos deixá-lo fazer o que quiser’. Retorsio: ‘Precisamente porque ele é um menino, deve-se castigá-lo para que não persevere em seus hábitos.’" [82].

Estratagema 35: Persuasão pela vontade

As pessoas não se movem apenas pelo amor à razão ou à verdade. Suas vontades também estão relacionadas às suas paixões, emoções, instintos, desejos, valores, etc. O presente estratagema consiste em utilizar as vontades do adversário contra ele mesmo. Podemos, também, utilizar os interesses dos ouvintes. Demonstramos que os argumentos do adversário, se aceitos, contrariam seus próprios interesses ou contrariam os interesses dos ouvintes.

Olavo de Carvalho adverte que "não se trata, necessariamente, dos interesses reais e objetivos do ouvinte, mas daquilo que ele imagina ou supõe serem os seus interesses" [83]. Não manipulamos apenas as motivações racionais, mas, especialmente, as emocionais [84]. Trata-se de um estratagema de imenso potencial porque há instrumentos poderosos de manipulação psicológica. Um exemplo é a chamada Programação Neurolinguística (PNL), um conjunto de modelos e princípios que descrevem a relação entre a mente e a linguagem (verbal e não verbal). Por meio da utilização dessa metodologia, pode-se, por exemplo, presumir prováveis estados emocionais, jeitos e tendências momentâneas do adversário. Conhecendo não somente as vontades do adversário, mas também técnicas de manipulação psicológica, são vastas as possibilidades de manipular o adversário de acordo com os nossos interesses.

VII. Utilizando provas

Para justificar suas alegações, geralmente o adversário nos apresenta provas (sinais, indícios etc.) das alegações. Esses estratagemas estão diretamente relacionados às possíveis contestações dessas provas.

Estratagema 17: Distinção de emergência

Quando o adversário apresenta uma prova contrária à nossa tese, podemos nos defender com uma distinção sutil se a questão admitir dupla interpretação ou casos diferentes. Dizemos, por exemplo, que aquela prova contrária à nossa tese não a refuta porque os casos são diferentes (o caso específico tratado na nossa tese tem peculiaridades em relação ao caso no qual foi colhida a prova apresentada).

Estratagema 37: Tomar a prova pela tese

Quando o adversário utiliza uma prova ruim para provar sua argumentação, contestamos aquela prova ruim como se estivéssemos derrubando a tese em si. Mesmo que a tese seja verdadeira, fica a impressão de falsidade simplesmente porque o adversário não lembrou de uma prova melhor.

VIII. Utilizando a raiva [85]

Um artifício possível é a manipulação do adversário através da provocação da raiva (fúria, ódio, irá etc.) dele. Tal sentimento desconcentra e confunde o adversário. Por conseqüência, temos o domínio do debate.

Estratagema 8: Encolerizar o adversário

Consiste em irritar o adversário, para que ele não perceba sua própria vantagem no debate. Se o adversário aceita a provocação e, por conseqüência, fica irritado, sua atenção deixa o debate. Trata-se de desviar o foco do adversário do debate para a raiva. Pode-se irritar o adversário, por exemplo, ao tratá-lo com desprezo.

Estratagema 27: Usar argumento que provoca raiva

Se o adversário fica irritado quando utilizamos determinado argumento, é interessante explorar essa raiva usando assiduamente aquele argumento. Dessa forma, dominamos o debate.

IX. Utilizando a brevidade

Trata-se de utilizar os benefícios da brevidade, singelamente demonstrados nas explicações dos dois próximos estratagemas.

Estratagema 21: Preferir o argumento sofístico

É melhor combater um argumento capcioso e ilusório do adversário com outro argumento igualmente sofístico e aparente, ao invés de liquidá-lo, desvendando sua falsidade. Demonstrar a verdadeira natureza das coisas, geralmente por meio de uma longa explicação, não causa grandes danos ao adversário. A brevidade de um contra-argumento também capcioso, no entanto, gera grandes efeitos psicológicos no debate a favor de quem contra-argumentou [86].

Estratagema 28: Argumento ad auditores

Quando discutimos com uma pessoa culta, mas os ouvintes são incultos, a utilização do argumento ad auditores tem grande possibilidade de sucesso. Trata-se de atacar o oponente (culto) com uma afirmação inválida, "mas cuja invalidade só um conhecedor do assunto pode captar" [87]. Este ataque geralmente vem acompanhado de um leve e discreto sorriso que ajuda a intimidar o oponente e atiçar a platéia. Para os ouvintes incultos, que assistem à intimidação, o oponente parece perdido e ridicularizado porque, para demonstrar a invalidade, ele deverá expor uma longa e demorada explicação. Como a maioria dos ouvintes não têm paciência para ouvir toda a exposição, fica a impressão de que ele não sabia explicar.

Mais uma vez a vantagem da brevidade aparece. Neste estratagema, comenta Olavo de Carvalho: "o erro tem o privilégio de ser mais breve do que sua refutação. A adoção generalizada, em todos os debates, dos limites de tempo próprios ao rádio e à televisão, torna previsível que raramente a verdade terá chance de prevalecer contra o argumentador desonesto. Não por coincidência, o estreitamento dos limites de tempo veio junto com o afrouxamento das exigências lógico-formais nos debates públicos, mesmo universitários" [88].

X. A fuga

Trataremos, aqui, dos estratagemas que têm relação direta com a fuga (esquiva, afastamento, retirada etc.). de argumentos, idéias, afirmações etc. ou, até mesmo, da própria discussão.

Estratagema 15: Desvio da argumentação

Podemos encontrar dificuldades para provar alguma das nossas afirmações. Mesmo assim, não podemos deixar de ter razão aos olhos dos presentes. A alternativa é formular uma proposição correta e pouco exata relacionada ao assunto original para o adversário, como se quiséssemos construir a demonstração da nossa tese a partir dessa análise sem importância. Se ele rejeita a análise por desconfiança, utilizamos o método da refutação indireta por apagode (ou condução ao absurdo) e, assim, ganhamos o debate porque são enormes as possibilidades de apagode em preposições inexatas. Se, ao contrário, o oponente aceita a análise, ao menos alguma coisa razoável dissemos no debate e, enquanto ele analisa, ganhamos tempo para pensar, já que a conclusão foi protelada. "Nos dois casos, trata-se, obviamente, apenas de mudar de assunto, desviando a atenção do ouvinte para que não perceba o rumo desastroso que nossa argumentação ia tomando" [89].

Estratagema 18: Uso intencional da mutatio controversia

Quando percebemos que o adversário muito provavelmente irá nos vencer, devemos interromper o debate a tempo. Interrompemos de alguma maneira: ou saímos do debate, ou o conduzimos para outro assunto etc.

Estratagema 19: Fuga do específico para o Universal

Se o oponente exige expressamente que refutemos algum ponto específico (concreto) de sua tese, mas não enxergamos nada adequado, refutamos o aspecto geral da tese. A utilização de diversos exemplos passa a impressão de que estamos refutando de forma mais específica, disfarçando essa fuga do específico para o universal.

Estratagema 29: Mudança de assunto

Ao perceber que seremos derrotados, começamos a "falar de algo totalmente diferente, como se fosse pertinente à questão e constituísse um argumento contra o adversário" [90]. Espera-se, com isso, que o adversário se deixe levar pelo desvio. Schopenhauer exemplifica: "Elogiei o fato de na China não existir uma nobreza hereditária e de os cargos serem preenchidos tão somente na base de examina. Meu adversário afirmou que ter conhecimentos não prepara para exercer um cargo mais do que os privilégios de nascimento... mas isto foi contestado. Ele imediatamente fez um desvio, dizendo que, na China, cidadãos de todas as classes são punidos com castigos corporais, e associou isto com beber muito chá, reprovando nos chineses ambas as coisas" [91].

Estratagema 31: Incompetência irônica

Diante de uma firmação que não sabemos contestar, a solução pode ser descreditar a afirmação do adversário por meio da ironia. Dizemos, de forma irônica, que aquela afirmação é tão complicada que não conseguimos alcançar o entendimento dela, insinuando que aquela afirmação é, na verdade, absurda.

Quando se tem prestigio diante dos ouvintes, esse estratagema tem grandes possibilidades de convencer. Sem prestigio, entretanto, corre-se o risco de parecer burro. Em outras palavras, esse estratagema só tem potencial quando quem o utiliza tem autoridade entre os ouvintes. Schopenhauer adverte que esse estratagema corresponde ao estratagema Argumentum ad verecundiam (estratagema 30) porque é, na realidade, "um modo especialmente malicioso de se valer da própria autoridade em lugar de razões" [92].

O antídoto (defesa) é desculpar-se dizendo que tivera culpa ao expor de maneira imprecisa e, em seguida, afirmar de maneira bem detalhada e didática a afirmação original, de modo que o adversário não tenha como alegar que não compreendeu dessa vez. A humildade demonstrada ao culpar-se diante de todos por suposta exposição imprecisa é admirada nos debates. Essa admiração conquista, ainda que momentaneamente, o respeito dos ouvintes, que passam a prestar atenção na exposição detalhada da afirmação que fora contestada com ironia pelo adversário. Depois da exposição mastigada, o adversário, que antes utilizara o estratagema da incompetência irônica, agora fica numa situação complicada porque parece que ele realmente não tinha entendido a primeira exposição.

Estratagema 36: Discurso incompreensível

Quando parecemos intelectuais em relação ao adversário e aos ouvintes, nos colocamos acima deles, explorando sua ignorância. Isso porque os verdadeiros ignorantes não são aqueles que não compreendem bem termos técnicos, mas aqueles que, cheios de orgulho, não questionam afirmações incompreensíveis pelo medo de parecer ignorante.

Nesse estratagema, utilizamos termos intelectualoides de maneira desordenada e incompreensível. Como os oponentes não questionam, parece que as besteiras que pronunciamos têm sentido e, assim, parecemos ter razão.

Nesse sentido escreve o jurista italiano Piero Calamandrei, ao criticar a forma de diálogo entre os advogados e os juizes:

"Peguem duas ou várias pessoas [...] razoáveis, que desejem falar umas com as outras para se porem de acordo sobre qualquer questão [...] o seu modo de raciocinar será, em cada caso, sempre o mesmo: um diálogo cerrado, feito de frases curtas, pelas quais cada qual procurará exprimir o essencial, por intermédio de palavras simples. As objeções serão apresentadas e refutadas uma a uma e há-de chegar-se finalmente ao fulcro da discussão [...] é assim que falam os homens que se querem fazer compreender e que querem persuadir [...] Pelo contrário, os advogados, profissionais de persuasão, fazem em geral uso de uma maneira expressiva totalmente oposta. O diálogo vivo e cerrado é substituído pelo monólogo compacto [...] considera-se famoso aquele que consegue chegar até ao fim de intermináveis períodos massudos sem tomar fôlego [...] Beltrano preenche os vácuos do pensamento com inúteis e falsos ornamentos de retórica. Esta forma de raciocinar, que é a negação daquela adoptada pelas pessoas razoáveis para falarem umas com as outras" [93].

Estratagema 34: Resposta ao brandimento de esquiva

A esquiva de determinado tema do debate revela, quase sempre, um ponto fraco. Mesmo que não tenhamos razão nos assuntos centrais do debate (ou na maioria deles), concentrar o debate naquele ponto fraco, ainda que pouco relevante, ajuda a retirar credibilidade do adversário. Por isso, quando o adversário se esquiva (elabora uma contrapergunta, foge à resposta direta, responde o que não foi perguntado, muda de tema etc.), devemos insistir naquele ponto fraco revelado pelo oponente. Perguntar novamente, demonstrar incisivamente que ele fugiu do que fora perguntado etc. são maneiras de "persistir no ponto e não deixar o adversário sair do lugar, mesmo quando não vejamos ainda em que consiste a debilidade que aí encontramos" [94].

Estratagema 38: ofensas pessoais

É utilizar ofensas pessoais para sair do assunto discutido. Ao perceber que não iremos ganhar o debate, porque não temos razão ou porque o adversário nunca nos dará razão, apelamos às ofensas pessoais. Ofendemos o adversário para que, provocando sua animalidade, consigamos sair da discussão.

Tratar-se-ia de um argumentum ad hominem? Schopenhauer faz distinção mais específica, chama de argumentum ad personam. De acordo com ele, enquanto o argumentum ad hominem se afasta do objeto da discussão para atacar a pessoa, o argumentum ad personam ataca a pessoa deixando o objeto da discussão totalmente de lado. Além disso, o argumentum ad personam teria um tom grosseiro e pejorativo, característica que nem sempre está presente no argumentum ad hominem.

A potencialidade desse estratagema está na vaidade do ser humano. "Nada supera, para o homem, a satisfação de sua vaidade e nenhuma ferida dói mais do que aquela que a atinge" [95]. Como o adversário é, em grande parte das vezes, muito vaidoso, aproveitamos sua fraqueza para, atingindo sua vaidade por meio de ofensas pessoais, sair daquela discussão que estávamos perdendo. Se o adversário aceitar a provocação, a discussão se torna uma rixa, que dificilmente terá vencedores ou ganhadores. Assim, deixamos a posição de perdedor (naquela discussão que estávamos perdendo) para assumir uma posição mais neutra ou, até mesmo, de vencedor (na rixa que surgiu).

O antídoto é calma e gentileza. Ao invés de responder a ofensa com outras ofensas (quando a rixa da lugar à discussão), simplesmente dizemos que aquela ofensa não tem relação alguma com o tema discutido, demonstrando, dessa maneira, a tentativa do adversário de abandonar a discussão. Em seguida, continuamos a dizer os pontos nos quais o adversário não tem razão (ignorando suas ofensas). Cabe analisar, nessas situações, se realmente vale a pena vencer aquele adversário. Se o adversário nos ataca com ofensas muito graves, provavelmente não merece nossa atenção ou esforço. Nesse sentido é o alerta de Schopenhauer:

"entre cem pessoas, há apenas uma com a qual valha a pena discutir. Aos demais, deixemos que digam o que querem, porque desipere est juris gentium (ser idiota é um dos direitos do homem) e pensemos no conselho de Voltaire: La paix vaut encore mieux que la vérité (‘A paz vale ainda mais que a verdade’); e um provérbio árabe diz: ‘Da árvore do silêncio pende, como fruto, a paz’" [96].

Estratagema 33: Negação da teoria na prática

Utiliza-se, nas palavras de Schopenhauer, a sentença: "‘Isso pode ser verdade em teoria; mas na prática é falso’" [97]. Nega-se, nesse estratagema, a conclusão verdadeira. Trata-se, portanto, de algo impossível porque não deve haver dissociação entre teoria e prática. Ora, se há incoerência entre teoria e pratica, a teoria está errada. Uma teoria que não reflete a prática é uma teoria falha, que pode, portanto, ser derrubada por argumentos que demonstrem essa falha. Deve-se dizer, nesse caso, que a teoria está errada, e não que a teoria está certa, mas a prática é diferente.

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Sobre o autor
Daniel Sartório Barbosa

Servidor Público Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Daniel Sartório. Esboço de um possível guia prático para argumentação a partir da dialética erística de Schopenhauer. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2573, 18 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17008. Acesso em: 25 abr. 2024.

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