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O Direito Civil-Constitucional e a hermenêutica do sujeito em Michel Foucault

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4. O DIRIETO CIVIL-CONSTITUCIONAL E O CUIDADO DE SI

O Direito civil-constitucional como se viu foi uma evolução positiva na interpretação do direito civil. Visa dar mais efetividade aos valores constitucionais nas relações privadas. Acontece que, por outro lado, pode ser uma hermenêutica perigosa que priva o sujeito de sua liberdade, arduamente conquistada e necessária para a concretização do Estado Democrático de Direito.

O discurso político que justifica ações positivas, que interferem diretamente na liberdade do cidadão em sua esfera privada na efetivação dos mandamentos constitucionais, entre ele, o mais aclamado, a dignidade da pessoa humana, deve ser visto com ressalva. Isso porque, na maioria das vezes em que o Estado intervém na esfera privada com ações afirmativas, na verdade é porque não efetivou determinada garantia constitucional. Veja, por exemplo, os contratos no código de defesa do consumidor, são contratos dirigidos, já que o consumidor, teoricamente, é a parte mais fraca, não tendo condições de interpretá-lo e saber se poderá lhe causar algum prejuízo. Ou seja, o Estado não efetivou o direito da educação de forma satisfatória, devendo, portanto, interferir com ação positiva. Não se quer defender o caráter negativo das ações positivas, mas elas devem vir acompanhadas de outras ações que garantam a emancipação do sujeito, o que nem sempre ocorre.

Inúmeros casos podem ser citados em que o Estado, utilizando-se de uma hermenêutica civil-constitucional, interfere de forma temerosa na autonomia privada do sujeito. Foucault demonstra que esses discursos, ditos verdadeiros, que sujeitam o sujeito, tolhendo a sua liberdade, podem ser superados com as práticas do cuidado de si. O sujeito pode se reinventar a partir dessas práticas se tornando mais livre [02]. Não se deve tomar como verdadeiros esses discursos limitadores da autonomia privada.

César Fiúza (2009), em uma atitude de certa forma parresiasta [03], publicou recentemente um artigo [04] que enuncia uma série de práticas estatais que vêm tolhendo a liberdade do cidadão em nome dos princípios da dignidade da pessoa humana e da função social, ou seja, da hermenêutica-civil constitucional.

Uma das atitudes estatais que proclama efetivar o programa constitucional na esfera privada que, da forma que está sendo feita, tolhe a liberdade individual é a denomina lei seca. Esta lei visa ter tolerância zero para a ingestão de álcool por motoristas, ou seja, qualquer quantidade da substância detectada no motorista é motivo para apreensão do carro e prisão. O que parece é que aquele que ingere uma pequena quantidade de álcool é tratado com criminoso, sendo tolhido de sua liberdade. Acontece que uma lei mais dura, que limita a liberdade privada de forma mais drástica que a anterior, não terá o condão de reduzir os acidentes de trânsito graves causados por ingestão de álcool. E isso já vem sendo demonstrado em pesquisas. O que se deve fazer são campanhas educativas de forma efetiva, demonstrando os riscos da mistura de ingestão de álcool e direção, tal qual se fez com a campanha antitabagista, que demonstrou resultados positivos.

Outro caso que pode ser citado são as ações do juizado da infância e da juventude que estabeleceram toque de recolher noturno para adolescente em diversas cidades brasileiras. Em nome da proteção desses indivíduos eles são tolhidos de suas liberdades, não podendo mais transitar à noite, a partir de determinada hora, a não ser na presença do responsável. A sociedade e muitos pais apóiam essa atitude estatal, que mais uma vez, tolhe a liberdade em nome da do programa constitucional para a efetivação da dignidade da pessoa humana.

O que se quer demonstrar é que o indivíduo não deve se sujeitar a essas práticas sem questionar, sem analisar se realmente quer pagar o preço de aceitar essas práticas. Na Sociedade grego-romana, como Foucault demonstrou, as práticas do cuidado de si demonstravam uma maneira do sujeito conduzir a sua vida por si mesmo e como escolher essa maneira de conduzir por si mesmo. É isso que Foucault quer nos propor, que possamos enxergar as formas de sujeição e criar meios de sermos menos sujeitados, já que em sua teoria o poder sempre existe e sempre existirá. A liberdade não que dizer liberação, nunca haverá aquele espaço livre de poder, no qual não haja dominação. A liberdade será aquele movimento de escolher e ver a qual sujeição estaremos submetidos, ou seja, a poder escolher o destino de vida.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito civil-constitucional no direito brasileiro passou por três fases conforme Fiúza (2009). A primeira se refere ao momento de detectar quais eram as matérias de direito civil inseridas no texto constitucional. A segunda, e que ainda perdura, a de interpretar os institutos de direito privado à luz dos princípios constitucionais, dentre os mais aclamados, a dignidade da pessoa humana e da função social. A terceira se refere à efetivação do programa civil-constitucional de promoção da dignidade da pessoa humana, que conta com a participação do Estado, com programas de políticas públicas, e com os cidadãos, com a efetivação da boa-fé objetiva e o respeito da dignidade da pessoa humana ao se realizarem os seus negócios.

A hermenêutica civil-constitucional pode dar margem a interpretações que tolhem a liberdade privada, tão necessária para efetivar o princípio, como se viu. Só pode haver dignidade onde há liberdade.

Michel Foucault em suas obras tratou das relações entre o sujeito e a verdade. Nessa relação demonstra como o poder funciona e sujeita as pessoas. Na obra Hermenêutica do sujeito estuda a evolução das técnicas do cuidado de si no período socrático-platônico; nos dois primeiros séculos de nossa era, ao qual denomina "o período da idade do ouro da cultura de si, da cultura de si mesmo, do cuidado de si mesmo" (FOUCAULT, 2006, P. 41); e na transição dos séculos IV e V. Essas técnicas demonstram formas do sujeito conduzir a sua vida por si mesmo.

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As políticas afirmativas como tem sido feitas, sem uma campanha de emancipação do sujeito, vem tolhendo a liberdade de forma arbitrária, podem ser consideradas uma forma de sujeição. Foucault demonstra que com as práticas de si podemos ser mais livres escolhendo a maneira de conduzir as nossas vidas.

Essa hermenêutica civil-constitucional, como tem sido feita, não deve ser aceita de forma passiva. Deve-se visualizar a sujeição que ela nos impõe, nos tornando, dessa maneira, quem sabe, menos sujeitados.


REFERÊNCIAS

BUB, Maria Bettina Camargo et al. A noção de cuidado de si mesmo e o conceito de autocuidado na enfermagem. Texto contexto - enferm. [online]. 2006, vol.15, n.spe, p. 152-157.

CANDIOTTO, Cesar. Subjetividade e verdade no último Foucault. Trans/Form/Ação, v. 31, p. 87-103, 2008.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.). Direito civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 23- 59.

FIUZA, César. Crise e Interpretação no Direito Civil da Escola da Exegese às Teorias da Argumentação. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.). Direito civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 23- 59.

FIUZA, C. A. C. . Limites à hermenêutica civil-constitucional. In: MACIEL, Adhemar Ferreira; DOLGA, Lakowsky; BERALDO, Leonardo de Faria; COSTA, Mônica Aragão Martiniano Ferreira e. (Org.). Estudos de Direito Constitucional. 1 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, v. 1, p. 325-336.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 680 p.

SOUSA FILHO, A. . Foucault: o cuidado de si e a liberdade ou a liberdade é uma agonística. In: Albuquerque Júnior, Durval Muniz de; Veiga-Neto, Alfredo; Sousa Filho, Alípio de. (Org.). Cartografias de Foucault. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, v. 1, p. 13-26.

TEPEDINO, Gustavo. A Constitucionalização do direito civil: perspectivas interpretativas diante do novo código. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.). Direito civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 115- 130.

WELLAUSEN, Saly. Michel Foucault: parrhésia e cinismo. Tempo Social; Ver. Sociol. USP, São Paulo, 8(1): 113-125, maio de 1996.


Notas

  1. Informação obtida da palestra proferida pelo Professor Fábio Belo no Programa de Mestrado em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, no Campus Coração Eucarístico, no dia 24/06/09.
  2. A liberdade e o poder (aquilo que torna o sujeito sujeitado) devem coexistir para Foucault, não havendo um espaço no qual haja a liberdade total. Alípio de Souza Filho expõe que "[...] por definição, somente ocorrem práticas de liberdade onde relações de poder substituem realidades totalitárias de dominação. Na condição da dominação total dos sujeitos, a liberdade não se torna possível. A liberdade só pode existir em oposição a um poder, a poderes, pois o poder não impede a liberdade, limita-a, não importando sua origem, porque se exerce, o poder é limitante. A liberdade é da ordem das resistências às sujeições dos diversos poderes. O poder, longe de impedir a liberdade, excita-a. Como sabemos, Foucault subtrai a característica "negativa" do poder, o poder é produtivo, o poder fabrica, diz: se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, se apenas se exercesse de um Dodô negativo, ele seria muito frágil; se ele é forte, é porque produz efeitos positivos de desejo, de saber" (SOUSA FILHO, 2008, p. 17)
  3. Parresiásta é aquele que diz a verdade a qualquer custo, sem medir as conseqüências.
  4. FIUZA, C. A. C. . Limites à hermenêutica civil-constitucional. In: MACIEL, Adhemar Ferreira; DOLGA, Lakowsky; BERALDO, Leonardo de Faria; COSTA, Mônica Aragão Martiniano Ferreira e. (Org.). Estudos de Direito Constitucional. 1 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, v. 1, p. 325-336.
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Sobre a autora
Juliana Evangelista de Almeida

Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (IEC). Mestranda em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Juliana Evangelista. O Direito Civil-Constitucional e a hermenêutica do sujeito em Michel Foucault. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2577, 22 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17031. Acesso em: 3 mai. 2024.

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