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Ministério Público de resultados.

A atual missão institucional

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30/07/2010 às 13:47
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4- Criação de uma identidade funcional perante o Poder Judiciário

Se fizermos uma análise comparativa entre as diversas instituições públicas, veremos que o ponto em comum na consecução de uma identidade funcional e de um perfil próprio deve-se a uma defesa intransigente de suas atribuições e de seu proceder funcional. O Ministério Público se quiser consolidar sua identidade funcional, no sentido de não ser confundido indevidamente como mera peça acessória e instrumental no grandioso mister de distribuir justiça, deve adotar uma postura firme e intransigente na defesa de seus posicionamentos jurídicos.

Além disso, é cediço que o Judiciário brasileiro por conta da sua contínua confiança em um sistema legal antiquado baseado em demandas escritas (Sallas, 1998, p. 45), num direito de inspiração liberal, mostra-se ainda incapaz de lidar efetivamente com os complexos problemas sociais da pós-modernidade. E, portanto, diante disso, não se afigura recomendável ao MP adotar as seguintes posturas: 1- repassar, sic et simpliciter, por mero espírito burocrático, demandas de cunho social ao Judiciário, sem antes tentar providências resolutivas ao seu alcance; 2- aceitar passiva e resignadamente as decisões judiciárias que contrariem o interesse que lhe cabe curar.

Sob o foco desse objetivo pode-se recorrer sistematicamente das decisões que, de alguma forma, colidam com a manifestação ministerial e, principalmente, contrariem o interesse defendido pela instituição. Claro que isso, de início, pode criar um certo mal-estar entre membros de duas instituições que, por dever de ofício, trabalham juntos: promotor e juiz. Mas, se levado a cabo esse esquema de forma objetiva, desapaixonada e impessoal, ao final, obtém-se dois resultados: 1- uma melhor prestação jurisdicional; 2- a consolidação de uma identidade funcional ao membro do Ministério Público. Com isso, certamente, reinará harmonia e cordialidade entre os dois agentes, delimitando-se o campo de atuação de cada um.

Pode parecer paradoxal a compatibilização de uma disposição institucional cooperativa (vide item 2 deste estudo) com a defesa intransigente de competências e atribuições através dos meios recursais disponibilizados pela processualística, mas "não se pode estabelecer um sistema de cooperação extremamente complexo entre as diferentes esferas de poder sem que haja uma clara distribuição de funções e, sobretudo, respeito às áreas privativas de competência" (Mello, 1978, p. 63).

Ressalve-se, por necessário, que orecurso contra decisões judiciais que afrontem a manifestação do MP é uma forma de controle do arbítrio judicial, mesmo que não obtenha êxito em segunda instância. Obviamente, nem toda decisão contrária ao posicionamento ministerial desafia recurso, pois pode ocorrer que a fundamentação do decisum convença o agente ministerial da erronia de sua posição originária e que, no caso específico, se fez justiça. O importante é que toda decisão judicial enseje um juízo sucessivodo Ministério Público desembocando numa concordância tácita ou em imediato recurso.

Esse juízo sucessivo implica não apenas na consolidação do perfil demandista da instituição, mas também em uma forma de instigar o Judiciário, através de seus membros, a dar uma resposta mais eficiente às demandas sociais que estão por trás das ações do MP.


5- Dinamismo funcional

O Ministério Público foi moldado para a ação, para o combate, para a luta. A inércia, que é uma peculiaridade do Judiciário e uma de suas maiores qualidades (em respeito ao princípio da imparcialidade – pedra de toque de um sistema judiciário democrático), ao MP é um vício e um defeito. O dinamismo ou o poder ministerial de iniciativa não é apenas mais uma característica da instituição, mas uma garantia do sistema. Como o Estado não pode quedar-se inerte frente a determinadas situações que lhe cabe solver nem outorgar iniciativa à jurisdição, sob pena de comprometer sua imparcialidade, legitima outra instituição integrante de sua estrutura política (Ministério Público) para a tomada de iniciativas (Porto, 1998, p. 26).

O ofício desempenhado pelo juiz representa uma força estática, apenas declaratória do direito e reveladora da justiça, já o Ministério Público representa uma força dinâmica, sempre em ação, que promove essa declaração de direito, essa revelação da justiça, pondo em andamento a máquina processual, investigando, fiscalizando, promovendo responsabilidades que podem atingir a quaisquer dos três poderes: executivo, judiciário ou legislativo (cf. art. 129, II, da CF/88). A noção do Ministério Público e de seus deveres conduz a essa conclusão, pois, enquanto o juiz aplica imparcialmente o Direito para compor a lide, ele atua ativamentee com dinamismo, a fim de resguardar e fazer prevalecer o interesse público (a moralidade, a probidade pública etc.) na entrega da prestação jurisdicional (Mesquita, 1993, p. 27). Enfim, a sua ação tutelar se estende a todas as molas, a todos os escaninhos da máquina estatal, sempre como um órgão promovente, ativo, dinâmico.

Esse caráter dinâmico do MP contraposto à inércia jurisdicional responde pela harmonia do sistema. Se considerarmos que os interesses sociais e individuais indisponíveis exigem um plus protetivo, diante da inércia judicial ficariam, por vezes, órfãos de iniciativa. Com o fito de não comprometer a imparcialidade do Estado-Juiz e nem deixar ao desabrigo parcela dos direitos consagrados no ordenamento jurídico, foi conferida legitimidade ao Estado-Ministério Público para a tutela ativa ou interventiva de tais interesses (Porto, 1998, p. 23).

Não foi por acaso que o constituinte originário traçou para o Ministério Público o nítido perfil de órgão agente, promotor de medidas, empregando nos quatro primeiros incisos do art. 129 da CF (que estabelece as funções institucionais) o verbo promover. Neste parâmetro, é fundamental que o membro ministerial tenha em mente que o Judiciário é a última, porém não a única via para a solução e prevenção de conflitos. As soluções podem e devem ser pensadas pelo Ministério Público num engajamento produtivo e intersetorial com a comunidade e outros órgãos públicos.

Se o promotor de justiça pecar por excesso de combatividade ou de dinamismo, nosso sistema jurídico possui mecanismos capazes de corrigi-lo e coibir seus efeitos. No entanto, quando o promotor deixa de agir quando deveria, o prejuízo social resultante dessa omissão muitas vezes é irreparável. Proporcional à magnitude de suas funções, emerge para o promotor o colosso de sua responsabilidade e a gravidade de sua inércia. Não pode fechar os olhos para os desafios que se colocam à sua frente (Júnior, 1997, p. 102).


6- A gestão de resultados numa cultura de inovação: Ministério Público resolutivo

Os membros do MP, até pela forma rigorosa de seleção a que se submetem para ingressar na instituição, detêm um invejável cabedal jurídico e cultural. Na função também passam a deter prerrogativas e dispor de mecanismos jurídicos aptos a serem utilizados para tentar mudar a realidade de sua comarca, para tentar criar coisas que façam a diferença e não apenas para executar um trabalho burocrático (apresentando-se à sociedade como um ramo especializado da burocracia). Assumem o supremo desafio de aplicar a lei em uma sociedade submetida a rápidas e constantes transformações [12].

As necessidades sociais, os modos de vida, a organização das relações entre os homens evoluem e evoluirão sem cessar segundo o progresso das ciências e das técnicas [13]. Como diz o sociólogo alemão Leopold von Wiese (1932, p. 41), a "eterna mudança das coisas só permite o surgimento de fenômenos circunstancialmente condicionados", ou seja, que se submetem ao vai-e-vem histórico. Neste movimento dialético, tensões e conflitos são constantes. Iniciativas e ajustes, igualmente, surgem como necessários a cada estágio (Marchais, 1974, p. 25). E é nesta etapa que a atuação do membro do MP pode ser muito útil à sociedade.

Instituições como o Ministério Público tendem a enfraquecer e estiolar-se quando fracassam em satisfazer os anseios de justiça e de liberdade dos homens. Assim, no dizer de Bertand Russell (1958, pp. 15-16), se se quiser o desenvolvimento de uma sociedade orgânica, é necessário que as nossas instituições sejam fundamentalmente transformadas de molde a representarem esse novo respeito pelo indivíduo e pelos seus direitos, exigido pelo sentimento moderno.

O direito, instrumento que é dado ao Ministério Público manusear, nasce da vida e à vida serve [14]. E a vida é um complexo homogêneo de funções: fisiológicas, psíquicas, sociais, assim como físico-químicas, que se defronta constantemente com novos problemas a exigir novas soluções. O direito, e por via de conseqüência, o Ministério Público, não pode, diante dessa realidade cambiante, ser apenas um instrumento de estabilização e de ordem. Assume, por imperiosa necessidade da vida, uma função revolucionária: mudar para preservar ou resgatar uma ordem justa.

O Direito guarda uma inocultável vocação pragmática, estando predisposto, como instrumento da sã racionalidade humana, a resolver e equacionar problemas. Não se fazem leis pelo prazer bizantino de fazê-las [15], mas para montar esquemas práticos de proteção de interesses e anseios legítimos dos cidadãos.

Um sistema jurídico não é montado com o fim de ser apreciado em seus detalhes teóricos ou sutilezas estéticas, mas para lidar com questões práticas e funcionais, criar normas de regulação do convívio humano, propiciar a resolução justa de conflitos, garantir a adoção de medidas ordenadoras etc. O ethos do Direito é profundamente pragmático e utilitário.

Para evitar a terrível acusação de um jurista americano de que o "direito é apenas um mecanismo vazio, desprovido de conteúdo específico próprio e recebendo seu conteúdo das várias instituições não-jurídicas" (Hall, n/d, p. 111), o Ministério Público, como um dos principais aplicadores e intérpretes do Direito, assume a responsabilidade de pensar a ciência jurídica e seus mecanismos como alavancas de progresso social dentro de uma cultura de inovação e de contínuo reajuste. E para isso é preciso sair dos gabinetes e encontrar com o Direito nas ruas, deixando de ser apenas um feixe de competências a serviço do Estado (Foucault, 1979, p. 09).

O Ministério Público de perfil antigo (ou clássico, como queiram) se caracteriza por simplesmente reagir aos fatos sociais, aguardando que os fatos se tornem patológicos, conflituosos, para serem submetidos ao crivo judicial. É uma postura institucional reativa (inercial, fragmentária) a negar parcela valiosa de atribuições extrajudiciais do MP e que, claramente, se inspira no antigo art. 1º. da Lei Complementar n. 40/81:

"O Ministério Público, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, é responsável perante o Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das leis...".

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Esse entendimento responde por uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional no Brasil: a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo (Barroso, 1996, p. 396).

Essa mentalidade reativa conta com muitos defensores (Costa Machado, 1998, p. 74) e ainda prevalece, embora não mais atenda às exigências da cidadania inclusiva no mundo globalizado. Além disso, o Ministério Público preponderantemente demandista, dependente do Judiciário, é um desastre, pois o Poder Judiciário continua a responder mal às demandas que envolvem os direitos massificados e os pleitos da cidadania (Goulart, 1998, p. 120; Almeida/Parise, 2005, p. 612; Sadek/Lima/Araújo, 2001, p. 41).

O caráter reativo bem como a instrumentalização do MP na tarefa de apaziguamento social são teses insustentáveis na atual quadra histórica e atreladas ainda a uma interpretação nostálgica da ordem jurídica destronada com a CF/88. Que o Ministério Público é indispensável ao Judiciário, na realização do mister institucional deste (prestação da tutela jurisdicional), não há a menor dúvida (Rodrigues, 1999, p. 128; Porto, 1998, p. 17). Mas outras funções, tão ou mais importantes, são desenvolvidas extrajudicialmente, tanto que o próprio art. 127, da Constituição de 88 ao dizer que o MP é essencial à função jurisdicional do Estado, acrescenta-lhe a incumbência da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, aspectos mais abrangentes e igualmente relevantes da vida de um Estado, que não são necessariamente desenvolvidos perante o Judiciário.

Quando instaura inquérito civil, fiscaliza fundações, prisões e delegacias de polícia, promove audiências públicas para discutir problemas comunitários ou ainda quando estabelece compromissos de ajustamento, nota-se que o Ministério Público alarga e extrapola a órbita judicial, daí ter dito o legislador constituinte menos do que devia, na medida em que a instituição também é essencial em tarefas não jurisdicionais a si incumbidas (Porto, 1998, p. 17).

A fatia de atribuições extrajudiciais (um rol sempre crescente) tem obrigado a instituição a adotar uma postura assumidamente pró-ativa e resolutiva, em que passa a concentrar seus recursos e esforços na busca de respostas preventivas para os problemas comunitários. Ao invés de reagir contra incidentes ou fatos consumados (que em boa parte das vezes não encontram uma solução adequada com a submissão judicial), o MP passa a trabalhar para a solução dos próprios problemas em conjunto com a comunidade [16]. Neste novo perfil institucional, o promotor de justiça, como dizia Nietzsche (2005, p. 260), deve ser um homem antecipador, ou seja, deve se antecipar aos fatos, o que pressupõe uma nova atitude mental e uma renovada disposição para a ação.

O Ministério Público se debate entre dois tipos ideais de promotor: promotor de gabinete e promotor de fatos. O primeiro tipo pode ser definido como aquele que, embora utilize procedimentos extrajudiciais no exercício de suas funções, dá tanta ou mais relevância à proposição de medidas judiciais e ao exame e parecer dos processos judiciais dos quais está encarregado. Detalhe: o promotor de gabinete não usa os procedimentos extrajudiciais como meios de negociação, articulação e mobilização de organismos governamentais e não governamentais. O segundo tipo, o promotor de fatos, conquanto proponha medidas judiciais e realize atividades burocráticas ligadas à sua área, dá tanta ou mais importância ao uso de procedimentos extrajudiciais, mobilizando recursos da comunidade, acionando organismos governamentais e não governamentais e agindo como articulador político (Silva, 2001, pp. 134-135).

Por fim, pode-se dizer que uma gestão da atividade-fim do Ministério Público para alcançar resultados (um Ministério Público de resultados) deve apresentar algumas características ou adotar certas medidas: I- uma nova cultura organizativa que realce a busca por resultados, pondo destaque na formação de agentes de iniciativa e de mente aberta que escutem com interesse ideias novas; II- introdução de um parâmetro analítico apto a rever o desempenho dos objetivos estratégicos e a forma de sua execução; III- inserção de uma nova mentalidade onde o promotor possa perceber que entre as atribuições constitucionais e a lei tem um significativo espaço para definir suas prioridades e criar métodos de trabalho (Silva, 2001, p. 127); IV- estabelecimento de um diálogo institucional interno entre os diversos órgãos (de execução e de administração) com o fim de otimizar a cooperação e os círculos de inovação. V- criação de um núcleo de estudos e pesquisas em eficiência funcional.

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Sobre o autor
João Gaspar Rodrigues

Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. Ministério Público de resultados.: A atual missão institucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2585, 30 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17076. Acesso em: 19 abr. 2024.

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