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Uma leitura do sistema teórico finalista da ação à luz da política criminal garantista

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02/08/2010 às 16:59
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4. O sistema teórico finalista da ação à luz da política criminal garantista

Considerado um dos principais expoentes da teoria garantista, Luigi Ferrajoli realça em seus trabalhos a necessidade de buscar soluções para a crise do Direito, experimentada pela sociedade ao longo de vários anos, notadamente acerca da legalidade, do Estado social e do Estado nacional. O resgate da dimensão democrática do Estado de Direito Constitucional é sua preocupação constante.

Nas últimas décadas, têm ganhado espaço concepções e práticas absolutistas, fundadas na produção normativa de emergência e de exceção, geralmente visando à satisfação de interesses setoriais da sociedade, enfraquecendo o Estado de Direito e o Estado Democrático, que deve servir a todo o corpo social.

Segundo Luigi Ferrajoli, o termo garantismo pode ser compreendido a partir de três acepções: como um modelo normativo de Direito, como uma teoria crítica do Direito e como uma filosofia do Direito e crítica da política [18].

Em apertada síntese, na primeira acepção, como modelo normativo de Direito, especialmente no Direito Penal, refere-se ao princípio da estrita legalidade. Na segunda acepção, refere-se a uma teoria jurídica da validade, da efetividade e da vigência normativas. E, na terceira acepção, refere-se a uma filosofia política que impõe ao Direito e ao Estado um discurso normativo coerente com a tutela e a garantia de bens, valores e interesses.

O Estado garantista pode ser visto como um Estado de Direito substancialmente democrático, baseado no princípio da maioria como fonte de legalidade, na efetividade das garantias, no aumento dos direitos dos cidadãos e dos deveres do Estado.

Não obstante o aparente paradoxo existente na relação entre a política criminal e o garantismo, torna-se relevante e fundamental entender que essa relação é de interdependência entre os modelos, na medida em que se concebe uma política criminal de intervenção mínima.

Estudioso da teoria garantista, Sérgio Cademartori destaca que o pano de fundo teórico-geral do garantismo está constituído em grande parte pela importante distinção entre quatro diferentes predicados que se podem imputar às normas: justiça, vigência, validade e eficácia (efetividade). A norma é justa quando responde positivamente a determinado critério de valoração ético-político; vigente, quando isenta de vícios formais, obedecendo ao procedimento prescrito; válida, quando não está em contradição com nenhuma outra norma hierarquicamente superior; e eficaz, quando é de fato observada pelos seus destinatários [19].

Na lição de Luigi Ferrajoli, o Estado de direito garantista se apresenta como a melhor alternativa para limitar o poder, na medida em que exige uma concepção própria da teoria do direito e uma filosofia política. Este modelo de Estado diferencia-se dos demais Estados por ser um Estado social, e não liberal.

Segundo Sérgio Cademartori, o pensamento liberal concebeu um Estado de direito limitado apenas por proibições, correspondentes às garantias do indivíduo de não ser privado dos bens pré-políticos ou naturais (vida, liberdade, propriedade). Nesse sentido, as garantias liberais ou negativas consistem em deveres públicos negativos de não fazer – deixar viver e deixar fazer – as quais têm por conteúdo prestações negativas [20].

Segue o autor, concluindo, que quando as constituições incorporam apenas as proibições em garantia dos direitos de liberdade, tem-se caracterizado um Estado de direito liberal e, quando incorporar também obrigações correspondentes aos direitos sociais, estar-se-á diante de um Estado de direito social. A diferença decorre da mudança da base de legitimação do estado. Enquanto o Estado de direito liberal deve apenas não piorar as condições de vida dos cidadãos, o Estado de direito social deve também melhorá-las [21].

Destarte, os contornos teóricos do garantismo esboçam um modelo de minimização e de controle do poder punitivo estatal, na medida em que procuram proteger os direitos individuais contra as exacerbações punitivas do Estado fundadas no discurso da retribuição e prevenção do Direito Penal.

Alexandre Moraes da Rosa destaca que apesar de o garantismo ter sua origem vinculada ao Direito Penal, acabou evoluindo para alcançar foros de Teoria do Direito. Assim, a Teoria Geral do Garantismo é entendida como modelo de Direito baseada no respeito à dignidade da pessoa humana e seus direitos fundamentais, com sujeição formal e material das práticas jurídicas aos conteúdos constitucionais [22].

A crítica fornecida pelo modelo teórico garantista se dirige a esse duvidoso discurso do Direito Penal simbólico, não raro representado por políticas de criminalização voltadas aos setores mais complexos e problemáticos da sociedade, onde o próprio Estado se faz ausente no oferecimento de soluções básicas, alternativas aos problemas sociais, reagindo através da repressão penal. Nesse passo, o sistema penal se realimenta como sistema de desigualdade e de controle social seletivo, reduzindo as garantias constitucionais.

A proposta delineada pelo garantismo penal, conforme asseveram Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho, ampara-se no estabelecimento de critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a "defesa social" acima dos direitos e garantias individuais [23].

Diante disso, depois de analisados os principais fundamentos e as críticas da teoria finalista da ação, a política criminal e o garantismo penal, é possível estabelecer um liame entre esses elementos.

Não obstante as críticas, a teoria finalista da ação aproximou-se de uma concepção de conduta que realiza uma função de garantia, ao restringir a atividade legislativa favoravelmente ao indivíduo e limitar a capacidade do poder punitivo estatal. Assim, pode-se afirmar que o fundamento ontológico, utilizado no finalismo, é um fator limitador do poder punitivo do Estado.

Baseado na proteção dos direitos e garantias individuais, o garantismo procura articular mecanismos capazes de limitar o poder do Estado soberano, influenciado pelos acontecimentos históricos de transformação da sociedade. Nesse sentido, a limitação do poder, a partir da análise da legitimação, legalidade, existência, vigência, validade e efetividade do direito, constitui a pedra de toque do garantismo penal e traço estrutural da democracia.


Conclusões

Muito embora não exista previsão expressa na legislação penal brasileira, extrai-se de seu conteúdo que ela é nitidamente orientada pelo pensamento finalista, consubstanciado no sistema analítico de crime criado por Welzel. Contudo, ainda que finalista, o ordenamento jurídico-penal não encontra soluções adequadas para todos os problemas relacionados à conduta dos indivíduos em sociedade.

Conforme salientado, o finalismo inovou a sistemática e a dogmática no campo do Direito Penal, enriquecendo e revolucionando a discussão travada por Liszt e Beling, na conhecida teoria clássica do delito. Sem dúvida, constituiu um importante estágio de desenvolvimento da dogmática penal que persiste até hoje no ordenamento jurídico brasileiro.

Constatou-se que o processo de imputação finalista recebe influência direta do poder punitivo estatal, de acordo com a política criminal adotada, circunstância importante a ser considerada, sobretudo na atualidade, onde a linha político-criminal punitivista tem conquistado enorme espaço na sociedade, através de uma exagerada expansão.

De qualquer modo, verificou-se que a teoria finalista da ação aproximou-se de uma concepção de conduta que realiza uma função de garantia, ao restringir a atividade legislativa favoravelmente ao indivíduo e limitar a capacidade do poder punitivo estatal.

Segundo diversos autores, essa função de garantia se tornou frágil perante a expansão punitiva estatal que se apresenta na sociedade brasileira. Em razão disso, a concepção garantista de política criminal, através do controle do poder, procura proteger os direitos individuais contra as exacerbações punitivas do Estado fundadas no discurso da retribuição e prevenção do Direito Penal.

A crítica elaborada pelo modelo teórico garantista questiona esse duvidoso discurso do Direito Penal simbólico, revelado pela política de criminalização de determinados setores da sociedade, que pouco ou nada recebe do Estado em termos de soluções básicas alternativas aos problemas sociais, nutrindo o círculo vicioso da desigualdade e do controle social seletivo, bem como reduzindo as garantias constitucionais duramente conquistadas ao longo do tempo.

Conclui-se, portanto, que uma leitura do sistema teórico finalista da ação, à luz da política criminal garantista, requer a busca constante de um Direito Penal coerente com o modelo de Estado Constitucional, onde o norte deve ser a obediência aos limites decorrentes da Constituição, de suas garantias e de seus princípios, notadamente o da dignidade da pessoa humana. Nessa senda, o substrato do modelo adotado deve ser um sistema penal orientado na direção da máxima proteção da tutela da liberdade do cidadão contra o arbítrio punitivo estatal e da efetiva tutela dos direitos fundamentais, da legitimidade e da concretização do Estado Democrático de Direito.


Notas de rodapé

[1] MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoría general del delito. 2. ed. Bogotá: Editorial Temis S. A, 2001, p. 01.

[2] MUÑOZ CONDE, Francisco. Introduccion aL derecho penal.Barcelona: Bosch Casa Editorial S. A., 1975, p.175.

[3] ROXIN, Claus. Finalismo: um balanço entre seus méritos e deficiências (Trad. Marina Pinhão Coelho). Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 15, n. 65, mar-abr 2007, p. 11.

[4] ROXIN, Claus. Finalismo: um balanço entre seus méritos e deficiências (Trad. Marina Pinhão Coelho). Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 15, n. 65, mar-abr 2007, p. 20.

[5] GUARAGNI, Fábio André. As teorias da conduta em direito penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 201.

[6] GUARAGNI, Fábio André. As teorias da conduta em direito penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, 164.

[7] HIRSCH, Hans Joachim. Acerca de la crítica al "finalismo". Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 15, n. 65, mar-abr 2007, p. 102.

[8] GUARAGNI, Fábio André. As teorias da conduta em direito penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 250.

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[9] HIRSCH, Hans Joachim. Acerca de la crítica al "finalismo". Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 15, n. 65, mar-abr 2007, p. 77.

[10] HIRSCH, Hans Joachim. Acerca de la crítica al "finalismo". Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 15, n. 65, mar-abr 2007, p. 81.

[11] HIRSCH, Hans Joachim. Acerca de la crítica al "finalismo". Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 15, n. 65, mar-abr 2007, p. 86.

[12] ROXIN, Claus. Finalismo: um balanço entre seus méritos e deficiências (Trad. Marina Pinhão Coelho). Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 15, n. 65, mar-abr 2007, p. 10.

[13] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 132.

[14] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 134.

[15] ZIPF, Heinz. Introducción a la política criminal (trad. Miguel Izquierdo Macías-Picavea). Editorial Revista de Derecho Privado, 1979, p. 03-06 e 11.

[16] ZIPF, Heinz. Introducción a la política criminal (trad. Miguel Izquierdo Macías-Picavea). Editorial Revista de Derecho Privado, 1979, p. 13.

[17] SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 01.

[18] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Madrid: Trotta, 1995, p. 851.

[19] CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 79-80.

[20] CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 159-160.

[21] CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 160.

[22] ROSA, Alexandre Moraes da. Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material. Florianópolis: Habitus, 2002, p. 25

[23] CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 19.


Bibliografia

CADEMARTORI, Sérgio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 2. ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Madrid: Trotta, 1995.

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HIRSCH, Hans Joachim. Acerca de la crítica al "finalismo". Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 15, n. 65, mar-abr 2007.

MUÑOZ CONDE, Francisco. Introduccion al derecho penal.Barcelona: Bosch Casa Editorial S. A., 1975.

__________. Teoría general del delito. 2. ed. Bogotá: Editorial Temis S. A, 2001.

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SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

ZIPF, Heinz. Introducción a la política criminal (trad. Miguel Izquierdo Macías-Picavea). Editorial Revista de Derecho Privado, 1979.

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Sobre o autor
Marco Aurélio Souza da Silva

Pós-graduado em nível de especialização em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Assistente de Promotoria de Justiça no Ministério Público do Estado de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marco Aurélio Souza. Uma leitura do sistema teórico finalista da ação à luz da política criminal garantista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2588, 2 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17082. Acesso em: 17 nov. 2024.

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