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Política criminal na contemporaneidade.

Análise crítica acerca do Direito Penal do Inimigo

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RESUMO: Este texto tem como finalidade precípua analisar e questionar a neutralidade da construção teórica do direito penal do inimigo, tal qual elaborada por Günther Jakobs, contextualizando-a com o recrudescimento do direito penal contemporâneo.

PALAVRAS-CHAVE: direito penal; inimigo; recrudescimento.

SUMMARY: This text has as main purpose to analyze and to question the neutrality of the theoretical construction of the criminal law of the enemy made by Günther Jakobs, contextualizing it with the outbreak of the contemporary criminal law.

Key-words: criminal law – enemy – outbreak.


Este tema nos remete a um desconcertante questionamento: Jakobs, ao conceber tal fenômeno, o faz enquanto proposta político-criminal ou enquanto constatação de uma realidade contemporânea?

De acordo com as palavras do próprio Jakobs, ele seria um mensageiro que traz uma má notícia. [01] Neste sentido, Jakobs declara que diagnosticou um fato e que lhe parece mais coerente conscientizar-se em relação aos fenômenos insurgentes, por pior que pareçam, que negá-los e, com isso, acabar por generalizar uma situação que deve ser tratada de forma pontual.

Em consonância com sua visão sistêmica da sociedade – sob a qual o indivíduo só passa a ser pessoa através da qualidade de portador de um papel e enquanto cumpridor das expectativas de comportamento que lhe são impingidas dentro da comunidade jurídica que integra – passa a classificar como inimigo a todo aquele que, por princípio, se conduz de modo desviado e que, portanto, não presta uma segurança cognitiva de um comportamento pessoal. Assim, tomando por premissa filosófica os argumentos de HOBBES e KANT, mantém o status de cidadão para aqueles que não se desviam por princípio e priva-se de tal status àqueles "que me ameaçam constantemente". [02]

Seguindo esse raciocínio, Jakobs diagnostica a existência de um direito penal do inimigo que, ao contrário do direito penal do cidadão, não revalida normas, mas, combate perigos. Neste âmbito, o legislador passa a elaborar uma legislação de luta, por exemplo:

(...) no âmbito da criminalidade econômica, do terrorismo, da criminalidade organizada, no caso de delitos sexuais e outras infrações penais perigosas, (...) pretendendo-se combater em cada um desses casos a indivíduos que em sua atitude (...), em sua vida econômica (...) ou mediante sua incorporação numa organização (...) tenham se afastado, provavelmente de maneira duradoura, ao menos de modo decidido, do Direito, ou seja, que não prestam a garantia cognitiva mínima que é necessária para o tratamento como pessoa. (...) não se trata, num primeiro momento, de compensação de um dano à vigência da norma, mas da eliminação de um perigo: a punibilidade se adianta até o âmbito da preparação, e a pena se dirige ao asseguramento frente a fatos futuros e, não, a sanção de fatos cometidos. [03]

Especialmente após o acirramento do terrorismo atingindo o mundo ocidental, fato marcante com o 11 de setembro de 2001, há uma propensão de recrudescimento e perda de garantias no âmbito do direito penal e, inclusive, do processo penal, ao se tratar o terrorista como delinqüente cidadão. Nesse sentido, Jakobs entende que admitir um direito penal do inimigo claramente delimitado é menos perigoso, desde a perspectiva do Estado de Direito, que entremesclar todo o direito penal com fragmentos de regulamentações próprias do direito penal do inimigo e faz o seguinte alerta:

(...) quem inclui o inimigo no conceito de delinqüente cidadão não deve assombrar-se caso se mesclem os conceitos de ‘guerra’ e ‘processo penal’. De novo, em outra formulação: quem não quer privar o Direito penal do cidadão de suas qualidades vinculadas à noção de Estado de Direito – controle das paixões; reação exclusivamente frente a fatos exteriorizados; respeito à personalidade do delinqüente no processo penal, etc. – deveria chamar de outro modo àquilo que se deve fazer contra os terroristas, caso não se queira sucumbir, ou seja, deveria chamá-lo de Direito penal do inimigo, guerra contida (grifo nosso). [04]

Silva Sánchez, ao analisar o fenômeno do direito penal do inimigo, classifica-o como sendo uma terceira velocidade do direito penal. Neste âmbito seria possível aplicar sanções privativas de liberdade dentro de um sistema menos garantista, para o qual concorra uma ampla relativização de garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais. Pela característica que assume o inimigo, como um sujeito que abandona de forma duradoura o direito, apresentando uma ausência da mínima segurança cognitiva em sua conduta, seria mais adequada uma contenção através de medidas de segurança aplicadas a inimputáveis perigosos que exatamente a aplicação de uma pena, num claro regime de exceção, que só seria legítimo num contexto de emergência. [05]

O diagnóstico feito por Jakobs e as prováveis conseqüências suscitadas são alvo de duras críticas por boa parte da doutrina. Em relação a esse diagnóstico, o próprio Jakobs afirma existirem inúmeras tomadas de posição por parte da doutrina, quase todas num sentido de crítica e de negação, que acabam por chegar a uma posição surpreendente, para o âmbito científico, de que o diagnóstico dá medo e que sua formulação é indecorosa. A tais posicionamentos, Jakobs tece um único comentário: "(...) certamente, o mundo pode dar medo e, de acordo com um velho costume, mata-se o mensageiro que traz a má notícia por conta do indecoroso de sua mensagem. Nenhuma palavra mais sobre isto". [06]

Cancio Meliá, com quem Jakobs publicou sua obra sobre o tema, concorda com o diagnóstico e, inclusive, compartilha da preocupação central que permeia toda a elaboração feita por Jakobs: que as regras próprias de combate ao inimigo – melhor se encaradas dentro da formulação política adequada, como medidas de um estado de exceção – contagiem o núcleo do direito penal. Sobretudo porque, diferentemente do que acontece nos Estados Unidos, onde se reconhece abertamente que se trata de uma guerra, na Europa tais medidas são implementadas sob o manto de uma pretendida e total "normalidade constitucional", incrementando os riscos de contágio a todo o direito penal. [07]

Muito embora Cancio Meliá comparta do diagnóstico feito por Jakobs, diverge, com razão, em relação à forma de lidar com este. Nesse sentido, de forma extremamente lúcida, tece duas críticas centrais às formulações de Jakobs: 1) aquilo a que se denomina direito penal do inimigo não pode ser considerado direito; 2) o direito penal do inimigo acaba por gerar uma reação internamente disfuncional. [08]

1.Não pode ser considerado direito penal posto que a função da pena neste setor difere da função que a pena desempenha no direito penal – a pena não estabiliza normas, mas, sim, demoniza determinados grupos de infratores – portanto, representa uma quebra ao direito penal do fato, transfigurando-se em características próprias de um direito penal do autor.

2.Desde a perspectiva da pena e do direito penal com base na prevenção geral positiva, a reação que reconhece excepcionalidade à infração do inimigo mediante uma mudança de paradigma de princípios e regras de responsabilidade penal é disfuncional, posto que o direito penal do inimigo praticamente reconhece - ao optar por uma reação estruturalmente diversa - a competência normativa, ou seja, a capacidade do infrator de questionar a norma. Portanto, desde a perspectiva do comportamento do inimigo como, por exemplo, o terrorista – inimigo por excelência – que apresenta um comportamento de enfrentamento a ordem posta, é muito mais idôneo confirmar a normalidade, ou seja, negar a excepcionalidade reagindo através dos parâmetros normais do sistema jurídico-penal.

Ademais das coerentes formulações suscitadas por Cancio Meliá, ainda é cabível um adendo de cunho filosófico a questionar o paradoxal direito penal do inimigo: não representaria uma quebra no dogma contratualista que fundamenta as bases do moderno Estado-nação? A proposta de desconsideração da condição de cidadão imposta ao inimigo fere a idéia de salvaguarda dos direitos fundamentais que embasam o contratualismo, sob o qual se erigiu o Estado moderno. Logo, rompe com a idéia contratualista de formação do próprio Estado, a partir da qual cada cidadão cede uma parcela de sua liberdade em nome de uma proteção mais eficiente, a ser realizada exclusivamente pelo Estado. Se permitirmos ao Estado, cuja função precípua é nos proteger, que ele desconsidere nossa condição inerente de cidadãos, condição esta que é a base da legitimação do poder estatal, quem nos protegerá do Estado a partir do momento em que a base que o legitima é por ele desconsiderada?

Diante do exposto, não há como negar um retorno a um direito penal de autor, tal qual já se praticou no primeiro terço do século XX, ficando patente que se amolda muito mais a um regime de exceção que a um regime de direito, conforme o entendemos sob a égide de um Estado democrático de Direito. É fato que uma legislação permeada de elementos de um tal regime de exceção vem sendo construída já há algum tempo, principalmente nos Estados Unidos e Europa, com largos passos de influência sobre a legislação das últimas décadas na América Latina. [09] Há muito, os agentes que atuam em nome do Estado, no que tange à segurança pública, seja nos Estados Unidos e na Europa, seja na América Latina, vêm tratando seus dissidentes, indiscriminadamente – leia-se àqueles que provêm das classes populares – não só como excluídos que precisam ser controlados, mas também como verdadeiros inimigos. Nesse sentido vejamos um trecho de um parecer proferido por um procurador de Justiça do Estado de São Paulo em julgamento de um adolescente infrator:

(...) em solo intolerante para com a criminalidade violenta e cioso dos direitos humanos do cidadão, ensina-se que, como até mesmo o mero bom senso já seria capaz de propor, não pode o Estado permitir-se a insanidade de autorizar que se veja livre e sem amarras quem, pela prática de infração penal grave, revelou possuir perigosa propensão criminal, assim como não admitiria que um animal selvagem predador [!] se aventurasse pelas ruas da cidade (grifo no original). [10]

Quando o Estado, por meio dos seus agentes, em uma manifestação oficial, compara um adolescente a um "animal selvagem predador", pode-se temer pelo futuro da democracia. É mais um aspecto de um fenômeno que já se tornou lugar-comum nos discursos político-jurídicos – a fantasmagorização da sensação de violência generalizada que nos atinge a todos – não deixa de ser mais um aspecto da sociedade da insegurança, fartamente utilizável pelo setor político como meio fácil de promoção. É impressionante como essa questão mexe com o imaginário coletivo – sedento de segurança, nesse mundo permeado de incertezas – a segurança transforma-se na nova moeda não só no âmbito interno, mas também no cenário internacional. A questão do terrorismo está na ordem do dia dentro das questões políticas prementes no mundo contemporâneo. A sensação de medo – seja por conta da insegurança provocada pela violência urbana nos grandes centros, seja por conta das inseguranças provocadas pelos riscos da modernidade ou pelo terrorismo – é algo abstrato, inatingível em sua completude, algo para o qual não há expectativas de satisfação absoluta.

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Em nome da segurança, da paz e em combate ao inimigo invisível – o terrorismo – justificam-se as maiores atrocidades políticas, muitas vezes com um forte viés econômico. É um poço de manipulações sem fundo, quando em mãos de mentes maquiavélicas: ganha-se eleição na maior potência do mundo sob a égide desse argumento; invadem-se países e consegue-se legitimar tal invasão perante a comunidade internacional – ou, ao menos, forçar uma aceitação – tudo em nome do combate ao terror. Um show de sedução e convencimento através da manipulação dos medos que povoam o inconsciente coletivo, que levam a uma visão estreita de mundo e aos perigos do pensamento único, onde não há espaço às contra-argumentações: "Cada nação, cada religião, tem de tomar uma decisão agora. Ou estão conosco, ou estão com os terroristas (...)". Com tais argumentos conclamava Bush que seria imperioso travar uma batalha contra o "inimigo predador", que consistiria em uma "monumental luta entre o bem e o mal". [11]

O mesmo discurso é usado em esferas completamente díspares: o adolescente, no âmbito interno, transforma-se em "animal predador selvagem", enquanto o terrorista, perante a comunidade internacional, é o "inimigo predador". Diante destas constatações, é fundamental que, ao invés de negar o óbvio, a ciência do direito penal deva se conscientizar em relação a tal movimento político-criminal, a fim de exigir uma firme separação entre regime de exceção e regime jurídico-penal, ou seja, a fim de combater qualquer tipo de regime de exceção. Somente através desta tomada de consciência é possível pensar em contra-argumentar esse movimento político-criminal que se vale da sensação generalizada de medo que nos acomete para justificar toda sorte de transgressões jurídico-penais.

De acordo com Jakobs, não se trata de legitimar um indiscriminado direito penal do risco ou, numa proporção ainda mais desmedida, um direito penal do terror/do inimigo. Trata-se de não confundir um regime de exceção – o terror deve ser tratado como exceção – com o sistema jurídico-penal e, em nome do combate à exceção, contagiar todo o sistema jurídico-penal com características que lhe são estranhas. Entretanto, ao constatar e pleitear tal diferenciação de tratamento, Jakobs acaba por admitir um regime de exceção. Admitir um regime de exceção, independente de quais os fins a que se quer chegar, é um retrocesso que nos parece inconcebível dentro de uma concepção de direito penal própria de um Estado de Direito.


BIBLIOGRAFIA

DITTICIO, Mário Henrique. Sobre ratos gigantes e seus caçadores. Boletim IBCCrim, ano 12, n. 147, fev., 2005, p. 02.

JAKOBS, Günther. Sociedad, norma y persona en una teoría de un Derecho penal funcional. Traduzido por Manuel Cancio Meliá e Bernardo Feijóo Sánchez. Madrid: Civitas Ediciones, reimpressão da 1. ed., 2000.

______ e CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. Traduzido por Manuel Cancio Meliá. Madrid: Civitas Ediciones, 2003.

LUHMANN, Niklas. Introducción a la Teoría de Sistemas. Traduzido por Javier Torres Nafarrete. Barcelona: Anthropos, 1996.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais.Traduzido por Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002.


Notas

  1. In: Derecho penal del enemigo. Traduzido por Manuel Cancio Meliá. Madrid: Civitas Ediciones, 2003, p. 16-17.
  2. No direito natural de argumentação contratual estrita (ROSSEAU e FICHTE), todo delinqüente é visto como inimigo. Entretanto, a fim de que se mantenha um destinatário para as expectativas normativas, Jakobs entende preferível manter o status de cidadão para aqueles que não se desviam por princípio (HOBBES e KANT). In: Derecho penal del enemigo, op. cit., p. 55.
  3. Ibid., p. 38-40. (Tradução livre da autora).
  4. Ibid., p. 42. (Tradução livre da autora).
  5. In: A expansão do direito penal:aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais, p. 148-151.
  6. JAKOBS, Günther e CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo, op. cit., p. 15.
  7. Prólogo de Cancio Meliá à obra em conjunto com Jakobs. In: Ibid, p. 16-17.
  8. Ibid., p. 89-102.
  9. Numa análise crítica da legislação brasileira das últimas décadas, verificam-se vários pontos dignos de um regime de exceção. Nosso melhor exemplo configurou-se recentemente com a adoção da Lei 10.792/03, que modificou a Lei de Execução Penal (LEP), estipulando o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), prevendo uma disciplina carcerária muito mais rígida para alguns presos que demonstrem "altos riscos para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade" (vide o § 2º, art. 52 da LEP), numa clara demonstração de um direito penal do autor.
  10. Trecho extraído do parecer do procurador de Justiça, copiado na conclusão da fundamentação do acórdão proferido pela Câmara Especial do TJ/SP no julgamento (em 06.12.04) do Habeas Corpus n. 115.133-0. Neste, o defensor do adolescente condenado em primeira instância pela prática de ato infracional equiparado a tráfico de entorpecentes, requeria ao Egrégio Tribunal que a apelação interposta contra a sentença fosse recebida em efeito suspensivo, a fim de que o adolescente pudesse aguardar o julgamento da apelação em liberdade. In: DITTICIO, Mário Henrique. Sobre ratos gigantes e seus caçadores. Boletim IBCCrim, ano 12, n. 147, fev., 2005, p. 02.
  11. Trechos do pronunciamento do Presidente Bush em 12.09.2001. In: Remarks by the President. Washington: Office of the Press Secretary, 12.09.2001. (Tradução livre da autora).
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Sobre o autor
Daniela Carvalho Almeida da Costa

Mestre e Doutora em Direito Penal pela USP. Especialista em Direito Penal pela Universidad de Salamanca. Professora da graduação e Pós-graduação do Curso de Direito da Faculdade de Sergipe (FaSe). Professora Adjunto I da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Daniela Carvalho Almeida. Política criminal na contemporaneidade.: Análise crítica acerca do Direito Penal do Inimigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2586, 31 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17089. Acesso em: 29 mar. 2024.

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