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Coisa julgada, justiça material e segurança jurídica

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3 Relativização da coisa julgada: a controvérsia

"A análise desta controvérsia deve ter como ponto de partida o seguinte questionamento: será a coisa julgada, com sua eficácia sanatória geral, capaz de sanar a inconstitucionalidade contida na sentença?" (CÂMARA, 2006, p. 11).

É perguntar: seria possível admitirmos a subsistência no mundo jurídico de uma decisão transitada em julgado contrária aos princípios e valores basilares da norma fundamental, norma esta de onde todo e qualquer ato do poder público deve extrair o seu fundamento de validade?

A doutrina divide-se radicalmente sobre o tema, sendo possível encontrar argumentos bastante sólidos e relevantes tanto em favor como contrários à tese da relativização.

3.1 CONTROVÉRSIA QUANTO AO REGIME JURÍDICO (ENQUADRAMENTO NORMATIVO) DA COISA JULGADA

Ora, é sabido que a coisa julgada tem assento no rol dos direitos fundamentais, mais precisamente, no art. 5º, XXXVI da Carta Federal: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". O que não está ainda pacificado na doutrina, como será demonstrado, é a questão do seu regime jurídico, ou seja, saber se o conceito, alcance, regulamentação e limites da garantia da coisa julgada são de índole constitucional ou infraconstitucional.

Delgado (2002) afirma que se impõe a relativização da coisa julgada toda vez que haja agressão a um mandamento constitucional. Conforme o autor, está em jogo a própria dimensão ética do Estado, o qual não pode dar guarida à decisão que tenha ferido os primados da moralidade e da legalidade, que são uma exigência do Estado Democrático de Direito. Para o autor, tal decisão nunca poderá ter força de coisa julgada, sendo possível, a qualquer tempo, sua desconstituição, na medida em que o regime jurídico da coisa julgada é de ordem infraconstitucional e, portanto, de hierarquia inferior à Carta Magna.

Por outro lado, Nery Jr. (2006), lança severa crítica à teoria da relativização, argumentando que o termo não passa de um eufemismo, posto que na verdade o que se pretende é desprezar a coisa julgada como se ela nunca tivesse existido, trazendo tal atitude, como conseqüência, a "quebra do Estado Democrático de Direito, fundamento constitucional da própria República brasileira". (NERY Jr., 2006, p. 257).

Alguns autores, como Nascimento (2002), Dinamarco (2002), Delgado (2002) e Wambier (2003), entendem que embora a norma trazida pelo art. 5º, XXXVI da Carta da República tenha dado proteção constitucional à coisa julgada, todos os aspectos que a determinam e delineiam ficaram a cargo da legislação ordinária.

In expressi verbis, ainda a lição de Delgado acerca da questão:

O tratamento dado pela Carta Maior à coisa julgada não tem o alcance que muitos intérpretes lhe dão. Consoante se observa da leitura do dispositivo (art. 5º, XXXVI, CF), a regra nele insculpida se dirige ao legislador ordinário. Trata-se, pois de sobre-direito, na medida em que disciplina a própria edição de outras regras jurídicas pelo legislador, ou seja, ao legislar é interdito ao poder legiferante ‘prejudicar’ a coisa julgada. É esta a única regra sobre coisa julgada que adquiriu foro constitucional. Tudo o mais no instituto é matéria objeto de legislação ordinária. (Delgado, 2002, p. 84).

Isto é, para estes autores a norma veiculada pelo referido artigo da constituição tem como destinatário, única e especificamente, o legislador infraconstitucional, enviando-lhe a determinação de que lei nova não poderá alterar o conteúdo da sentença proferida em um determinado processo, quando aquela já tenha transitado em julgado.

Veja-se também a opinião de Wambier:

Não se deve, portanto, superestimar a proteção constitucional à coisa julgada, tendo sempre presente que o texto protege a situação concreta da decisão transitada em julgado contra a possibilidade de incidência de nova lei. Não se trata de proteção ao instituto da coisa julgada, (em tese) de molde a torná-la inatingível, mas de resguardo de situações em que se operou a coisa julgada, da aplicabilidade de lei superveniente. (WAMBIER, 2003, p. 171).

Ainda com referência à doutrina que se põe favorável à relativização do caso julgado inconstitucional, está Theodoro Jr. (2006) o qual expõe o entendimento de que por ter regime jurídico infraconstitucional, a coisa julgada deverá sempre ceder passo ao Princípio da Supremacia da Constituição, uma vez que este é hierarquicamente superior àquele regime, in verbis:

A inferioridade hierárquica do princípio da intangibilidade da coisa julgada, que é uma noção processual e não constitucional, traz como consectário a idéia de sua submissão ao princípio da constitucionalidade. Isto nos permite a seguinte conclusão: a coisa julgada será intangível enquanto tal apenas quando conforme com a Constituição. Se desconforme, estar-se-á diante do que a doutrina vem denominando coisa julgada inconstitucional. (THEODORO JR., 2006, p.94).

Assim, conclui-se que o regime jurídico da coisa julgada é infraconstitucional, posto que a constituição no art. 5º, XXXVI, impede tão-somente que a lei retroaja para atingir a coisa julgada. É o que Lima (1997) chama de Princípio da não-surpresa, que impede apenas que inovação legal atinja o comando de uma determinada sentença já transitada em julgado, dada na resolução de um caso concreto específico. Neste mesmo sentido, Araújo (2007, p. 131), para quem

a Constituição da República não se preocupou na definição do instituto da coisa julgada, devendo tal norma ser complementada pelos dispositivos infraconstitucionais.Esta conceituação infraconstitucional, a nosso ver, permitirá traçar os parâmetros do funcionamento adequado desta garantia, pois que existem hipóteses de ações autônomas desconstitutivas da coisa julgada (e.g. ação rescisória e revisão criminal) já previstas no ordenamento Máximo, o que não se vislumbraria caso a garantia fosse absoluta.

Portanto, é perfeitamente possível a alteração em abstrato da coisa julgada, como um instituto de direito processual civil, no que diz respeito à sua amplitude ou controle. Pois se assim não fosse, "a ação rescisória seria considerada inconstitucional, dado que se trata de remédio jurídico que tem como único objetivo destruir a coisa julgada". (LIMA, 1997, p. 86).

Inversamente, Nojiri (2006) contra-argumenta afirmando que o alcance do inciso XXXVI do art. 5º da CF, não foi bem compreendido, talvez pelo fato de ter dito menos do que queria dizer (lex minus dixit quam voluit).

O autor interpreta extensivamente o dispositivo porque para ele, na verdade, se há proibição da lei retroagir seus efeitos para apanhar a coisa julgada, "há também proibições de atos judiciais, e de atos administrativos, além dos legislativos, de terem efeitos retroativos incidentes sobre a res iudicata". (NOJIRI, 2006, p. 318).

No mesmo sentido, Góes (2006), defende o caráter constitucional da coisa julgada, ainda mais pela sua localização topográfica no Texto Maior, encartada que está no rol dos direitos fundamentais. Sendo, segundo a autora, por isso mesmo, uma cláusula pétrea conforme estabelece o §4º do art. 60.

Em sendo assim, "a coisa julgada é norma-princípio constitucional e não mera norma-regra do diploma processual civil, como núcleo que irradia e imanta todo o ordenamento jurídico". (GÓES, 2006, p. 145).

José Ignácio Botelho de Mesquita (2005) assevera que a permissão para que o legislador ordinário promova a restrição ou abolição da coisa julgada tornaria ineficaz o dispositivo constitucional que a protege, causando uma inversão na hierarquia das normas jurídicas.

Marinoni, negando também a tese da infraconstitucionalidade do enquadramento normativo da coisa julgada, afirma que o seu regime jurídico é, na sua plenitude, de estatura constitucional, uma vez que esta é uma garantia do cidadão em face do poder do Estado:

A coisa julgada é inerente ao Estado de Direito e, assim, deve ser vista como um subprincípio que lhe dá conformação. Não há como aceitar a tese no sentido de que a garantia da coisa julgada material, insculpida no art. 5º, XXXVI, da CF dirige-se apenas ao legislador, impedindo-o de legislar em prejuízo da coisa julgada. Ora, como é evidente, a coisa julgada é garantia constitucional do cidadão diante do Estado (em geral) e dos particulares. (MARINONI, 2006, p. 679).

A meu ver, razão assiste à doutrina que sustenta a infraconstitucionalidade do enquadramento normativo do regime jurídico da coisa julgada, pois é induvidoso que a lei ordinária possa prever certas hipóteses para mitigação ou desconstituição da coisa julgada material. Ora, a ação rescisória, os embargos à execução e a impugnação ao cumprimento da sentença são limites infraconstitucionais impostos à autoridade da coisa julgada e nem por isso são preceitos normativos inconstitucionais.

Entretanto, penso também que a controvérsia estabelecida sobre o assento constitucional ou não do regime jurídico da coisa julgada não traz prejuízo ao estudo da sua relativização. Ora, é óbvio que tanto a segurança jurídica como os princípios da Supremacia da Constituição e da justiça são valores caros ao Estado Democrático de Direito. Mas deve-se, neste ponto, relembrar a lição comezinha de que não há qualquer direito fundamental de índole absoluta, isto é, haverá sempre uma ocasião em que havendo um embate insuperável entre dois princípios, ainda que ambos sejam fundamentais e de estatura constitucional (v.g., segurança jurídica versus dignidade da pessoa humana), um deles haverá de ser mitigado através de um exercício de ponderação de valores realizado pelo intérprete, tendo sempre em vista a melhor resolução para o caso concreto:

É preciso considerar, portanto, que os princípios de segurança e certeza jurídicas consubstanciados pela coisa julgada convivem com outros princípios constitucionais e com eles devem ser harmonizados tendo em vista o completo equilíbrio do sistema jurídico. (CAVALCANTE SILVA, 2006, p. 7).

3.2 CONTROVÉRSIA QUANTO À RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA COM FUNDAMENTO NA INJUSTIÇA DA DECISÃO E NA VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Afirma Armelin que a grave injustiça e a violação dos valores basilares do ordenamento jurídico constantes em uma determinada decisão judicial, mesmo que já transitada em julgado, justificam a "erosão" da auctoritas rei iudicatae

Não restam dúvidas que a sacralização da coisa julgada material vai sendo paulatinamente erodida, aceitando-se a sua relativização sempre que o conflito de valores torna-se mais agudo em razão da intensidade da injustiça do caso concreto ou do grau de sua colidência com os princípios informativos e fundamentais do ordenamento jurídico. (ARMELIN, 2006, p. 94).

Da análise dos seguintes casos pinçados do cotidiano forense por Lima (1997), aduz o autor que fica patente a injustiça e o grave prejuízo ao princípio constitucional da isonomia quando, por interpretações distintas da mesma espécie normativa, decisões judiciais podem chegar a resultados antagônicos para as mesmíssimas situações de fato.

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Magoa fundo a noção de justiça, v.g., que determinado contribuinte pague certa exação, porque vencido em ação onde argüiu a inconstitucionalidade do tributo, quando todos os demais (ou muitos, ou alguns, ou outro) venceram suas demandas e livraram-se do ônus tributário [...]. A comunidade jurídica assistiu surpresa e impotente, a formação de coisas julgadas em processos idênticos, com soluções antagônicas. Assim, quanto ao reajuste de 147,07%, reclamado pelos aposentados em setembro de 1991; quanto ao saque do FGTS mercê da alteração do regime de emprego de celetista para estatutário; quanto ao reajuste de 84,32% reclamado por empregados particulares e servidores públicos, em março de 1990. Nestes casos e em vários outros, as decisões judiciais, inclusive as dos tribunais superiores, ora sufragaram uma tese, ora a outra, criando coisas julgadas intangíveis e garantindo direitos a uns e negando a outros, sem embargo de estarem todos na mesma e inalterada situação. Casos há, e não são poucos, onde servidores da mesma repartição e no exercício dos mesmos cargos e funções recebem remunerações diferentes, justos porque uns venceram e outros perderam suas demandas. Nestes casos, olvida-se o princípio constitucional da isonomia, maltrata-se a regra magna da prevalência do interesse público sobre o privado, aniquila-se o princípio do Direito Administrativo, de que todos devem, na mesma medida, contribuir para a manutenção do Estado, espanca-se o valor psicossocial da justiça, tudo em louvor à coisa julgada. (LIMA, 1997, p. 116).

Nestas situações, tendo em vista o efeito psicológico do princípio da igualdade sobre os jurisdicionados, não há como permitir que o ordenamento jurídico permaneça desprovido da solução adequada para os "casos de julgamentos díspares que revoltam os protagonistas, deixam perplexa a sociedade e desorganizam o meio social" (LIMA, 1997, p.110).

Valendo-se de uma análise metajurídica do embate entre segurança e justiça, J.J. Calmon de Passos (apud ARMELIN, 2006, p.73), relaciona a prevalência de um ou outro valor com as forças atuantes no meio social, de modo que para o autor a dialética entre justiça e segurança jurídica não é nada mais nada menos do que o reflexo da tensão entre Poder (status quo) e Sociedade Civil:

O processo persegue dois objetivos que, no final das contas, são os objetivos também buscados pela própria ordem jurídica. Nem poderia ser diversamente, visto como o processo é ao lado do adimplemento (aplicação voluntária do direito) o outro modo pelo qual se efetiva ou se realiza o direito. São eles a justiça e a segurança, ou em outros termos, a justa participação de todos nos bens da vida e a pacificação social. Esses objetivos deveriam se complementar, integrando-se em algo que bem poderíamos simbolizar com a palavra JUSTIÇA, assim maiúscula e proeminente. Na prática isso não ocorre. Antes eles se porfiam dialeticamente, ora um interferindo no outro, em seu prejuízo e detrimento. Porque, em verdade, como já frisamos, a ordem jurídica é a resultante da tensão dialética, nunca eliminada, entre a vocação do Poder para excluir, discriminar, privilegiar, estabilizar, e a vocação da sociedade civil de obter, de modo mais acentuado, melhor participação nos bens da vida, com satisfação do maior número possível das necessidades individuais e coletivas, que a vida social engendra e a formação de cada qual particulariza. Quando a sociedade civil é frágil em termos de participação e organização, prevalecem os valores relacionados com a pacificação social e a segurança, que beneficiam o poder, visto como privilegiam o status quo. Quando aquela sociedade logra maior participação e tem melhor organização, predominam os valores de justiça, que proporcionam mais eqüitativa fruição dos bens da vida por maior número.

No entanto, os seguintes autores criticam os "relativistas" pelo fato de não estabelecerem, de forma segura, o que se entende por Justiça, quando a contrapõem à segurança jurídica representada pelo instituto da coisa julgada material.

Marinoni (2006, p. 248) afirma que os defensores da relativização aparentemente "partem de uma noção de justiça como senso comum, capaz de ser descoberto por qualquer cidadão (l'uomo della strada), o que a torna imprestável a seu propósito, por sofrer de evidente inconsistência".

Ainda segundo Marinoni (2006), como não existe um sistema normativo perfeito, que assegure totalmente a justiça da decisão, não pode ainda o ordenamento jurídico despojar-se do princípio garantidor da segurança jurídica, pois, do contrário, permitir-se-á o surgimento de situações ainda mais injustas. Do mesmo modo, Ferraz Júnior (apud ARAÚJO, 2007, p. 141) entende que "a oposição entre justiça e segurança pode ser remontada a Radbruch quando afirmava que, diante da impossibilidade de se certificar o que é justo, cabia a quem de direito competente, estabelecer o que é jurídico."

Diante da tensão entre a segurança e justiça, Góes (2006) invoca a premissa de que a decisão judicial é válida porque representa a vontade da Lei, ou seja, é válida porque oriunda do Estado-Juiz e não porque é justa. Segundo a autora, a justiça que importa ao Estado é a realizável, é o justo possível. Não se pode sobrevalorizar a justiça do caso concreto em detrimento da segurança jurídica geral.

Nojiri (2006) defende a tese de que a única justiça que se pode aferir com alguma dose de certeza e confiança, válida para o sistema jurídico normativo, é a da "justiça formal (ou instrumental), que é aquela que se extrai do complexo de regras do ordenamento" (NOJIRI, 2006, p. 324).

Eurico de Santi e Paulo César Conrado (apud Nojiri, 2006, p. 325) sustentam que:

A coisa julgada não serve para fazer justiça material, serve para outorgar segurança ao direito, segurança às partes da contenda, segurança a terceiros que encontram na coisa julgada um porto seguro para a realização de outros negócios jurídicos. Faz, a seu modo, outra justiça: a formal, a única que importa para o direito. A segurança jurídica, realizadora da justiça formal, se sobrepõe à idéia de justiça material

Batista aduz que os argumentos utilizados na defesa da relativização são demasiadamente abstratos, v.g. injustiça grave, desprovidos de qualquer intimidade com a concreta controvérsia judicial e com o cotidiano da prática forense. Com lastro neste raciocínio desafia:

Este é um discurso apropriado para uma sala de aula, produzida ao estilo de nossas universidades; ou para um livro de doutrina. Todos, porém haverão de concordar em que será necessário testar o projeto de "relativização" da coisa julgada em sua dimensão, digamos, funcional e pragmática, indagando como as coisas se darão quando, a tranqüila segurança do discurso teórico, perdendo a dimensão estática e formal com que o raciocínio abstrato lhe protege, tenha de descer das alturas, para enfrentar as inimagináveis diversidades dos casos concretos. (BATISTA, 2006, p. 280).

Nery Jr. (2006) prega que a sentença uma vez revestida pelo manto da intangibilidade que lhe atribui a res iudicata, assim se manterá, sendo irrelevante perquirir-se a (in)justiça do comando que emerge do seu dispositivo, haja vista que a coisa julgada material "tem força criadora, tornando imutável e indiscutível a matéria por ela acobertada, independentemente da constitucionalidade, legalidade ou justiça do conteúdo intrínseco dessa mesma sentença". (NERY Jr., 2006, p. 259).

3.2.1 A INJUSTIÇA DA DECISÃO E O PROBLEMA DO REGRESSO AO INFINITO

Os autores contrários à tese da relativização da coisa julgada sustentam, ainda, que esta possibilidade levaria à eternização dos conflitos, pois, admitindo-se a desconstituição de uma decisão transitada em julgado por uma outra, pretensamente mais justa, dever-se-ia, por coerência e atendimento ao princípio da igualdade, abrir a possibilidade de se desconstituir, a qualquer tempo, a decisão posterior que anulou a anterior e assim sucessivamente. Sustentam que a sentença substitutiva daquela tida por injusta ou inconstitucional será sempre oriunda do mesmo poder (judiciário) e não haveria como garantir que esta segunda decisão traria mais justiça para as partes.

Para Marinoni (2006, p. 678), a idéia de relativização não logra êxito em explicar que "se o Estado-juiz errou no julgamento que se cristalizou, obviamente implica aceitar que o Estado-juiz pode errar no segundo julgamento, quando a idéia de relativizar a coisa julgada não traria qualquer benefício ou situação de justiça".

Ainda segundo Marinoni (2004, p. 3):

A coisa julgada material é atributo indispensável ao Estado Democrático de Direito e à efetividade do direito fundamental de acesso ao poder judiciário. Ou seja, de nada adianta falar em direito de acesso à justiça sem dar ao cidadão o direito de ver o seu conflito solucionado definitivamente. Por isso, se a definitividade inerente à coisa julgada pode, em alguns casos, produzir situações indesejáveis ao próprio sistema, não é correto imaginar que, em razão disso, ela simplesmente possa ser desconsiderada.

Os "anti-relativistas" defendem que haveria apenas a substituição da justiça, da legalidade, da moralidade e isonomia da sentença transitada em julgado por uma outra justiça, legalidade, moralidade e isonomia da decisão desconstitutiva da coisa julgada que será, igualmente, susceptível de ser considerada inconstitucional ou injusta e assim sucessivamente.

É neste sentido que Gustavo Valverde (apud NOJIRI, 2006, p. 315) desenvolve o seguinte raciocínio:

Uma primeira dificuldade que se coloca diante desse tipo de reflexão é a de que sempre será uma decisão judicial que decidirá que a coisa julgada viola a Constituição. E muitas vezes fica difícil evitar o regresso ao infinito, por meio de perquirições como esta: a decisão que decide pela inconstitucionalidade da coisa julgada não será, também ela (ou somente ela), uma decisão inconstitucional, que redundará numa coisa julgada inconstitucional, e assim sucessivamente?

Baptista (2006) indaga-se: se a sentença que destruiu a primeira coisa julgada seria, ipso iuri, justa e não abusiva ? Qual seria o impedimento para a intangibilidade desta segunda coisa julgada e o que impediria o vencido de intentar uma ação inversa, pretendendo demonstrar a injustiça da segunda sentença?

Nessa esteira, Assis (2006) assevera que a simples possibilidade de rediscutir o julgado sem os limites impostos pela rescisória, alegando-se simplesmente a injustiça da decisão ou a violação de um ou outro princípio constitucional levará, inevitavelmente, a uma multiplicação e eternização dos litígios, permitindo que as portas do judiciário estejam sempre indevidamente abertas às iniciativas mais frívolas e fúteis do vencido.

Por esta razão, mostra-se iminente "o risco de se perder qualquer noção de segurança e de hierarquia judiciária. Ademais, os litígios jamais acabarão, renovando-se, a todo instante, sob o pretexto de ofensa a este ou aquele princípio constitucional". (ASSIS, 2006, p.36).

Aduz ainda Moreira (2006) que a relativização da coisa julgada com base tão somente na injustiça da sentença seria o equivalente a "golpear de morte" o instituto da coisa julgada, posto que raríssimos seriam os casos em que a parte vencida se convenceria da justiça da sua derrota. Para o autor, teríamos que suportar "uma série indefinida de processos com idêntico objeto. Mal comparando, algo como uma sinfonia não apenas inacabada como a de Schubert, mas inacabável - e bem menos bela". (MOREIRA, 2006, p. 209) (grifo do autor).

Com estes argumentos, a doutrina anti-relativista tenta demonstrar, sem razão, a temeridade de se admitir a desconstituição da coisa julgada, acarretando sucessivas desconsiderações, impedindo a resolução definitiva das contendas e, por conseqüência, obstando o estabelecimento da paz social.

Em defesa da relativização, Theodoro Jr. (2006, p. 195) argumenta ser este um falso problema, uma vez que se operará a preclusão sobre as eventuais argüições de inconstitucionalidade já decididas. "A respeito da solução que for dada operaria a preclusão pro iudicato e a res iudicata, tornando inviável o espiral sem fim em torno da matéria cogitada pelos eminentes doutrinadores".

Ademais, a indefinição ou mesmo o alto grau de abstração do conceito de justiça, todavia, não deve tolher a perseguição dos operadores do direito pela máxima aproximação à justiça material. Existem vários princípios que são verdadeiros guias na busca da justiça material, como o princípio da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da moralidade, da impessoalidade, da capacidade contributiva, da anterioridade da lei tributária, do in dúbio pro misero, da função social da propriedade, entre muitos outros.

Wambier (2003, p. 174) diz que "parece ter-se delineado um quadro em que já não satisfaz mais a resolução ‘formal’ dos conflitos; o que se quer são soluções ‘reais’, ainda que ocorram num esquema de menor segurança [...] em favor do valor efetividade".

Portanto, o argumento de que a única justiça possível é a justiça formal é insuficiente, falho e acaba tornando acomodado o intérprete na busca do verdadeiro espírito que anima a constituição, pois quando a Constituição consignou o Princípio da Inafastabilidade do Poder Judiciário, assegurando amplo acesso à tutela jurisdicional, o fez "não como uma garantia a uma tutela jurisdicional qualquer, mas como direito a uma tutela justa" (ARMELIN, 2006, p. 73), pois apenas neste caso, com observância da justiça nas relações interindividuais e coletivas, é que se atingirá a justiça social.

Para Câmara (2006, p. 29),

O direito processual moderno é um sistema orientado à construção de resultados justos. A ideologia do processualista contemporâneo, conhecida como processo civil de resultados, leva à necessária revisão de diversos conceitos que pareciam firmemente estabelecidos no panteão dos dogmas jurídicos. Isto se dá porque não é aceitável que, em um momento histórico como o atual, em que tanto se luta por justiça, possamos abrir mão dela em nome de uma segurança que não dá paz de espírito ao julgador nem tranqüilidade à sociedade. É preciso, pois, relativizar a coisa julgada material, como forma de manifestar crença na possibilidade de se criar um mundo mais justo.

Além disto, a proposta não é de relativização radical da res iudicata, não sugere uma abertura total para que todo e qualquer tipo de argüição de inconstitucionalidade seja admitida como ensejadora de eventual desconsideração da coisa julgada.

A relativização deve estar reservada para casos extremos ou inequívocos de injustiça, como aqueles retirados da obra de Lima (1997, p. 116) e acima colacionados, em que diante da mesma norma e da mesma situação de fato, decisões totalmente antagônicas foram tomadas pelo poder judiciário.

Por todos, cite-se o magistério de Dinamarco (2002, p. 67):

Além disso, não estou a postular a sistemática desvalorização da auctoritas rei judicatae, mas apenas o cuidado para situações extraordinárias e raras, a serem tratadas mediante critérios extraordinários. Cabe aos juízes de todos os graus jurisdicionais a tarefa de descoberta das extraordinariedades que devam conduzir a flexibilizar a garantia da coisa julgada, recusando-se a flexibilizá-la sempre que o caso não seja portador de absurdos, injustiças graves, transgressões constitucionais etc.

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Sobre o autor
Gustavo Anderson Correia de Castro

Procurador da Fazenda Nacional. Especialista em Direito Público pelo Centro de Estrudos Superiores de Maceió.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Gustavo Anderson Correia. Coisa julgada, justiça material e segurança jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2589, 3 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17097. Acesso em: 26 abr. 2024.

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