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Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?

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18/08/2010 às 06:23
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CAPÍTULO 1 - o Estado Brasileiro - da colônia ao final do século XX

"Attendendo el-rei a que muitos vassalos, por delictos que commettem andam foragidos, se ausentam para reinos estrangeiros, sendo aliás de grande conveniencia que fiquem antes no reino e senhorios, e sobretudo que passem para as capitanias do Brazil, que se hão de novo povoar, há por bem declaral-as couto e homisio para todos os criminosos que nellas quizerem ir morar, ainda que já condemnados por sentença até em pena de morte [...] e passados 4 annos de residencia na capitania, poderão vir até ao reino e tractar de seus negócios [...] A capitania doada é inalienável, e intransmissível, por herança ao filho varão mais velho do primeiro donatário, e não partilha com os demais herdeiros." [01]

"O governador poderá: prover em officiaes da justiça e fazenda os degradados que prestarem bons serviços nas armadas, ou em terra, exceptuados somente os condenados por furto e falsidade." [02]

Assim começa a história do Brasil. Em seu evoluir, raras vezes corresponderam-se os interesses da sociedade e do Estado, o que tem levado historiadores e cientistas políticos - sem que isso venha servindo de lição, pois se repetem, de forma recorrente, os mesmos erros e vícios [03] -, a questionar a soberania do país, sendo condição de soberania a existência do Estado enquanto sociedade organizada, isto é, uma Nação.

A respeito, ensinava Alberto Torres, em 1912 que

"O espírito humano não aprendeu ainda a aproveitar as licções da Historia. É singular a leveza com que a imaginação e a intelligencia do homem repetem os mesmos erros, as mesmas eternas causas de seus males e soffrimentos, esquecendo e perdendo os ensinamentos que os permittiriam evitar. [...]

Os nossos eternos deficits, as nossas emissões de papel-moeda, as nossas Caixas de Conversão, as nossas valorizações, os nossos emprestimos à lavoura, os nossos proteccionismos, todas as phantasias do inflacionismo e da especulação, as nossas eternas luctas, aereas e estereis, de partidarismo, e não menos frequentes agitações politicas, sem objectivo, por doutrinas que nos passam e ideais sem base real, são experiencias que nos passam pelos espiritos sem deixar a menor impressão educativa". [04]

1.1. Da Colônia ao Estado Novo

A colonização brasileira nasceu do surto mercantilista que, na Europa, marcou-se pelo declínio das velhas instituições, a partir do desenvolvimento das relações de comércio, pela passagem do artesanato à manufatura, pela expansão das fronteiras, pela unificação dos Estados monárquicos e o conseqüente surgimento de Estados soberanos.

No velho mundo, ao feudalismo clássico substituiu-se um novo tipo de vida, mais movimentada, marcada pelo mercantilismo. No Brasil – novo mundo -, edificou-se um projeto de colonização sobre restos do modelo feudal agonizante na Europa.

Em seu processo de unificação, Portugal viu concentraram-se no reino importantes recursos humanos e técnicos e, em conseqüência, capital comercial em grandes proporções. Multiplicando seus empreendimentos mercantis, desenvolveu o rendoso empreendimento de comércio ultramarino, dedicado à troca de bens, em detrimento da produção.

A descoberta do Brasil (terra em que não havia produção para troca, já que o indígena apenas extraía para seu consumo) e a necessidade de preservá-lo da cobiça mundial pela madeira-tinta, pau-brasil, exigiram a solução do problema da produção, em condições particularmente desfavoráveis, em face da distância e extensão, variedade de terras do novo mundo, além da resistência dos habitantes naturais e das adversidades impostas pela própria natureza.

As características do processo de colonização adotado por Portugal condicionaram a formação social brasileira de tal forma, que se encontram indelevelmente arraigadas na estrutura e no corpo do próprio Estado, como se pretende demonstrar ao longo do presente Capítulo. A colonização, aqui, não foi empreendida visando ao desenvolvimento e à unidade de comunidades ligadas por laços de interesses próprios, como no caso americano, porém, à satisfação da cobiça internacional. Valendo-se do emprego de mão-de-obra escrava e de meios de produção predatórios, para atingir o máximo de lucros, a Coroa portuguesa fertilizou o mundo novo para a gestação de uma mentalidade individualista e avessa à solidariedade [05].

Em suas antigas colônias, os portugueses produziam de cana-de-açúcar, bem facilmente transformável em mercadoria sólida, não perecível e suscetível de transporte, além de tradicionalmente aceito pelo mercado consumidor europeu. Por essas razões, aliadas às condições favoráveis do solo brasileiro, projetaram produzi-lo na América em larga escala, a ponto de compensar o vulto e o risco do investimento.

Distribuíram grandes extensões de terra na base de latifúndio, deixando aos produtores liberdade para produzir, área que a metrópole respeitava, reservando-se a circulação dos bens, âmbito em que o produtor não interferia. Delegando poderes administrativo e político, Portugal desligou-se da produção, onde se concentravam os custos, beneficiando-se com a circulação, onde potencialmente se acumulava a renda. Os senhores da terra tornaram-se autoridade pública, investidos inclusive de poder militar [06]. Neste sentido, delegaram-se aos donatários - governadores e capitães -, além dos poderes civis, os ônus da defesa em terra, já que a Coroa respondia pela defesa da costa para o mar alto.

O sistema de distribuição de terras por capitanias, que Portugal já desenvolvera nas antigas colônias [07], transferia seu domínio, mas não a propriedade com todos os seus atributos. Através dos forais, verdadeiros contratos de aforamento, a Coroa lusitana repartiu as terras férteis do litoral, doando capitanias transmissíveis por herança, porém gravadas com cláusula de inalienabilidade e de não-parcelamento - evidência histórica da estratificação do latifúndio no Brasil -, reservando-se o Estado o direito de retomar as terras mediante indenização ou confisco. Quanto às terras interiores, no sentido da colonização do sertão, o foral permitia-lhes doá-las em sesmarias, em nome do rei, sem o direito de retomada posterior.

Com o esgotamento do sistema de monocultura, em particular da cana-de-açúcar, diante da necessidade de garantir a prosperidade da Colônia, iniciou-se o processo de interiorização, com exploração de novas atividades econômicas - da mineração à agricultura, capazes de absorver outro tipo de mão-de-obra não mais escrava, agora de trabalho remunerado, passível de representar um mercado consumidor para os artefatos que a indústria européia, sobretudo a inglesa, em plena revolução industrial, produzia em quantidade cada vez maior.

O desenvolvimento da mineração determinou o surgimento de bens com valor em si, como charque e couros, produzidos para o consumo. Os núcleos mineradores lançaram as bases de um novo mercado - interno -, em que as trocas se faziam com moedas e com ouro em pó. Iniciou-se um novo sistema econômico, capaz de viabilizar a organização do Brasil como sociedade nacional, com interesses distintos dos da metrópole, que se expressavam no despotismo tributário e no monopólio real da extração diamantífera. Apesar de timidamente, o patronato agro-pastoril, também esgotado pelo fisco - e com a vantagem de não depender de uma metrópole européia como agente comercial -, apresentava condições de propor e lutar por sua independência. A eles agregou-se, mais tarde, com a chegada da Corte portuguesa, nas palavras de Darcy Ribeiro, o "patriciado burocrático que exercia o mando político, derivado do desempenho de cargos públicos" [08], o qual terminou por promover a independência - quando esta se tornou inevitável – institucionalizando em seu próprio proveito o projeto de monarquia unitária escravista, que objetivava, entre outros, a repressão dos movimentos autonomistas rebeldes, os levantes das classes médias urbanas e as insurreições populares que aspiravam a uma reordenação social mais profunda. A monarquia foi a maneira encontrada, no Brasil, para não se alterar a estrutura de poder e reprimir as revoltas populares que se sucediam não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. [09]

Em 1808 – conseqüência das pressões continentais, no pós-revolução francesa -, a Corte portuguesa, aliada e dependente da Inglaterra, transferiu-se para o Brasil, iniciando a transição para a construção de um Estado nacional. Em um processo de inversão política, a Colônia transmudou-se em Metrópole, nela instalando-se os principais organismos do aparelho estatal português: Ministérios do Reino, da Guerra e Estrangeiros, da Marinha e Ultramar, da Fazenda; Conselhos de Estado, da Fazenda, Mesas do Desembargo do Paço e da Consciência e Ordens; a Relação do Rio de Janeiro transformou-se em Casa da Suplicação, atuando como tribunal superior. Instalou-se também a Intendência-Geral da Polícia.

Observa-se que, mais uma vez, a organização político-administrativa não resultou de exigência do meio. Ao contrário, foi artificialmente importada, em desequilíbrio com a realidade da época, considerada a população local [10], que à Corte se subordinou. Historicamente, os brasileiros não desenvolveram uma noção abstrata e impessoal de Estado, até porque não contribuíram diretamente para a sua formação. Foram, ao invés, sujeitos passivos e submissos de um Estado imposto.

Alberto Torres discorreu sobre o tema em A Organização Nacional, obra publicada em 1914, enfatizando que

"Os problemas da terra, da sociedade, da produção, da povoação, da viação e da unidade econômica e social ficaram entregues ao acaso; o Estado só os olhava com olhos de fisco; e os homens públicos [...] não eram políticos nem estadistas; bordavam, sobre a realidade de nossa vida, uma teia de discussões abstratas ou retóricas; digladiavam-se em torno de fórmulas constitucionais, francesas ou inglesas; tratavam das eleições, discutiam teses jurídicas, cuidavam do exército, da armada, da instrução, das repartições, das secretarias, das finanças, das relações exteriores, imitando ou transplantando instituições e princípios europeus [...]. O mecanismo constitucional trabalhou sempre, desorientado e sem guia, estranho às necessidades intimas, essenciais do nosso meio físico e social". [11]

Com a vinda da Corte portuguesa, a ação do aparelho coator do Estado fez-se mais forte, eliminando as práticas de direito costumeiro dos primeiros momentos da colonização. Pela Lei da Boa Razão (1769), só eram de admitir-se costumes com "um século de existência", impunham-se os valores das "nações cristãs que habitam a Europa", em detrimento do direito romano, somente aplicável quando fundado na "boa razão".

A instalação do centro das decisões políticas no Rio de Janeiro fortaleceu a hegemonia do sudeste sobre as demais regiões, propiciando integração direta com o restante do mundo, abertura dos portos, suspensão de restrições à entrada de estrangeiros, instalação de corpo diplomático; diminuiu-se o monopólio cultural exercido por Coimbra, instalando-se os primeiros cursos superiores no Rio de Janeiro e na Bahia [12], bem assim como a atividade de impressão, até então reprimida, culminando com a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e aos Algarves [13], por interesse europeu.

Com as transformações, o poder político passou a ser exercido pela burguesia comercial e usurária, pela burocracia estatal e pela hierarquia eclesiástica, agentes sociais que representavam, no jogo político, o funcionamento do Estado absolutista português, contra os quais efervesciam antagonismos que caracterizaram todo o período, em que recrudesceram contínuos levantes e conspirações contra a Coroa portuguesa. [14] Esse é o quadro esboçado com aguda nitidez por Raymundo Faoro, litteris:

"O comércio, controlado ou explorado pelo príncipe é, por sua vez, a fonte que alimenta a caixa da Coroa. O modelo de governo, que daí se projeta, não postula o herói feudal, nem o chefe impessoal, atado à lei. [...] O sistema de educação obedece à estrutura, coerentemente: a escola produzirá os funcionários, letrados, militares e navegadores. Mas os funcionários ocupam o lugar da velha nobreza, contraindo sua ética e seu estilo de vida. [...]. A indústria, a agricultura, a produção, a colonização será obra do soberano, por ele orientada, evocada, estimulada, do alto, em benefício nominal da nação. Onde há atividade econômica, lá estará o delegado do rei, o funcionário, para compartilhar de suas rendas, lucros e, mesmo, para incrementá-la. Tudo é tarefa do governo, tutelando os indivíduos, eternamente menores, incapazes ou provocadores de catástrofes, se entregues a si mesmos. O Estado se confunde com o empresário, o empresário que especula, que manobra os cordéis do crédito e do dinheiro [...] [15]" (grifou-se).

As transformações por que passou o Estado brasileiro não contaram com a participação popular, seja na proclamação do Império [16], em 1822, seja na da República em 1889.

O artificialismo que caracterizou a formação do Estado no Brasil foi observado, no início do século XX, de forma surpreendentemente amarga e crítica por Manoel Bomfim, aduzindo que

"[...] os códigos e as Constituições não são simplesmente estatutos gerais: são compilações quase abstratas, indiferentes, estranhas ao meio onde se aplicam [...]. A primeira, do Império, era a Constituição de toda a parte: Constituição de monarquia constitucional, comprada em bazar de roupas feitas - mangas, bolsos, gola, Bentham, equilíbrio dos poderes, regime representativo; vestida ao Brasil teria sido vestida à Espanha, à Itália ou mesmo ao Japão. Na prática, foi a continuação do regime colonial, sem metrópole [...]. Veio a República [...]. Aboliu-se a centralização, adaptou-se o federalismo [...]. Uma constituição para o Brasil não centralizado? Está achada: abre-se a constituição dos Estados Unidos da América do Norte e a constituição da Suíça e algumas páginas da constituição argentina; corta daqui, tira daí, copia dacolá, cosem-se as disposições de uma, de outra e de outra, alteram-se alguns epítetos, pregam-se os nomes próprios, tempera-se o todo com um molho positivisóide e temos uma Constituição para a República do Brasil - federativa e presidencial, Constituição na qual só não entraram a história e as necessidades do Brasil". [17].

O projeto constitucional que desaguou no texto da Carta de 1824 inspirava-se nos discursos liberais da Revolução burguesa ocorrida na França e nas constituições francesa e norueguesa outorgadas após a Restauração. Após dissolver a Assembléia Constituinte [18], devido às intransponíveis divergências entre os interesses brasileiros e lusitano-bragantinos, corporificados no imperador, este tratou de conferir ao texto constitucional alguma legitimidade, submetendo-o à aprovação das Câmaras Municipais, que em nada contribuíram para sua mudança. O texto constitucional conciliava o princípio da continuidade dinástica com uma aparente soberania popular. A rigor, assegurava o centralismo monárquico pela introdução do Poder Moderador - presença de uma forma atenuada das práticas absolutistas européias [19] -, ao qual se submetiam os demais poderes. Esse sistema político legitimou-se sob a forma de monarquia hereditária.

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Desenvolveu-se importante resistência ao regime monárquico unitário [20], que favorecia a hegemonia do sudeste. A resistência culminou com vários movimentos de feição separatista, em particular a Confederação do Equador (Nordeste, 1824), Setembrada e Novembrada (Nordeste, 1831), Cabanagem (Pará, 1835-1840), Guerra dos Farrapos (Rio Grande do Sul, 1835-1845) e Rebelião Praieira, (Pernambuco, 1848). Já em 1870, com o nascimento do Partido Republicano, estruturou-se um programa político de oposição à monarquia.

Sem tencionar que a escravidão dela fosse imediata e exclusiva decorrência, a manutenção da forma monárquica representou um suporte para a preservação da estrutura escravista, no âmbito de um sistema de classes mantido para reproduzir essencialmente os interesses dos proprietários dos meios de produção, intercâmbio e fornecimento de créditos, concentrados na região sudeste.

Com a abolição da escravatura [21] e a mudança do sistema político, de Império para República, o capitalismo desenvolveu-se no Brasil, nos centros urbanos de São Paulo, Rio de Janeiro e em certas áreas do Nordeste, através do assalariamento e da automação do processo de trabalho.

Mantiveram-se as oligarquias e a tradição do controle político pelos grandes proprietários (coronéis), cujas normas de controle de poder dificultaram a configuração de programas político-partidários em uma perspectiva nacional [22]. Os partidos políticos, representando as diversas oligarquias locais, limitavam-se à defesa de interesses regionais [23], não obstante compusessem alianças mais amplas, que esses mesmos interesses exigiam. Também a forma de organização da produção voltava-se para a satisfação de necessidades de consumo dos centros capitalistas dominantes (Estados Unidos e Europa ocidental).

A partir da decadência da exploração do trabalho escravo, o poder deixou de ser monopólio dos suportes políticos do Estado monárquico. Com a República, introduziu-se o federalismo e, com este, novas lutas pela mudança da estrutura do poder político.

A Constituição de 1891 legitimou o caráter leigo do Estado liberal brasileiro, adotando o sistema representativo e estabelecendo a autonomia e interdependência dos três Poderes da República. Embora formalmente democrática, a Constituição promulgada não alterou substancialmente a estrutura oligárquica da chamada Primeira República.

Sob o federalismo, o poder dividiu-se entre os governadores dos maiores estados (São Paulo e Minas Gerais), refletindo um desequilíbrio na descentralização econômica e política e dando origem a conflitos entre o setor agrário e grupos urbanos, a que se somou o controle do sistema político pelo Exército [24], sustentáculo da República.

Após o período de consolidação da República (1889-1898), sucederam-se crises econômicas e políticas, impulsionadas por fatores endógenos e exógenos, com objetivo de limitar o poder das oligarquias agrárias. As graves crises internacionais de 1922 e 1929 atingiram o Brasil, tornando mais agudas as contradições e insatisfações quanto à "política dos governadores [25]", de uma certa forma abrindo caminho para o Movimento de 1930, que propiciou mudanças no sistema político republicano, de maneira a favorecer a atuação de novas forças sociais emergentes, em particular a burguesia industrial, a pequena burguesia e o proletariado urbano.

Diante das contestações regionais, o Exército viu valorizar-se seu papel como força nacional, seus quadros passando a integrar o poder executivo federal e encontrando bases de sustentação nos setores urbanos. Em decorrência, a cada sucessão presidencial, as forças oligárquicas regionais levantavam-se, mobilizando as Forças Armadas, "guardiãs da paz pública", sobretudo em face das graves crises do café, que dominaram todo o início do século XX (no impacto do pós I Guerra Mundial, que alterou profundamente as estruturas econômicas mundiais). Crescia a hegemonia norte-americana, cujos investimentos se ampliavam, culminando com o estabelecimento, no país, de firmas subsidiárias de empresas norte-americanas [26].

A internacionalização crescente foi objeto de reações de matriz nacionalista, como o movimento tenentista (alcançando seu ápice em 1922, com o motim do Colégio Militar e a sublevação do Forte de Copacabana, movimentos liderados por uma fatia da pequena burguesia militar urbana, que defendia os ideais liberais do voto secreto, a reforma administrativa, o ensino gratuito, a independência do Judiciário e a moralidade pública), chegando alguns setores a propor a nacionalização das empresas estrangeiras.

Em 1926, sob a presidência da Artur Bernardes, a Constituição recebeu emendas que fortaleceram o poder executivo federal, ampliando o direito de intervenção nos estados, reduzindo-se a concessão de habeas corpus e atribuindo ao presidente da República o poder de veto às leis aprovadas pelo Congresso Nacional.

Proliferavam e tomavam corpo diversos grupos de esquerda, de orientação anarquista e comunista, que se estruturaram pari passu com o processo de industrialização do país. O governo federal alternou medidas repressivas tendentes a restringir os direitos individuais, além da censura à imprensa, com medidas assistenciais, relativamente ao proletariado urbano, visando a neutralizar o potencial contestatório do setor: em 1923, instituíram-se as Caixas de Aposentadoria e Pensões e o Conselho Nacional do Trabalho; em 1925, foi sancionada legislação sobre férias remuneradas [27]. Mais uma vez, medidas que deveriam ser conquistas da sociedade, a ela foram impostas como meio repressor e inibidor de sua própria identidade.

Por outro lado, a crise do café (cujas exportações, no período de 1927-1929 atingiram apenas 2/3 da produção), desacompanhada de uma política de desestímulo à produção, provocou a reforma financeira, visando a garantir os meios de cobrir as despesas causadas pelas lutas internas, propiciando a acumulação de reservas que logo se esvaíram, com a depressão de 1929, fazendo crescer o desemprego e baixar os salários.

Estava preparada a cena para o Movimento de 1930, quando forças integradas por militares, camadas médias da população urbana, dissidentes das oligarquias mineira e gaúcha, mobilizadas em torno da campanha eleitoral, não permitiram a posse do candidato oficial (que na República Velha sempre vencera as eleições). Dominando o Rio Grande do Sul, Minas Gerais e o Nordeste, uma junta militar assumiu o poder e o manteve até transferi-lo a Getúlio Vargas.

A década de 30 iniciou-se por um movimento militar armado, que levou Getúlio Vargas ao poder mediante o compromisso da industrialização do país, com base na reforma do Estado, com o objetivo de submeter as classes trabalhadoras emergentes. A era que se iniciava assistiu a um aumento gradual da intervenção estatal em todos os setores da sociedade, com a participação do Estado na administração de seus segmentos mais importantes. Criaram-se entidades como o Instituto Brasileiro do Café, o Instituto do Açúcar e do Álcool, o Ministério do Trabalho, sindicatos oficiais, organização da previdência e, em 1937, o DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público, destinado ao planejamento e gestão do atuar estatal, responsável pela burocracia do Estado, em modelo que vigorou até o início dos anos 90.

Foi também uma época de grandes conflitos. A hipertrofia do Poder Executivo, sob o governo Vargas, está na base da submissão que tem caracterizado o Poder Legislativo, a ponto de ver-se a legalidade brasileira originada em decretos-leis [28], decretos, regulamentos e portarias.

Durante esse período, organizou-se a estrutura sindical brasileira, corporativista e subordinada ao Estado, delineando-se uma política de massas paternalista e populista, iniciando-se uma nova forma de pensar o Estado. Vargas deixou claro o propósito modernizador de seu governo, ao dizer, citado por Marco Aurélio Nogueira [29]: "Cumpria-nos reduzir despesas, coibir abusos, reformar serviços dispendiosos e sem eficiência, equilibrar orçamentos, suprimir déficits e, sobretudo, simplificar, melhorando a antiquada e ronceira máquina administrativa". A preocupação com a administração pública evoluiu a ponto de alcançar a consciência de que o governo ganharia importante base de sustentação pela cooptação de quadros importantes junto à sociedade civil, necessários a um Estado reestruturado para um projeto de modernização. As estruturas idealizadas pelo Estado Novo iniciam a implantação da moderna administração pública brasileira.

A esse respeito, manifesta-se Marco Aurélio Nogueira, enfatizando que

"É exatamente neste aspecto que os anos 30 são emblemáticos na história brasileira. Neles, a industrialização irá ganhar impulso não graças à organização em nível superior da sociedade civil, ou à virulência dos conflitos urbanos, nem à autonomização política de uma classe burguesa industrial, mas sim graças à regulação estatal e ao impacto da nova situação econômica mundial. Será de fato o Estado – alargado, adequadamente aparelhado e imbuído de novas funções – que aproveitará a conjuntura aberta com a crise de 29 para dirigir a modernização e organizar a sociedade civil, bloqueando sua livre manifestação e apropriando-se do que havia de mais dinâmico nela; um Estado não apenas garantidor da ordem capitalista, mas ativo e empreendedor, posto que partícipe direto do próprio sistema de produção e acumulação. O movimento operário, a efervescência cultural e o associativismo – em expansão desde os anos 20 – passarão a receber o condicionamento e a direção de um Estado modernizador mas autoritário, industrializante mas conciliador com os interesses agrários, expressão viva de uma coalizão entre velhas e novas elites". [30]

Em 1932, em São Paulo, eclodia a Revolução Constitucionalista, clamando a instauração de uma ordem constitucional no país. Em resposta, Vargas marcou para o ano seguinte eleições para a Assembléia Constituinte, que elaborou a Constituição promulgada em 1934: de cunho liberal, inspirada na Carta de Weimar (1919), acolheu as agremiações partidárias, reelaborou o processo eleitoral e institucionalizou a intervenção estatal nos domínios social e econômico.

Em reação movimentos sociais de inspiração fascista, representados principalmente pela Ação Integralista Brasileira, organiza-se a Aliança Libertadora, em que se unem setores liberais e socialistas, iniciando intensa campanha de mobilização popular, o que levou Vargas a ordenar seu fechamento e a prisão de alguns de seus membros. Na ilegalidade, a ANL foi responsável pela disseminação de movimentos políticos, como a rebelião comunista de 1935, em Natal, com reflexos no levante do 29º Batalhão de Caçadores e na sublevação do 3º Regimento de Infantaria e da Escola de Aviação, no Rio de Janeiro.

Em 1937, com apoio militar, Vargas promoveu um golpe de Estado, outorgando uma nova Constituição, redigida em 1936 por Francisco Campos, quebrando o princípio de separação dos poderes, extinguindo os partidos políticos e criando um regime corporativo sob autoridade direta do presidente, nitidamente inspirada nos regimes de força europeus, particularmente na Carta da Polônia fascista. Essa Constituição não chegou praticamente a vigorar, tendo Vargas governado, até 1945, por meio de decretos-leis [31], com força constitucional.

Com a derrota do nazi-fascismo, inúmeros setores da sociedade mobilizaram-se em prol da democracia. Receando perder o poder, Vargas antecipou-se a seus opositores, com iniciativas democratizantes: em 1945 marcou eleições gerais, promoveu a anistia e permitiu total liberdade de organização partidária. Vargas apoiava-se em seu prestígio junto às massas para manter-se no poder, enquanto generais que o sustentaram durante o Estado Novo [32] movimentaram-se para derrubá-lo. Temendo que a pressão popular, responsável pelo movimento "queremista" [33], pudesse alterar o processo de seu afastamento, depuseram-no em outubro de 1945.

Vargas retirou-se a São Borja, voltando ao poder em 1951, retomando plataformas populistas, de nacionalismo econômico, favorecendo a implantação de grandes empresas públicas, como a Petrobrás, identificando-se - aos olhos do povo - à luta anti-imperialista. Porém, a permanência de conflitos entre os diversos grupos de poder, na seqüência de um Manifesto à Nação assinado por 27 generais, pressionou-o a ponto de suicidar-se em agosto de 1954.

1.2.Da Década de 50 aos anos 80

O fim da II Guerra Mundial marcou a largada para a industrialização. No caso brasileiro, o processo atendeu a forças e imposições exógenas. Na realidade, na América Latina dos anos 50, o que se implantava eram as bases da dominação do imperialismo norte-americano, a serviço do capital, cuja hegemonia, no Brasil, encontrou campo fértil no latifúndio [34].

"[...] em 1945 jogou-se uma partida destinada a retomar as promessas do grande movimento de 1930 em parte suspensas pelo golpe de 37, tanto quanto na Revolução de 30 havia sido jogada uma partida para recuperar a República prometida em 1889 e bloqueada pelas oligarquias regionais elevadas ao comando político da Nação nas primeiras décadas do século." Marco Aurélio Nogueira [35].

Neste novo jogo, assumem papel expressivo as massas de trabalhadores urbanos, sob o Estado Novo organizados em corporações, mas que, em época de democracia passaram a ter voz mais ativa no cenário nacional, graças, sobretudo, a partidos políticos que falavam em seu nome, em nítido pacto político, como o PTB e o PCB.

A redemocratização iniciada em 1945 realizou-se sem influência partidária expressiva, mantendo-se as antigas dificuldades de se desenvolver uma vivência partidária autenticamente comprometida com a sociedade. Observa Marco Aurélio Nogueira [36] que o pacto político de 1945 amadureceu uma política de massas de resultados que, em sua prática histórica, vem sedimentando: a) importante nível de dependência do Executivo; b) negação da importância estratégica da questão agrária; c) manutenção do padrão de cidadania, que tem na identificação com o Estado o seu eixo constitutivo; d) reprodução de um modelo "perverso" de presidencialismo, plebiscitário, baseado no binômio corporativismo/ carisma; e) conceituação e instrumentalização da administração pública como agente do fazer, distanciando-a de uma profunda e eficaz reorganização.

1.2.1.As transformações sociais dos anos 50

Os anos JK - 1956-1960 - representaram uma época de desenvolvimento [37], em que a produção industrial cresceu 80%, grandes obras, como Furnas, Três Marias e a construção de Brasília modernizaram o país, aprofundando a abertura da economia brasileira ao capital internacional. Criaram-se incentivos especiais às empresas estrangeiras e política de crédito vantajosa ao setor privado nacional. A tal ponto chegaram esses esforços que o Brasil logrou atingir sua auto-suficiência em alguns setores produtivos, como o automobilístico, base do desenvolvimento industrial nacional. Juscelino rompe com o Fundo Monetário Internacional e, apostando no desenvolvimento, cria a SUDENE - Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste. Paralelamente, durante cinco anos, o governo Kubitschek conseguiu manter a estabilidade política e as conquistas democráticas alcançadas até então. Pela primeira vez na história, a sociedade brasileira acreditava no destino que se traçava para o País.

Porém, o desenvolvimentismo que marcou o período determinou níveis muito elevados de concentração de renda e uma situação inflacionária de difícil controle. Ao final de seu governo, reinicia o diálogo com o FMI, obtendo um empréstimo imediato de US$47,7 milhões.

Trabalhadores paulistas deflagram uma greve geral por aumento de salário, em paralisação de mais de dez dias. Insatisfeitos com o caminhar democrático da Nação, que lhes fugia ao controle, militares extremistas da Aeronáutica sublevaram-se em Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959), porém sem sucesso.

Em 1960, Jânio Quadros apresentou-se como candidato acima de qualquer partido e desvinculado de grupos de interesses. Confirmando o domínio exercido pelo valor "carisma", característica do presidencialismo brasileiro, elege-se com grandiosa diferença de votos, conseguindo articular em torno de seu nome um amplo espectro social.

Dono de um discurso moralizador, pregando saneamento e redução do gasto público, bem como distribuição igualitária da riqueza nacional, obteve o apoio de amplos segmentos da sociedade, entre os quais, maciçamente, a classe média. Contou, inclusive, com o apoio do operariado. Como medidas anti-inflacionárias, impôs restrições ao crédito e o congelamento de salários, satisfazendo ao FMI, de cujo aval necessitava para a obtenção de empréstimos internacionais.

Em matéria de política externa, entretanto, não se alinhou com os Estados Unidos, apoiando o governo de Cuba, cuja revolução recém triunfara [38]. Em agosto de 1961, Jânio enviou ao Congresso Nacional uma inesperada carta-renúncia, dizendo-se esmagado por "forças terríveis".

O vice-presidente, João Goulart, que se encontrava na China, deveria substituir o presidente, por força do art. 79 da Constituição do Brasil, de 18 de setembro de 1946. Porém, com seu nome ligado a Vargas e ao trabalhismo, sua posse foi imediatamente contestada pelos setores golpistas, tendo os ministros militares pressionado o Congresso para que decretassem vaga a presidência, justificando a convocação de novas eleições. A proposta foi recusada pela representação legislativa, que recomendou se adotasse o sistema parlamentarista de governo, com o objetivo de enfraquecer o cargo de presidente.

Liderada por Leonel Brizola, iniciou-se a "campanha da legalidade", de âmbito nacional, à qual aderiram a opinião pública e o III Exército, sediado no Sul. Jango tomou posse como presidente e governou com um gabinete parlamentarista, chefiado pelo primeiro-ministro Tancredo Neves. A experiência parlamentarista (setembro de 1961 a janeiro de 1963) não logrou contornar os graves problemas políticos, econômicos e sociais do País. Em janeiro de 1963, 80% dos eleitores votantes optaram pela volta ao regime presidencialista, processo do qual João Goulart saiu fortalecido, tendo, porém, de governar em contexto de intensa fermentação social. Aumentavam a cada dia as pressões por reformas de base, em torno de questões profundas e recorrentes na história do país, como as reformas agrária, bancária, do ensino; questões de natureza estrutural, cuja mudança deveria alterar o jogo de forças políticas e o próprio modelo de desenvolvimento nacional.

Nesse sentido, recrudesceu o movimento de massas, as lutas operárias, camponesas e estudantis atingindo alto nível de organização e de atuação que, contrastando com a reação dos setores mais conservadores da sociedade, configuravam o quadro de conflitos de interesses divergentes, que ao governo cabia conciliar. O antagonismo político estava publicamente exposto e o pacto social que o populismo mantivera durante as últimas décadas encontrava-se exaurido.

A partir do comício das reformas [39], realizado em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964, durante o qual João Goulart assinou publicamente os decretos de nacionalização das refinarias privadas de petróleo e de reforma agrária [40], começou a organizar-se uma oposição que, apoiada pelos segmentos da classe média urbana das grandes capitais [41], ao lado de rebeliões nos meios militares, que chegaram ao motim de 1200 marinheiros, levou à tomada do poder pelos militares, através do golpe desferido em 31 de março de 1964.

1.2.2.O autoritarismo militar

"Num tempo, página infeliz da nossa história,

passagem desbotada na memória,

das nossas novas gerações.

Dormia a nossa pátria mãe tão distraída,

sem perceber que era subtraída

em tenebrosas transações.

Seus filhos erravam cegos pelo continente,

levavam pedras feito penitentes,

erguendo estranhas catedrais [...]" 

Chico Buarque. Vai passar.

A partir do golpe de Estado, com a adesão de comandos do Exército, tropas marcharam em direção a Brasília e ao Rio de Janeiro, onde se encontrava João Goulart. Exigida sua renúncia e não contando com apoio armado dos grupos que o sustentavam, Jango seguiu para Porto Alegre, sendo declarada vaga a presidência da República, passando a responder pelo país uma junta militar, com poder supraconstitucional atribuído pelo ato institucional de 09 de abril de 1964 [42].

Em 11 de abril de 1964,o Congresso elegeu o primeiro presidente militar [43], com poderes especiais: pelo ato institucional nº 2, de 23.10.1966, o presidente da República recebeu autorização para "baixar decretos-leis em todas as matérias previstas na Constituição", fundamento dos governos que se sucederam, particularmente a partir da decretação do ato institucional nº 5, em 13.12.1968, determinando o fechamento do Congresso Nacional [44].

Houve um recrudescimento crescente da ação militar em face das manifestações da sociedade civil, levando ao cerceamento de liberdades individuais, como de expressão e de locomoção, no começo dos anos 70 e ao desbaratamento e extermínio, em muitos casos, de grupos oposicionistas; os perseguidos que conseguiram sobreviver tomaram o caminho do exílio, somente podendo retornar ao país após a anistia política de 1979, culminando, na metade dos anos 80, com a implantação do que se chamou "Nova República", nova por representar a volta de um presidente civil através de eleição, mesmo que ainda indireta.

Na contracorrente da repressão, extrapolando a função de base de sustentação política no Brasil, que historicamente sempre tiveram, os militares no poder pretendiam atingir os resultados desenvolvimentistas que os governos antecessores não lograram atingir. Com base no binômio segurança-desenvolvimento [45], que reforçaram com campanhas e ações de apelo nacionalista, características dos governos de força [46], impuseram, sem qualquer debate democrático, um novo modelo de crescimento econômico visando ao incremento do processo de industrialização a partir do financiamento internacional e da participação do próprio Estado como agente econômico.

Empresas multinacionais encontraram condições particularmente favoráveis à sua implantação e expansão, remetendo seus lucros para o exterior, enquanto proliferavam e agigantavam-se as sociedades de economia mista, empresas paraestatais concebidas para permitir ao governo o papel de sujeito ativo do próprio desenvolvimento.

Para atingir resultados planejados, o governo manteve rígido controle da política salarial, limitando os aumentos reais de salário e garantindo a disponibilidade de mão-de-obra potencialmente barata. Sob forte repressão policial-militar, os assalariados não tinham condições de expressar suas reivindicações, aumentando de forma drástica o tradicional desequilíbrio na distribuição da renda nacional.

Do ponto de vista econômico, o chamado "milagre brasileiro" chegou a apresentar resultados expressivos, como o crescimento médio anual do produto interno bruto na ordem de 10%, entre 1968 e 1973. Paralelamente, o Estado comprometia recursos próprios e tomados por empréstimo internacional com a construção de obras grandiosas, como a estrada transamazônica, a ponte Rio-Niterói, usinas hidrelétricas, símbolos da riqueza e do crescimento brasileiros e capazes de espelhar a pujança da administração militar.

Tal crescimento encontrou seus limites a partir de meados da década de 70, com o aumento da dívida externa, contraída para financiar as grandes obras e a remontagem do Estado e a estagnação do consumo interno, dado que os baixos salários permitiam à classe média apenas sobreviver, colocando-a praticamente à margem do mercado de consumo. Somando-se a esses fatores, a crise internacional do petróleo de 1973 afetou de modo particular a balança de pagamentos e o desenvolvimento das indústrias automobilística e química, grandes pilares da economia brasileira. O "milagre brasileiro" chegava ao fim, a partir de dificuldades que afetavam o próprio regime militar, o qual se viu, em decorrência, forçado a promover a abertura política, o que fez de forma gradual. Até meados da década de 80, o Brasil foi cenário de mudanças de ordem política, através de um paulatino processo de redemocratização.

1.3.A Nova República

A eleição de 15.01.1985, não obstante ter sido indireta, teve o condão de mobilizar o povo brasileiro que, após ter vivido quase duas décadas sob regime militar autoritário, acompanhou cada voto pelos meios de comunicação, de certa forma referendando-a. Era o começo de uma nova república, conforme palavras do presidente eleito, Tancredo Neves, em um de seus primeiros discursos.

Os novos ares democráticos fizeram-se acompanhar de uma mais intensa atuação dos meios de comunicação, trazendo à luz denúncias de reiterados casos de abuso e desvio de poder e de corrupção, dentro e fora do governo, contribuindo para a formação e amadurecimento da opinião pública.

Entre 1985-1989 a inflação aumentou vertiginosamente. A variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA) atingiu o patamar recorde de 255,16% (dezembro de 1985), precipitando a decretação do Plano Cruzado (28.02.1986). O governo americano anunciou corte de 32% na importação de produtos brasileiros isentos (álcool, óleo vegetal, motores e couro). Sem conseguir conter a inflação, é anunciado o plano Bresser, visando ao congelamento de preços, salários e aluguéis pelo prazo de 90 dias. O gatilho salarial é substituído pela incorporação mensal aos salários da média de elevação do IPC por trimestre. O cruzado é desvalorizado em 10,5%, relativamente ao dólar, o subsídio ao trigo é eliminado e grandes projetos governamentais, como o pólo petroquímico do Rio de Janeiro, a ferrovia Norte-Sul e o trem-bala Rio-São Paulo são adiados. A economia é indexada pela OTN.

Porém, os enormes montantes da dívida brasileira formavam um quadro de difícil solução: enquanto o presidente anunciava a suspensão do pagamento dos juros da dívida externa (moratória unilateral), o ministro da Fazenda [47] informava a suspensão do pagamento de mais de US$1 bilhão às agências governamentais internacionais integrantes do clube de Paris, relativamente ao principal da dívida contraída até 1983, prestes a vencer. Quanto ao FMI, o Banco Central fechou acordo provisório com os bancos credores privados, comprometendo-se a retornar àquele Fundo a importância "simbólica" de US$500 milhões, contra a garantia de refinanciamento dos juros vencidos e não pagos desde a decretação da moratória, que já somam US$4,5 bilhões. O círculo encontrava-se viciado.

Em 1988, ao mesmo tempo em que o ministério da Fazenda [48] anunciava que seriam pagos, a bancos credores privados, US$350 milhões relativos aos juros vencidos em janeiro, noticiava os pontos básicos do acordo de reescalonamento da dívida externa, definido com o comitê assessor dos bancos credores, incluindo o pagamento de US$700 milhões referentes a parte dos juros vencidos em janeiro e à totalidade daqueles vencidos em fevereiro, em troca de um novo empréstimo de US$5,8 bilhões. Em represália à recusa brasileira em proteger as patentes de produtos químicos e farmacêuticos americanos, que vinham sendo produzidos no país sem o pagamento dos direitos de propriedade intelectual às matrizes, os Estados Unidos impuseram sanções comerciais ao Brasil, majorando em até 100% a tarifa de importação de uma grande lista de produtos, entre os quais se incluíam o papel, papelão, eletrodomésticos, sapatos, armas de fogo, jóias e pesticidas.

Visando a conter o déficit público, anunciou-se, em janeiro de 1988, novo pacote econômico, com expressivas medidas fiscais e corte de despesas com o funcionalismo público, juntamente com a extinção de 40.000 cargos na administração públicos: inicia-se o programa de demissão voluntária ou aposentadoria antecipada e de incentivo às exportações.

Este foi o quadro geral em que se inseriu a regularização da prática democrática brasileira, com a realização, em 15.11.1986, de eleições diretas dos deputados federais e senadores que integrariam a Assembléia Nacional Constituinte, simultaneamente com a dos novos governadores e deputados estaduais e a com a promulgação da Carta de 1988, que se chamou "Cidadã".

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Sobre a autora
Regina Helena Machado

Jurista. Bacharel em Direito (Faculdades Integradas Candido Mendes, Ipanema, 1992/1996). Especialização (Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, 1997/1999). Gestora em Direitos Humanos (Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Presidência da República, 2005). Autora de livros: "Medida provisória ou a medida do poder (Rio de Janeiro: Liber Juris, 1997); "Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001) e de vários artigos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Regina Helena. Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2604, 18 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17116. Acesso em: 26 dez. 2024.

Mais informações

Obra originalmente publicada como livro "Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?" (Lumen Juris, 2000).

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