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Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?

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18/08/2010 às 06:23
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CAPÍTULO 3 - A VONTADE DA CONSTITUIÇÃO

"Ao encerrar um período de contradições e desrespeito à identidade, à liberdade e à justiça devidas ao nosso Povo, a Constituição apaga quaisquer resquícios de passadas lutas, para que o Estado se torne instrumento de união política, dentro da pluralidade social, justa e fraterna". Afonso Arinos de Melo Franco [98].

O momento histórico que levou à convocação da Assembléia Nacional Constituinte de 1987 [99], na seqüência de intensa campanha deslanchada pelos partidos políticos e alimentada por órgãos da sociedade civil organizada, como associações de classe, OAB, igrejas de diversas confissões, entidades estudantis, sindicais, foi etapa do processo de desenvolvimento da maioridade social, política e cultural do Brasil, que buscava forjar as bases de uma sociedade mais estável, cujas instituições se estruturassem com a solidez necessária para o enfrentamento dos desafios do mundo em processo de globalização.

Para melhor se compreender, no mínimo pretendido pelos limites do presente trabalho, o complexo contexto social e político em que se insere, hoje, a questão da reforma do Estado, cabe lembrar o modelo excludente de desenvolvimento imposto ao país a partir do regime militar de 1964, que se caracterizou pela produção voltada para os setores de maior poder aquisitivo, não representando uma resposta às necessidades de consumo da maioria da população brasileira, até hoje situada entre as de menor renda em nível mundial [100]. Modelo de desenvolvimento perseguido e mantido pelos diversos governos civis, até os dias atuais.

3.1 A transição

"[...] o tema da reforma política passou a ocupar lugar de destaque na agenda do processo de estruturação de um regime democrático no Brasil. Reformar a política (o Estado, o sistema político, a cultura política) tornou-se sinônimo de construir o regime democrático de que o País necessitava.

[...] A transição democrática não viabilizara a reforma política e a edificação de um regime novo, embora houvesse eliminado o arcabouço institucional e as práticas do antigo regime autoritário e delineado uma Constituição com claras inclinações democráticas e sociais. [...] A construção da democracia será vivenciada por uma sociedade dilapidada pela crise, composta por tempos históricos diversos, mal articulada politicamente e despreparada para imprimir uma rápida ruptura com o autoritarismo." Marco Aurélio Nogueira [101].

O esgotamento do modelo de governo militar deu-se simultaneamente à fermentação e multiplicação de crises econômicas constantes em todo o mundo, caracterizadas por recessão e inflação permanente. A sociedade brasileira, não obstante sua força mobilizadora em momentos de intensa gravidade política, como no processo de impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, ainda não emergira sob forma de um movimento de massas expressivo e sólido [102]. O Brasil forjava um projeto normativo de democracia social no momento em que se encontrava ainda no início do caminho de seu processo de desenvolvimento [103].

A respeito, ensina Marco Aurélio Nogueira que

"A transição, na verdade, havia começado (ainda nos anos 70, quando do projeto distensionista do governo Geisel) num momento especialmente delicado da vida nacional, quando já reverberavam as conseqüências das opções políticas feitas pelo regime autoritário. Como se sabe, os sucessivos governos militares promoveram um inegável desenvolvimento capitalista no País, mas não foram competentes [104] para diminuir a miséria e a desigualdade social, nem para liberar a economia de seus crônicos problemas e de sua dependência. Ao invés disso, reproduziram os traços mais perversos da história nacional e criaram muitas outras mazelas. Estimularam a fragmentação da sociedade em compartimentos estanques, presos a interesses particularistas e desejosos de um diálogo direto com o Estado, sem a mediação de partidos ou instituições representativas. Ajudaram a desvalorizar a política e a democracia, exacerbando os piores traços da história nacional. Como se não bastasse, houve o impacto da crise recessiva iniciada na própria fase inaugural da abertura, entre 1973 e 1974, e a marcha progressiva da inflação; com isso, o País ingressou numa espécie de guerra de todos contra todos fundada na desvalorização do trabalho e do investimento produtivo em benefício da especulação e da "esperteza". [105]

Nesse contexto, a Constituinte foi chamada para dotar o Brasil de instituições que viabilizassem sua entrada no século XXI como uma sociedade adulta, madura e moderna, de forma contrastante com a realidade de um país insuficientemente desenvolvido e duramente empobrecido por anos de recessão. A nova Constituição deveria evitar erros do passado, representando - mesmo ao preço de uma exaustiva e redundante repetição de muitos de seus dispositivos e normas - necessária imantação contra golpes, abusos, excessos, desvios, violências, imoralidade pública, desmandos, impunidade, distanciamento da cidadania e artificialismo, entre outros, que caracterizaram a História brasileira e, muito recentemente, as quase três décadas de autoritarismo militar.

É de se compreender o fato de grande parte dos Constituintes de 1987 terem levado a cabo essa tarefa, muitas vezes, impulsionados pela paixão. Neste sentido, falou o Dr. Ulysses Guimarães à Assembléia Nacional, em 02.09.1988, às vésperas da promulgação da Constituição da República, por todos:

"Em nome dos Constituintes, seus pais, com amor, ternura e fé, dizemos à recém-nascida:

Seja amparo dos fracos e injustiçados e o castigo dos fortes e prepotentes.

Expulsa a ditadura do Brasil, pela prática do ofício público com honestidade, competência, compromissos sociais e pela autoridade do exemplo, mais do que pelo ruído das palavras.

Seja escola para as crianças analfabetas, igualdade para as mulheres e minorias discriminadas, salário condizente com a distribuição de renda para os trabalhadores, proteção e estímulo para o empresariado, seguridade para todos os brasileiros, inclusive onze milhões de aposentados abandonados.

[...] Não fique somente nas estantes, saia, ande, escute, olhe mais do que escute, mais vale ver uma vez do que ouvir cem vezes.

Saia da Assembléia Nacional Constituinte, seu berço, para o serviço, o progresso e a segurança social e política da pátria" [106]. (Grifaram-se).

O confronto entre a experiência parlamentarista brasileira vivida no Império e o presidencialismo excessivamente concentrador de poderes inaugurado na República, a partir de Deodoro, levou os Constituintes a optarem pelo parlamentarismo, como sistema de governo [107]. Na opinião de Hélio Jaguaribe, "indubitavelmente, do ponto de vista institucional, o Império funcionou muito melhor que a República. Funcionou com outra tranqüilidade, outra continuidade, outra responsabilidade". [108]

Porém, assim como a própria sociedade, que apesar de haver ganho densidade organizacional, enquanto sociedade civil organizada (em associações de base, sindicatos, entidades estudantis, agremiações políticas), mantinha profundas desigualdades e desnivelamentos (analfabetismo, clientelismo, submissão eleitoral e civil etc), assim também as forças políticas que a representavam fizeram do Congresso Nacional um espaço plural e conflitivo de ideologias e interesses [109]: o parlamentarismo não passou, prevalecendo o presidencialismo, com o qual surgiram e se consolidaram as instituições brasileiras e se desenvolveu o concentracionismo político e econômico que caracteriza a República brasileira [110].

Em decorrência desse momento de transição, em que se (re)discutiram as bases da própria Nação, embutiram-se dispositivos que previram, além do plebiscito do art. 2º do ADCT, a revisão da própria Lei Fundamental, sendo assim postergada a conclusão do processo constitucional sem que se concluísse o debate (e se chegasse a um consenso, ao "acordo continuamente renovado" de que cuida Norberto Bobbio [111]) sobre questões fundamentais, como a centralização/ descentralização dos poderes/deveres e o pacto federativo, entre outros. Esses problemas permanecem na ordem do dia da pauta política brasileira [112], por representarem exigências contraditórias: de um lado, a de se dotar o país de instituições sólidas e estáveis e, de outro, a de se viver uma época de mudanças aceleradas.

A Constituinte precisou também responder ao desafio de assegurar solidamente, como jamais até então, um amplo elenco de direitos sociais, visando à proteção da população, à erradicação da miséria e da indigência, quando a realidade econômica informava ser tal projeto inviável, por incompatível com a escassez de recursos econômicos.

O desafio da Constituinte de 1987 continua atual, na medida em que não se compatibilizaram, todavia, os processos de estabilização normativa e de aceleração das mudanças. Desafio que parece maior pelo fato de um só poder - o Executivo, na figura do presidente da República -, de forma cada vez mais exacerbada, incumbir-se dessas responsabilidades, quais sejam, estabilizar as instituições e acelerar a mudança social, agudizando uma contradição de base, dado que o Estado deve ser o reflexo da Sociedade, não o contrário.

3.2 A Constituinte: o trabalho das Comissões

"[...] a Constituição será constituinte e societária. Sua feitura transitará por cinco crivos e cadinhos: vinte e quatro subcomissões, oito comissões temáticas, uma comissão de sistematização, discussão e votação plenária em dois turnos.

Semelhantes e sucessivas instâncias de meditação e reforma são janelas para a sociedade, para receber os ventos, senão a ventania, da oxigenação, das mudanças e da interação". Ulysses Guimarães [113].

A Assembléia Nacional Constituinte compôs-se de 559 Constituintes [114], dos quais 487 Deputados e 72 Senadores, tendo sido eleita por quase 70 milhões de eleitores, com o seguinte perfil:

Partidos [115]

Senadores

Deputados

Totais

01

PMDB

045

260

305

02

PFL

015

117

132

03

PDS

005

032

037

04

PDT

002

024

026

05

PTB

001

017

018

06

PT

----

016

016

07

PL

001

006

007

08

PDC

001

005

006

09

PCB

----

003

003

10

PCdoB

----

005

005

11

PSB

001

001

002

12

PMB

 

001

----

001

13

PSC

----

001

001

Totais

072

487

559

Cabe lembrar, mais uma vez, as palavras do Dr. Ulysses Guimarães, dirigidas ao então presidente da República, José Sarney, em 26.07.1988:

"Quando iniciamos a votação do segundo turno do projeto da futura Constituição, testemunho o trabalho competente e responsável dos constituintes [...]. Trinta e nove mil emendas estudadas e apresentadas documentam esse extraordinário esforço e empenho posto pelos constituintes em contribuir conscienciosamente para a qualidade do texto. Foi longa a travessia de dezoito meses. Cerca de 5,4 milhões de pessoas livremente ingressaram no Congresso Nacional. [...]

O projeto submetido a segundo turno é longo - 321 artigos - versando matéria complexa e tantas vezes controvertida.

Inevitavelmente abriga imperfeições, previamente previstas com a instituição de um segundo turno revisionista e pelo número de emendas e destaques apresentados." [116]

A leitura das Atas da Constituinte informa da seriedade e responsabilidade com que a maioria dos membros das diversas Comissões conduziram os trabalhos. Manifestando seu descontentamento por não poder contar com o prévio esforço da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais (o anteprojeto da Comissão Afonso Arinos deveria ser seu texto-base), os Constituintes debateram entre si e com a sociedade civil, de forma muitas vezes exaustiva, como se verá a seguir, os diversos pontos de uma pauta que surgiu da discussão de uma temática regionalmente priorizada e da realização de diversos seminários e audiências com instituições e órgãos especializados. Essa interação é preocupação de parte expressiva dos Constituintes, conforme se denota do pronunciamento a seguir:

"O Brasil de hoje é [...] o da associação de bairros, que busca a participação do Governo nos seus anseios, é o Brasil da comunidade eclesial de base, procurando transferir para o Governo o ônus da miséria, da pobreza, do desnível, da descompensação dos vários brasis que existem no Brasil. Devemos encontrar uma fórmula de transferir isso à Administração." Constituinte Humberto Souto, membro da Comissão da Organização do Estado [117].

É de se ressaltar que a Assembléia Nacional Constituinte de 1987, não obstante o fato de a maioria de seus membros cumprir um primeiro mandato [118], do complexo contexto de relações sociais e institucionais não raro permeadas por interesses de grupos oligárquicos, que historicamente se mantiveram na base do poder, do "lobismo" que sempre caracterizou "barganhas políticas" no Brasil, mais do que qualquer outra, foi representativa do contexto político, social e cultural em que se inseriu, por ter

- abrigado parlamentares de todas as Regiões do País, participando de todas as Comissões temáticas, de cuja contribuição resultou o esboço de um variegado painel dos contextos locais, das necessidades e disponibilidades de cada estado, de cada município;

- promovido a realização interna corporis de painéis e seminários intensivos, em função das temáticas específicas, com a participação de conferencistas expertos de entidades culturais e associativas, órgãos de governo etc;

- absorvido a resposta de constantes consultas dos parlamentares às suas bases locais e regionais, impregnadoras de seu discurso político;

- recebido constantemente, pelo canal institucional que os parlamentares representavam, a contribuição dos diversos Entes Políticos, na pessoa de governadores, prefeitos, presidentes e diretores de órgãos públicos, bem como da iniciativa privada;

- acolhido expressivo número de emendas populares, totalizando mais de 12 milhões de assinaturas, eqüivalendo a cerca de 12% do eleitorado brasileiro à época;

- processado 61.020 emendas parlamentares [119];

- elaborado e discutido vários projetos que, através de debates sucessivos, amadureceram o texto final da Lei Maior.

Na falta do texto-base oficial elaborado pela Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, decidiram seus membros, em Sessão Plenária, servir-se da Constituição de 1946 como início de roteiro, ao qual acrescentariam propostas dos partidos políticos e da sociedade civil, para o que: a) formularam convites a Ministros e a representantes de categorias profissionais e de classes, como a OAB, órgãos sindicais colegiados, para reunirem-se com cada Subcomissão e com as diversas Subcomissões e as respectivas Comissões, conjuntamente; b) definiram calendário de audiências públicas, a serem convocadas tanto por iniciativa das entidades civis como por iniciativa das Comissões; c) estabeleceram cronogramas rígidos de trabalho; d) encaminharam convites a Governadores de Estados e Territórios, às Superintendências Regionais e a jornalistas e profissionais de comunicação. [120]

Esse quadro revela que a Assembléia Constituinte de 1988, por força das injunções e na falta de um texto-base oficial, pela primeira vez na história das Constituintes brasileiras, partiu do específico para o geral, logrando ser, na prática, o que vaticinaram as palavras idealistas do Dr. Ulysses Guimarães, "societária e oxigenada pela ventania das mudanças e da interação":

"[...] diariamente cerca de dez mil postulantes franquearam, livremente, as onze entradas ao enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, comissões, galerias e salões.

Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiras, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar." Ulysses Guimarães [121]. pronunciamento na data da promulgação da Constituição.

Foi, no entender de Paulo Bonavides,

"[...] uma praça de interesses, uma feira nacional de serviços, uma bolsa de vantagens, onde tudo se disputou politicamente palmo a palmo, da forma mais direta, crua e objetiva possível, mas sempre por meios pacíficos e consensuais, mediante decisões majoritárias, todas elas numericamente expressivas, nunca inferiores a duzentos e oitenta votos no cômputo dos quinhentos e setenta delegados que compunham o efetivo da Constituinte". [122]

Os dados a seguir oferecem mais ampla visão da composição da Assembléia Nacional Constituinte, expressando a representatividade das Regiões e dos Estados, a partir da bancada de Deputados eleitos [123]:

Nº de Deputados à Assembléia Constituinte, por Região e por UF

Região

UF

Deputados

Região

UF

Deputados

Norte

49 deputados

AC

008

RN

008

AM

008

SE

008

AP

004

Centro-Oeste [124]

41 deputados

DF

008

PA

017

GO

017

RO

008

MT

008

RR

004

MS

008

Nordeste

152 deputados

AL

010

Sudeste

168 deputados

ES

010

BA

039

MG

053

CE

022

RJ

045

MA

018

SP

060

PB

012

Sul - 77

deputados

PR

030

PE

025

RS

031

PI

010

SC

016

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Relevo deve ser emprestado ao fato de que, proporcionalmente, as bancadas tiveram, na Assembléia Nacional Constituinte, o peso de sua representatividade regional, considerados os insumos demográficos à época, a saber:

Quadro comparativo das bancadas regionais de deputados à Assembléia Constituinte

Região

População (em milhões de hab.)

% da população nacional

Deputados eleitos

% do total de Deputados

Norte

010

006,9

049

010,06

Nordeste

042

029,0

152

031,21

Centro-Oeste

009

006,4

041

008,41

Sudeste

062

042,6

168

034,5

Sul

022

015,1

077

015,82

Totais

145

100,0

487

100,0

Obs.: Os dados demográficos referem-se ao censo de 1991 - cujos resultados espelham melhor a densidade populacional de 1987 do que os do censo anterior, de 1980 - e expressam-se números arredondados pelo limite menor. (Fonte: Almanaque Abril. São Paulo: Abril, 1993).

A clareza dos números evidencia que o peso das bancadas regionais correspondeu à sua proporção, relativamente à população nacional. É de se observar a maior representatividade comparada das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, em contraponto com a bancada da Região Sudeste, histórica e politicamente dominante, corroborando a assertiva feita acima da expressão regional da Assembléia Nacional Constituinte, relativizada no quadro supra.

Quanto às emendas populares inovou o Regimento Interno, no artigo 24, admitindo apresentação de propostas ao Projeto de Constituição (com direito à palavra a um dos signatários por vinte minutos), à condição de conterem no mínimo trinta mil assinaturas, com a chancela de três entidades associativas, podendo cada eleitor subscrever até três propostas [125]. Tal opção de certa forma confirmou vontade manifesta na Assembléia, no sentido da viva participação da sociedade na construção de sua Carta Política, conforme se pode denotar das palavras do Senador pelo PMDB pelo Paraná, Affonso Camargo, ao apresentar proposta regimental de

"obrigatoriedade regimental de se assegurar a todos os cidadãos brasileiros filiados a partido, mediante o preenchimento de condições mínimas, o direito de subscrever propostas à Constituinte, com qualquer parlamentar detentor de mandato.

Tal idéia ocorreu-me diante da verificação, facílima, de que o pluripartidarismo brasileiro, como sistema, tornou-se tênue e ambíguo. Assim como está, sustentando-se tão mal, num cipoal de tão grandes confusões, já não tem condições de ser um canal de comunicação da sociedade e de compreender esse momento de corte, o evento sociológico que estamos vivendo com as discussões das nossas novas leis e regras de convivência." [126]

Ao todo, foram apresentadas 122 emendas, totalizando 12.277.423 subscritores e 426 entidades apoiantes. O quadro a seguir revela tanto a diversidade temática das propostas (observe-se que abordam reiteradamente questões sociais amplas, mesmo quando defendendo interesses corporativos, como no caso da aposentadoria das donas de casa de Salvador ou de benefícios das empregadas domésticas de São Paulo), como de seus proponentes (desde um cidadão baiano, a entidades corporativas como associação de funcionários, estudantis, representativas de comunidades de base, à SBPC):

Emendas Populares à Assembléia Nacional Constituinte de 1987

Proposta

Proponente

Assinaturas

Direitos da criança

Comissão Nacional da Criança e Constituinte

1.200.000

Aposentadoria das donas de casa, contribuintes da Seguridade Social

Associações de donas de casa de Salvador, Bahia

132.528

Defesa do desarmamento nuclear mundial

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência

62.318

Questão Indígena (2 propostas)

Conselho Indigenista Missionário e por Instituições de Antropólogos, Geólogos e Cientistas

44.948 e 43.046, respectiv.

Participação dos trabalhadores no lucro real das Empresas

Associação dos Funcionários do Banco do Brasil e outras

42.226

As Forças Armadas não podem intervir na vida política do País, eis que se destinam à defesa da Pátria contra agressão externa [...]

União Nacional dos Estudantes

31.885

A Lei disporá sobre a criação de Delegacias de Defesa dos Direitos do Cidadão

Um cidadão baiano

30.000

Escola comunitária como escola pública alternativa

Movimento de Defesa dos Favelados de Salvador, Bahia

23.042

Benefícios da Previdência Social aos trabalhadores domésticos

Associação de Empregados Domésticos de São Paulo

10.402

Preservação e cultivo de plantas medicinais, assim como a prática e o desenvolvimento da medicina não-alopática ou natural, inclusive com o amparo técnico e financeiro do Estado

Instituto Brasileiro de Medicina Natural, Belo Horizonte, Minas Gerais

3.252

Das 122 emendas populares apresentadas, 34,43% (42 emendas) foram aprovadas, 33,60% (41 emendas) foram rejeitadas, 2,46% (3 emendas) foram prejudicadas e 29,51% (36 emendas) foram inadmitidas por falta de requisitos regulamentares.

Além do mais, ao longo do processo interno de discussão e votação das propostas e projetos, foram apresentadas emendas de parlamentares totalizando 61.020 emendas. A título de ilustração do que se alega, ao segundo Projeto Substitutivo do Relator de setembro de 1987, tão somente, foram apresentadas 14.578 emendas, das quais 10.508 (72,08%) foram rejeitadas, 3.392 (23,27%) foram aprovadas, 666 (4,57%) foram prejudicadas, tendo 12 emendas (0,08%) sido retiradas por seus proponentes.

A Assembléia organizou-se em oito grandes comissões temáticas, segundo critérios que determinariam a estrutura da Constituição [127], composta cada uma por 63 membros titulares e 63 suplentes, nos termos de seu Regimento Interno, subdividas em três subcomissões, a saber:

Comissões e Subcomissões temáticas reunidas na Assembléia Nacional Constituinte de 1987

Comissões

Subcomissões

Comissão de Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher

  1. da nacionalidade, da soberania e das relações internacionais;
  2. dos direitos políticos, coletivos e garantias;
  3. dos direitos e garantias individuais.

Comissão da Organização do Estado

  1. da União, do Distrito Federal e Territórios;
  2. dos Estados;
  3. dos Municípios e Regiões.

Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo

  1. do Poder Legislativo;
  2. do Poder Executivo;
  3. do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Institui-ções

  1. do sistema eleitoral e partidos políticos;
  2. da defesa do estado, da sociedade e de sua segurança;
  3. de garantia da Constituição, reformas e emendas.

Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças

  1. de tributos, participação e distribuição de receitas
  2. de orçamento e fiscalização financeira;
  3. do sistema financeiro.

Comissão da Ordem Econômica

  1. de princípios gerais; intervenção do Estado, regime da propriedade do subsolo e da atividade econômica;
  2. da questão urbana e transporte;
  3. da política agrícola e fundiária e da reforma agrária.

Comissão da Ordem Social

  1. dos direitos dos trabalhadores e servidores públicos;
  2. da saúde, seguridade e do meio ambiente;
  3. dos negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias.

Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação

  1. da educação, cultura e esportes;
  2. da ciência e tecnologia e da comunicação;
  3. da família, do menor e do idoso.

Visando a confirmar o que se aduziu a respeito da representatividade do contexto político, social e cultural da Constituinte, descreve-se a seguir a sistemática desenvolvida pela Subcomissão dos Municípios e Regiões, da Comissão da Organização do Estado [128], para a elaboração e votações do texto final do anteprojeto apresentado à Constituinte:

- Realizaram-se oito painéis, com duração de quatro horas cada, com palestrantes de vários municípios brasileiros, expertos em administração e gestão municipal (IBAM e entidades congêneres, prefeituras) e participação de membros da sociedade civil organizada. Ao todo, trinta e duas entidades participantes debateram, juntamente com os membros da Subcomissão, o seguinte temário: a) O município e a Constituinte ; b) As regiões metropolitanas; c) O vereador e a Constituinte; d) Disparidades municipais; e) O município a reforma tributária; f) Aglomerados urbano; g) Apoio e articulação regionais; h) Associativismo microrregional de municípios.

- Foram realizadas dezenove reuniões plenárias, em que se apresentaram 220 emendas. Ao todo, 364 sugestões constitucionais foram encaminhadas.

Ao cabo do empreendimento, a Comissão da Organização do Estado, para discutir e aprovar o texto final apresentado à Constituinte, a partir dos anteprojetos apresentados pelas três Subcomissões em que se dividira,

- examinou 556 (quinhentas e sessenta e seis) emendas, das quais 12,94% (72 emendas) foram acolhidas na íntegra, 30,6% (170 emendas) o foram parcialmente, 44,6% (248 emendas) foram rejeitadas e 11,86% (66 emendas) foram prejudicadas;

- publicou em junho de 1987, como Encarte do Jornal da Constituinte, a compatibilização das matérias aprovadas pelas Comissões temáticas;

- apresentou o Projeto Substitutivo do Relator em setembro de 1987;

- apresentou os Projetos da Comissão de Sistematização A em novembro de 1987 e B em julho de 1988, cada qual com substitutivo do Relator, emendas e pareceres sobre as emendas apresentadas.

É oportuno ressaltar que, com o intuito de se fornecer à Constituinte um maior número de sugestões populares, se desenvolveu, no âmbito do Senado Federal, o projeto SAIC - Sistema de Apoio Informático à Constituinte [129], que visou à valorização do papel da sociedade no processo constituinte. O projeto distribuiu quinze milhões de formulários (cerca de 15% do eleitorado nacional), proporcionalmente à população de cada município brasileiro, em três fases, a saber, a partir de 01.02.1986, de 01.06.1986 e entre 01.08.1986 e 05.01.1987 (a quatro semanas da instalação da Constituinte), por intermédio das Prefeituras, Assembléias Legislativas e Agências dos Correios. Ao todo, foram devolvidos ao projeto 72.719 formulários, com dados relativos a sexo, origem urbana ou rural da população, grau de instrução, estado civil, faixa etária, faixa de renda, atividade ocupacional, Estado e Município de domicílio, contendo sugestões discursivamente individualizadas, os quais foram indexados, classificados e cruzados pela equipe do SAIC, permanecendo à disposição da Assembléia Nacional Constituinte já desde antes de sua instalação. Mesmo em se tratando de projeto de autoria institucional, logo, dirigido de alguma forma, criticável pela homogeneidade de sua clientela (tendo como canais de veiculação apenas órgãos públicos, terminou por, de uma certa maneira, concentrar uma população ligada por laços relacionais burocráticos), cujas respostas são valoráveis ponderadamente, se contrapostas às manifestações espontâneas da sociedade civil que permearam todo o processo de trabalho constituinte, o resultado do SAIC é inegavelmente expressivo, menos pelo peso quantitativo da amostra que configurou, do que pela qualificação individualizada da população concernida, distribuída proporcionalmente pelos municípios brasileiros.

3.3. O Estado desejado

"A Constituição de 1988, com suas virtudes e imperfeições, teve o mérito de criar um ambiente propício à superação dessas patologias e à difusão de um sentimento constitucional, apto a inspirar uma atitude de acatamento e afeição, em relação à Lei Maior. [...]

A patologia do autoritarismo, aliada a certas concepções doutrinárias retrógradas, haviam destituído outras constituições de sua força normativa, convertendo-as em um repositório de promessas vagas e exortações ao legislador infraconstitucional, sem aplicabilidade direta e imediata. A Constituição de 1988 teve o mérito elevado de romper com este imobilismo. Embora ainda existam disposições inoperantes, a Constituição em vigor, tanto quanto carta de direitos como instrumento de governo, é uma realidade viva, na prática dos cidadãos e dos Poderes Públicos." Luís Roberto Barroso [130]

Como qualquer Constituição, a Carta de 1988 espelha a sociedade brasileira com todas as suas intranqüilidades, preocupações, instabilidades, deficiências de formação e de prática política. É o resultado das características de cada constituinte somadas aos desdobramentos e mediações das pressões políticas e sociais que atuaram sobre eles durante os quase dois anos de trabalho na elaboração do novo texto constitucional. Nenhuma outra Carta esteve como a de 1988 - produzida pela sociedade e não imposta pelo Estado - tão perto de refletir as forças reais do poder.

Apresentou pontos negativos, resultando em um texto excessivamente detalhista [131], sobretudo nos mais de setenta artigos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Como reflexo dos intensos e variados lobbies (que, se por um lado lhe imprimiram caráter densamente democrático, paradoxalmente, por outro, fizeram com que se impregnasse de disposições corporativistas), expressou inúmeras e dispersas regras protetivas de interesses de categorias profissionais e econômicas, como advogados, armadores, delegados de polícia, oficiais generais, polícias federal, rodoviária, ferroviária, civil, militar, corpo de bombeiros, cartórios de notas, entre outros. Ainda, revelou-se tímida e impotente quanto a matérias emergenciais, como um pacto federativo mais legítimo e efetivo [132], por exemplo, sobretudo em razão das contradições e dos interesses conflitivos, não raro corporativos, a que grande parte dos integrantes da Assembléia Constituinte eram permeáveis.

Importa ressaltar que, afinal, muitas das vicissitudes atribuídas ao texto constitucional de 1988 se devem à fragilidade de um país (e de suas instituições) marcado por constantes crises políticas e pelo desequilíbrio historicamente constante das relações sociais em seu interior, conforme demonstrado no Capítulo 1.

Não obstante seus defeitos e imperfeições, a Carta de 1988 é plena de conteúdos positivos e

"[...] mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. [...]

A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança." Ulysses Guimarães [133].

A Carta de 1988 inovou, como nenhuma outra, quanto à recuperação e consolidação das liberdades públicas, inclusive no que tange à inserção de novas garantias constitucionais, como habeas data e o direito de certidão, o mandado de segurança coletivo e a constitucionalização da ação civil pública, ampliando os instrumentos de proteção dos direitos individuais e coletivos, inclusive dos direitos difusos, de terceira geração, que abrigam domínios socialmente cruciais, como a solidariedade, o desenvolvimento, o meio-ambiente, o consumo.

É oportuno observar que, no que pertine aos princípios, direitos e garantias fundamentais (Títulos I e II), entronizou na ordem constitucional brasileira princípios fundamentais como liberdade, solidariedade e justiça social, desenvolvimento nacional e regional, erradicação da pobreza e da marginalização e não-discriminação social, princípios regentes específicos das relações internacionais e integração latino-americana, vedação da tortura, inviolabilidade da vida privada, da honra e da intimidade da pessoa humana, função social da propriedade, devido processo legal, princípios constitucionais processuais civis e penais, entre muitos outros elencados no artigo 5º [134].

Pela repartição das competências federativas, ampliou os mecanismos de distribuição do poder entre os Entes Políticos - União, Estados e Municípios. Até então, o presidente da República detinha uma competência tão extensa que terminava por monopolizar as decisões de maior relevo, restando ao Congresso Nacional um papel secundário (apesar de a eleição do Chefe do Executivo Nacional incumbir ao Colégio Eleitoral [135]), bem como reduzida autonomia política e financeira aos Estados. Quanto aos Municípios, ganharam status de componentes estruturais da Federação [136], com autonomia política, administrativa e financeira [137].

No campo da administração pública, inovou também o texto constitucional, fixando os princípios a que os Entes Políticos e seus órgãos, seja no âmbito da administração direta e indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios devem submeter-se.

Quanto à organização política e social, tencionou reduzir o desequilíbrio entre os Poderes da República, transformando o que foi Governo de um só Poder - característica do regime autoritário anterior - em um Governo dos três Poderes, fortalecendo a autonomia e independência do Poder Judiciário, ampliando as competências do Poder Legislativo, sem prejuízo da capacidade legislativa do Poder Executivo, que preservou, seja pela manutenção da delegação legislativa prevista no inciso IV do art. 59 [138], seja pela instituição das medidas provisórias, sucedâneo dos decretos-leis, com os quais o Estado Novo (de 10.11.1937 a 29.10.1945) e os governos militares (de 27.10.1965 a 05.10.1988) [139] legislaram.

Fortaleceu a autonomia e a independência do Judiciário, acentuando o papel de corte constitucional que destinou ao Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição nos termos do art. 102, criando o Superior Tribunal de Justiça, transformado em guardião do Direito federal comum, ao qual transferiu - entre outras - a atribuição de uniformizar a interpretação do direito infraconstitucional federal e os Tribunais Regionais Federais, especializando a Justiça Federal. Em especial, seguindo sua vocação social, a Constituição de 1988 instituiu a Defensoria Pública como órgão integrante do Poder Público, incumbido da orientação jurídica e da defesa, em todos os graus, dos direitos dos juridicamente necessitados que tutela, no caminho de uma cidadania plena.

Ampliou as competências do Legislativo, devolvendo ao Congresso Nacional e às suas Casas prerrogativas que lhes subtraíra a Constituição revogada. Entre as diversas atribuições expressas ao Congresso Nacional, pela Constituição de 1988, sobressai a exclusiva competência para sustar a eficácia de "atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa", nos termos do art. 49, V, litteris.

A nova Carta, dessa forma, reduziu o desequilíbrio entre os Poderes da República que, durante os anos de regime militar autoritário, determinara um desproporcional aumento do Poder Executivo, em decorrência da retirada de garantias e atribuições dos Poderes Legislativo e Judiciário.

Visando à manutenção de instrumentos agilizadores da decisão legislativa em função do interesse público, o Texto de 1988 manteve a capacidade legislativa do Executivo, através da edição de leis delegadas e de medidas provisórias com força de lei, para atender a situações de "relevância e urgência", nos termos do art. 62.

Porém, o Poder Legislativo não tem logrado êxito na tarefa de examinar essas Medidas:

- de um lado, pela exigüidade do prazo de trinta dias de que dispõe, dada a intensidade com que o Executivo as edita, transformando-as em meio regular e cotidiano de governo [140];

- de outro, pelas relações de dependência e timidez do Poder Legislativo diante de um Executivo historicamente mais autoritário e controlador de fantásticos recursos representados por programas sociais;

- ainda, em razão da falta de representatividade do espectro partidário e o não-enraizamento social dos partidos mais importantes, em sua grande parte ideologicamente descaracterizados e marcados pelo fisiologismo e por práticas cartoriais e clientelistas.

Em decorrência, embora o Legislativo tenha conquistado novas e amplas prerrogativas com a nova Constituição, assumindo a competência de estabelecer os rumos da sociedade, vê-se que suas ações refletem

"[...] antes a expressão e catalisação de impasses e acordos específicos e forjados em tempos e espaços sociais distintos do que a cristalização e formalização do que é consensual no plano do discurso das lideranças partidárias. Trata-se de um jogo complexo a ser jogado de um lado, por parlamentares desprovidos de projetos minimamente articulados para o País e incapazes de explicitar prioridades em termos de uma gestão conseqüente e responsável dos gastos públicos, e, de outro, jogado por grupos com poder de pressão e recusa empenhados em conquistar espaços para intervenções políticas fora dos parâmetros legislativos tradicionais [...]". [141]

Em conseqüência, o que se vê é a reedição quase perene de medidas provisórias, pela omissão do Poder Legislativo, em desrespeito aos pressupostos constitucionais de relevância e urgência, tratando de matérias não relevantes, como a inscrição dos nomes de Tiradentes e Deodoro no Livro dos Heróis da Pátria, e não urgentes, já que não pode ser urgente matéria reeditada durante meses [142].

Ao definir e dividir competências, fortalecer e ampliar poderes, quis a Carta Fundamental vivificar o próprio Estado, enquanto reflexo da Sociedade em um Estado Democrático de Direito, garantindo assim espaço institucional para uma prática democrática mais sólida e perene.

Não obstante as dificuldades, o excesso de atribuições do Supremo Tribunal Federal, máxime em matérias que não dizem respeito diretamente com a guarda da Constituição, como extradição, homologação de sentenças estrangeiras, entre outras, as necessidades de reforma no âmbito do Executivo, Legislativo e Judiciário - e da própria Federação -, das constantes crises institucionais entre os Poderes reorganizados pela Carta de 1988, porém inseridos em uma práxis política que ainda se encontra longe da maturidade, e de ainda depender de um compromisso político firmado por todos os grupos e classes que representam a Sociedade brasileira, a Constituição da República Federativa do Brasil mantém-se atual em sua linha principiológica geral, em sua vocação social e, sobretudo, na afirmação da supremacia dos princípios, direitos e garantias fundamentais

Nitidamente "dirigente", na lição de Canotilho, a Carta de 1988 optou pela afirmação de grandes linhas programáticas indicadoras dos caminhos a serem utilizados pelo Estado, na criação, aplicação e interpretação das leis.

Dessa forma, revelou sua volição de explicitar fins, meios e objetivos para o Estado e a Sociedade, cujos anseios buscou refletir, em particular em áreas como saúde, educação, cultura e meio-ambiente, sob a primazia de valores e princípios como justiça social, igualdade e eqüidade.

Sobretudo, manifestou sua vontade ao consolidar, ao longo do artigo 5º, a maior das proteções, "garantindo as garantias" - ousa-se humildemente afirmar -, ao submeter todas as instituições estatais aos direitos fundamentais que aquele capítulo disciplina, inserindo-o no início do texto constitucional, antes mesmo das regras de organização do Estado e dos Poderes. É dentro desse quadro que se examinará a questão das reformas governamentais, a saber, a partir da legitimidade que necessariamente deve ser a base de qualquer projeto de conformação e de reforma do Estado.

3.4 O poder de reforma

"Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.

Parágrafo único - Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Constituição da República Federativa do Brasil.

Emanado do povo, é dele o poder de criar o Estado, enquanto titular do poder constituinte originário. Esta titularidade é pacificamente reconhecida pela doutrina apesar de, devido à natureza política da matéria, terem-se construído diversas teorias a respeito de sua natureza, entendida ora como poder de direito, ora como poder de fato, em razão da visão de mundo ("weltanschaung") de cada qual [143]. Entretanto, não se controverte acerca das características essenciais que o consagram como poder inicial, autônomo e incondicionado: inicial, por não haver outro superior a ele; autônomo, porque cabe exclusivamente a seu titular explicitar o modelo político que determinará a estrutura jurídica do Estado em dado momento histórico; incondicionado porque soberano.

Em conseqüência, deverá derivar de um consenso [144], fonte de legitimidade do governo estabelecido, variando de acordo com a forma especial de organização da sociedade e seus modos de valorar e de proceder. No ensinamento de Maurice Duverger,

"A noção de legitimidade é assim uma das chaves do problema do poder. Em um dado grupo social, a maior parte dos homens acredita que o poder deve ter uma certa natureza, repousar sobre certos princípios, revestir uma certa forma, fundar-se sobre uma certa origem: é legítimo o poder que corresponde a essa crença dominante. A legitimidade, tal como a entendemos, é uma noção sociológica, essencialmente relativa e contingente. Não existe uma legitimidade, mas várias legitimidades, segundo os grupos sociais, os países, as épocas etc." [145]

Discute-se a natureza do poder constituinte da Assembléia de 1987, se originário delegado (José Afonso da Silva) ou derivado (Manoel Gonçalves Ferreira Filho), na medida em que foi convocada por uma emenda constitucional sob a vigência da Carta de 1969. É de se entender a questão sob o prisma da legitimidade.

Sendo a convocação de uma Assembléia Constituinte um ato sobretudo político, se se considerar que a sociedade exigia a mudança da ordem jurídica (nas palavras de Nagib Slaibi Filho [146], "ânsia por um novo regramento constitucional") e o restabelecimento das competências legislativas usurpadas do Congresso Nacional pelo autoritarismo militar então vigente e que a Emenda Constitucional nº 26/85 [147], ao convocar uma Assembléia "livre e soberana", visava a atender aos reclamos sociais, o poder constituinte instituído teve, pela legitimidade que decorre do consentimento do todo social, competência originária como força organizadora da vida política e social.

Conforme já demonstrado, a Carta de 1988, não obstante o fato de ter sido elaborada por representantes do povo, aos quais este delegou o poder de constituir o Estado, reunidos em uma Assembléia não exclusivamente convocada para tal, encontrou, no conjunto da sociedade brasileira, pelo fato da aceitação da nova ordem criada, o consenso necessário à estabilização do poder, justificando os atributos de "liberdade e soberania", em nome dos quais foi convocada. As palavras do então presidente José Sarney, ao instalar a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, em 03.09.1985, ilustram o que se afirma:

"O que faz a autenticidade das Constituições não é a forma de convocar-se o Colégio Constituinte: é a submissão do texto fundamental à vontade e à fé dos cidadãos. Essa vontade e essa fé, para que se manifestem, reclamam discussão, como reclamam recolher e codificar a reflexão que ela provoque [...]". [148]

Em conseqüência, limitou o poder de alterar seu texto pelo poder instituído (poder de reforma, emenda e revisão), cuja natureza é tema recorrente no direito comparado e no direito público brasileiro [149].

"[...] uma Constituição revê-se cada dia pela sua própria aplicação; porque as instituições que ela estabeleceu têm por elementos, sem cessar renovados, homens que pensam e que atuam em face de uma realidade mutável. [...] A simetria das formas constitucionais dissimula muitas vezes, mais do que revela, o equilíbrio real das forças políticas; e para conhecer o regime constitucional de um país, não basta ler a sua Constituição. Os textos, com efeito, nunca formam uma rede bastante cerrada, nem bastante firme para impedir os costumes parlamentares e governamentais de fazerem prevalecer tacitamente contra a Constituição regular uma constituição oculta que a excede e pode desnaturá-la: quer dizer que todos os países têm uma Constituição costumária, mesmo aqueles que parecem viver sob o regime de uma Constituição escrita". Jean Cruet, apud Carlos Maximiliano. [150]

Não sendo imutável, por precisar adequar-se à realidade social a que se refere, a Constituição pode - e deve - sofrer mudanças, seja informalmente [151], pelas interpretações jurisprudenciais, por sua vez condicionadas pelos costumes e práticas políticas, entre outros fatores, seja formalmente, pelos mecanismos expressamente circunscritos pelo texto constitucional.

Dentre os processos técnicos de mudança constitucional, situam-se, além da revisão (objeto de análise do item 2.1.3 acima), as emendas constitucionais, sendo de se entender a reforma constitucional como um gênero, do qual aquelas são espécies [152].

O poder de reforma deriva do princípio da supremacia da Constituição. Quando em períodos de regularidade política, é exercido como atribuição especial do Legislativo, o que expressamente autoriza o art. 59, I [153], a fim de adaptá-la a novas exigências do povo - titular da soberania - ou do Estado - criado por ele e do qual não deve dissociar-se. O poder constituinte instituído (ou derivado) exsurge do princípio da superioridade da Constituição, que diferencia - também hierarquicamente - o poder legislativo constituinte do poder legislativo ordinário. De outra forma, não haveria compreender-se a gradação claramente definida no elenco de espécies legislativas agasalhado pelo art. 59 da Carta Política brasileira. Daí entenderem-se a maior complexidade e rigidez que se impõem ao processo de elaboração de emendas constitucionais, comparativamente às demais espécies normativas.

É de se admitir, portanto, que qualquer processo formal de mudança do texto constitucional deva submeter-se aos limites explicitados pelos parágrafos do art. 60 [154], inclusive direitos não elencados no pórtico dos direitos fundamentais da Carta Magna que é o art. 5º, de que são exemplos aqueles expressos nos princípios especiais tributários da anterioridade, da capacidade contributiva e do não confisco, entre outros [155].

Posta genericamente a questão, cabe examiná-la mais detalhadamente, à luz das diversas posições doutrinárias que buscam rigor terminológico, sem estabelecerem, necessariamente, uma correspondência ideológica entre os conceitos e as realidades que os condicionam.

No tocante ao poder de reforma, entendem alguns tratar-se de poder constituinte reformador ou derivado (Celso Ribeiro Bastos), constituído (Paulo Bonavides), de criar e revisar a Constituição (Pinto Ferreira), instituído ou derivado (Manoel Gonçalves Ferreira Filho), de reforma (Afonso Arinos de Melo Franco), derivado (Celso Antônio Bandeira de Mello), reformador (Oliveira Baracho), de segundo grau (José Afonso da Silva), derivado (Hauriou e Nagib Slaibi Filho); para outros, a reforma constitucional não tem natureza constituinte, sendo poder de regulamentação (Marcelo Caetano), função reformadora (Carl Schmitt), poder reformador (Nelson de Sousa Sampaio e Ivo Dantas), competência reformadora (Michel Temer), poder revisor (Raymundo Faoro).

No caso brasileiro, sendo prevista especificamente a revisão (nos termos do art. 3º do ADCT) e a emenda constitucional, tem-se indubitavelmente que o poder originário transferiu ao Legislativo parte de seu poder constituinte, entendendo-se que não lhe concedeu o poder de reforma total, ou de constituição de um novo texto (como ocorre com as Constituições da Venezuela [156], Argentina [157], Cuba [158], por exemplo [159]). Transferiu apenas poderes de emendar normas isoladas, como uma função de conservação e fortalecimento da ordem anteriormente instaurada, dentro das prescrições constitucionais, mantendo-se sua identidade e continuidade. Não o transferindo em sua totalidade, indubitavelmente guardou para si a função criadora, ilimitada, incondicionada e não subordinada a qualquer outra regra, própria do poder constituinte originário, do qual a sociedade - o povo - é titular.

Qualquer que seja a concepção adotada, importa observar que a justificativa para a existência de um poder capaz de alterar a Lei das Leis varia de acordo com os regimes políticos vigentes, no contexto de cada ordenamento, bem como a visão de mundo de cada qual, sendo certo que as sociedades que defendem uma ordem democrática mais sólida vêem como imperiosa a necessidade de adequar as normas supremas aos anseios sociais, através do órgão constituinte que criaram para efetivar a mudança. O modo como as Constituições se estruturam, no sentido de repartir e limitar o poder de mudar - o Estado, logo, a própria Sociedade - é revelador das forças que lhes garantem legitimidade e eficácia.

Assim como demonstrado ao longo deste trabalho, a recorrência de normas consagradoras da supremacia da Constituição brasileira, além do elenco intencionalmente reiterado dos direitos e garantias individuais e coletivos - indício da preocupação e apreensão do legislador constituinte com o momento de transição que vivia o País -, informam que a Constituição, logo o Estado que, pela primeira vez democraticamente, com participação popular, se construía, deveria ser preservada em sua estrutura e em seus contornos programáticos.

Se costumeiramente se entende a manifestação do poder constituinte originário como ínsita a movimentos revolucionários, ruptura de legalidade vigente ou necessidade de construção de um novo ordenamento constitucional, no caso do Brasil a necessidade de manifestação do poder constituinte emerge, como relação de causa e efeito, do próprio processo de desenvolvimento político, dado que - o que não se discute - se vive o engatinhar da formação social da cidadania. Sobretudo quando não se desconhece que

"A história constitucional brasileira mostra com bastante evidência esse fenômeno de subordinação dos objetivos revisionistas a interesses político-partidários revisionistas. A temática revisionista, a partir da primeira constituição republicana, em 1891, começa a ser construída antes mesmo da entrada em vigência dos textos constitucionais. Os temas, por não corresponderem às reais demandas políticas e sociais, acabam, em sua grande maioria, caindo no esquecimento." Vicente Barreto [160]

A Constituição de 1988, referendada pela participação e aceitação populares, expressa uma vontade geral que deverá legitimar qualquer projeto de reforma, no sentido da necessária adaptação de seu texto às mudanças que caracterizam o ainda imaturo processo de construção democrática experimentado pela sociedade brasileira. Somente a maturidade política conferirá a coesão e a racionalidade capazes de garantir a transmissão de poderes mais amplos de reformar, sem elevados custos sociais, o que se terá tornado sólido e estável.

Alçada a fundamento constitucional do Estado, a cidadania representa muito mais do que a mera participação no processo eleitoral. Para a Constituição brasileira, cidadão deixou de ser mero sinônimo de eleitor, para assumir papel de ser participante e controlador da atividade estatal, como reflexo da imagem que se vem historicamente amadurecendo e que, por conseguinte, dele se espera.

O poder de criar o Estado ou de modificá-lo a ponto de desconfigurar seus limites e contornos, é originariamente do povo e só pode ser exercido por ele próprio - através dos instrumentos constitucionais de participação direta - ou por expressa delegação, por aqueles que o representam [161], de acordo com a vontade da Constituição. Do contrário, não haverá Estado Democrático de Direito, nem soberania - princípio fundamental nos termos do inciso I do art. 1º da Lei Maior -, porém usurpação do poder constituinte, conforme ocorrido em época ainda recente da história brasileira [162] pois, como ensinou Raymundo Faoro,

"O que há no Brasil de liberal e democrático vem de suas constituintes e o que há no Brasil de estamental e elitista vem das outorgas, das emendas e dos atos de força. Nunca o Poder Constituinte conseguiu nas suas quatro tentativas vencer o aparelhamento de poder, firmemente ancorado ao patrimonialismo de Estado, mas essas investidas foram as únicas que arvoraram a insígnia da luta, liberando energias parcialmente frustradas. O malogro parcial não presta como argumento contra as constituintes, senão que, ao contrário, convida a revitalizá-las, uma vez que, franqueadas das escoltas estatais autoritárias, encontrarão o rumo da maioria e da sociedade real [...]. O que a imperfeição da obra mostra é, apesar da adversidade, que o rio da democracia não tem outro leito por onde possa correr. O desastre histórico maior seria o salvacionismo das minorias, congeladas em privilégios, dispostas a, para mantê-los, afastar o povo das deliberações políticas." [163] (Grifaram-se)

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Sobre a autora
Regina Helena Machado

Jurista. Bacharel em Direito (Faculdades Integradas Candido Mendes, Ipanema, 1992/1996). Especialização (Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, 1997/1999). Gestora em Direitos Humanos (Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Presidência da República, 2005). Autora de livros: "Medida provisória ou a medida do poder (Rio de Janeiro: Liber Juris, 1997); "Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001) e de vários artigos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Regina Helena. Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2604, 18 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17116. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Obra originalmente publicada como livro "Reforma do Estado ou Reforma da Constituição?" (Lumen Juris, 2000).

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