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Janelas, paredes e vizinhos.

Um problema muito mais presente do que se imagina

13/08/2010 às 18:34
Leia nesta página:

SUMÁRIO: 1. O CASO; 2. A NOSSA OPINIÃO; 3. A CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS


1. O CASO

Certo domingo, um programa de televisão apresentou aos telespectadores um caso de conflito de vizinhança bastante comum nas cidades brasileiras. Pouco importa se de grande ou pequeno porte, o problema exposto é rotineiro e se faz presente, com freqüência, nas prateleiras dos cartórios dos Tribunais do País.

A situação fática era a seguinte: um determinado imóvel pertencia à mãe e às duas irmãs –– vamos denominá-las de "irmã A" e "irmã B" para facilitar a compreensão e identificação das partes. A área total foi dividida, igualmente, em três porções menores, dando a cada uma, a propriedade da sua respectiva área no imóvel. A "irmã A" construiu sua residência com dois andares, sendo que no segundo pavimento foi aberto vão e colocado janela que se posicionava frontalmente ao terreno da "irmã B".

Esta, por sua vez, também construiu sua residência, só que. diferentemente da outra proprietária, o imóvel possuía apenas um andar. Ocorre que a "irmã B" decidiu, então, ampliar o seu imóvel e construir, sobre sua casa, um cômodo para seu filho.

A construção, por sua vez, acabou por erguer uma parede que ficaria localizada na frente da janela, já existente, da "irmã A".

Ao perceber que teria a visão proporcionada pela sua janela bloqueada em razão da parede a ser erguida, a "irmã A" não permitiu que fosse feita tal obra, o que acabou conduzindo as duas ao referido programa para resolverem suas pendências de vizinhança.


2. A NOSSA OPINIÃO.

Dramas familiares à parte, resta-nos analisar o aspecto jurídico da situação que serve de mote para explanar acerca de tema bastante interessante, mas que é visto com alguma reserva pelos alunos das faculdade ante a sua simplicidade aparente, que é o direito de construir.

No nosso universo social é obrigatório que nos relacionemos com o próximo. Ninguém é uma ilha e, portanto, não conseguimos viver sozinhos. Porém, ao mesmo tempo em que precisamos de alguém junto para nos dar apoio e atenção, não desejamos que ele fique muito junto. Em outras palavras, quanto mais incidente sobre o nosso mundo jurídico, maior a probabilidade de batermos às portas do Poder Judiciário para resolver um conflito criado a partir de então.

Quando observamos as nossas vidas urbanas percebemos que o espaço antes abundante está diminuindo a passos largos. O trânsito fica mais complicado; os engarrafamentos parecem intermináveis; as filas passaram a lhe acompanhar em qualquer lugar que você ande; e a sua casa ficou menor!

Isso mesmo, seu vizinho ficou mais próximo. Estão construindo apartamentos cada vez menores, para abarcar um número maior de pessoas, num espaço reduzido. Tudo isso para justificar o desejo de morar nos grandes centros.

Para tentar sanar esses problemas, pelo menos, no que se refere ao âmbito dos imóveis, o ramo civil disponibiliza normas de direitos de vizinhança.

As regras ali contidas servem como pilar justificador do princípio da função social da propriedade, posto que o absolutismo antes reinante ruiu por terra em detrimento do interesse coletivo. Sendo assim, não podemos mais justificar a utilização da propriedade apenas "porque é meu!". O status de proprietário deve ser mantido sob o manto da valoração do âmago da sociedade. Os interesses sociais devem estar subordinados aos coletivos, inclusive quando falamos em direito de propriedade.

Neste ínterim, a Constituição Federal trouxe consigo, além da proteção ao direito de propriedade, a obrigação do seu titular em mantê-la funcionalizada, estabelecendo, portanto, limites ao seu exercício, e, por via de conseqüência, demonstrando a todos a ausência de caráter absoluto em sua configuração. Atualmente não é possível mais sustentar o ideal de que este direito está vinculado, de forma inatingível ao seu titular. O aspecto individualista deve curvar-se ao social, pois somente desta maneira será possível assegurar à harmonia nas interações pessoais.

Sendo assim, não podemos negar que todo o ordenamento jurídico está abarcado pelo ideal da função social da propriedade, o que, por sinal, justifica a celeuma em comento, já que, se assim não o fosse, nada justificaria o pleito de uma vizinha que busca impedir a construção do segundo andar da outra. Isso é a flagrante demonstração da funcionalização da propriedade brasileira. Os atos emulativos, por exemplo, são expressamente proibidos pelo Código Civil. Inexiste o direito de propriedade ilimitado. Hoje ela – a função social – é considerada como um direito fundamental.

Esclarecidas essa importante premissa, vamos analisar o caso prático.

O ponto de partida é quanto a propriedade das terras. A "irmã A" construiu o imóvel - residência - no terreno de sua propriedade composto por dois andares. No segundo pavimento foi aberta uma janela frontal ao terreno da "irmã B". Surge então primeiro problema.

O Código Civil determina em seu art. 1301 as limitações à essa possibilidade de construir janelas. Segundo afirma, há um limite mínimo de um metro e meio para abertura de janelas que sejam frontais ao terreno vizinho e de setenta e cinco centímetros quando falamos em posicionamento perpendiculares à linha limítrofe.

Este é um limite mínimo que busca assegurar a privacidade do vizinho. A abertura de janelas possibilita a visão de uma pessoa sobre o terreno da outra. Por isso, o legislador achou por bem determinar um espaço mínimo de um metro e meio para janelas frontais e setenta e cinco centímetros para aquelas que possibilitam a visão perpendicular do terreno alheio.

O liame que existe aqui é saber qual o ponto de referência para que possamos contar o referido espaço. Como estamos falando em preservação da intimidade da pessoa proprietária do outro imóvel, a melhor corrente é aquela que defende que o marco inicial deva ser a linha limítrofe entre os terrenos. Assim, pouco importa em que local esteja construída a casa do vizinho – se próximo à divisória, ou se mais afastado – o que merece relevo é a obediência da distância legalmente estabelecida da fronteira entre as duas propriedades.

No caso apresentado pelo programa, não existia essa distância. O que traria a possibilidade da "irmã B" solicitar o fechamento da janela através da ação de nunciação de obra nova, enquanto houvesse a construção. Porém, a nós foi apresentada a janela já construída. Neste caso, a "irmã B" poderia manejar a respectiva ação demolitória para determinar o fechamento da janela em questão.

Ocorre que o legislador civil preferiu determinar o prazo máximo para que se considere viável esta irresignação. Terá o vizinho o prazo decadencial de um ano e um dia para exigir o fechamento da janela ou a sua transformação em basculante, nos termos do § 2º do art. 1301 do CC. Transcorrido este lapso temporal, fulminada estará a pretensão de fechamento da janela.

No caso fático, pelo que foi apresentado, a janela já possuía mais de um aniversário da sua construção, o que prejudicaria o pleito demolitório. Aliás, como não há como abordar tal situação, devemos considerar a extrapolação do prazo legalmente determinado no art. 1301, § 2º do Diploma Civil.

Deixamos claro, então, que o foco do problema não é a questão da demolição da janela, mas sim da construção do segundo andar que impedirá a visão da referida janela face a sua construção que se dará exatamente na frente.

Resta-nos a seguinte pergunta: pode haver, agora, a construção do segundo andar da propriedade da "Irmã B", haja vista que não houve obediência da "Irmã A" do limite legalmente determinado para a construção da sua janela e nem houve o oferecimento da ação demolitória cabível no prazo determinado pelo Código Civil por parte da "irmã B"?

A decisão trazida pelo programa foi a limitação da construção por parte da "irmã B" que deveria demolir a parede já feita e reconstruí-la um pouco mais atrás, respeitando, certamente, a referida distância. Será que está correto?

Há duas posições que buscam responder a esta questão. A primeira afirma que haveria o direito, no caso, à "irmã A" de exigir a não construção da parede a fim de preservar a sua "servidão" que fora estabelecida com a construção da sua janela. Assim, a inércia da "irmã B" em não exigir o seu fechamento custar-lhe-ia a obrigação de respeitar a iluminação e a ventilação da "irmã A".

A segunda corrente afirma que mesmo em face do transcurso do lapso temporal decadencial de ano e dia que asseguraria à "irmã B" o direito de pleitear o fechamento da janela da "irmã A", não haveria que se falar em "servidão". A "irmã B" é bem verdade, não poderia exigir o fechamento da janela, mas também não seria obrigada a respeitar a distância de um metro e meio legalmente exigida.

Não poderia o proprietário do imóvel vizinho ser penalizado em razão da desobediência do outro à norma legal. Também não se pode pensar que em razão da inércia ele terá o seu direito de construir mitigado. Da leitura do parágrafo único do art. 1302, é possível observar que o legislador abre essa possibilidade.

Acreditamos que o referido artigo deve ser aplicado para o caso em apreço. Neste sentido, acompanhamos a jurisprudência do STJ que afirma:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA. INTERPRETAÇÃO DO ART. 573, §2º, DO CÓDIGO CIVIL DE 1916.

1. De acordo com a jurisprudência desta Corte, "não se opondo o proprietário, no prazo de ano e dia, à abertura de janela sobre seu prédio, ficará impossibilitado de exigir o desfazimento da obra, mas daí não resulta seja obrigado ao recuo de metro e meio ao edificar nos limites de sua propriedade" (REsp 229.164/MA, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 14/10/1999, DJ 06/12/1999, p. 90).

2. A expressão "em se tratando de vãos" (parágrafo único do art.

1.302 do Código Civil de 2002 - equivalente ao §2º do art. 573 do Código Civil de 1916) há de ser interpretada como ali subsumida a ventilação, ou areação, no mesmo nível da expressão "claridade", esta já compreendida explicitamente na locução "aberturas para luz".

3. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no Ag 686.902/MG, Rel. Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA, julgado em 10/11/2009, DJe 16/12/2009) (grifo)

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Nunciação de obra nova. Abertura de janela.

Não se opondo o proprietário, no prazo de ano e dia, à abertura de janela sobre seu prédio, ficará impossibilitado de exigir o desfazimento da obra, mas daí não resulta seja obrigado ao recuo de metro e meio ao edificar nos limites de sua propriedade.

(REsp 229.164/MA, Rel. Ministro EDUARDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/10/1999, DJ 06/12/1999 p. 90) (grifo)

- DIREITOS DE VIZINHANÇA. ARTIGOS 573, PAR-2. E 576 DO CODIGO CIVIL.

- VENCIDO O PRAZO DE ANO E DIA ESTIPULADO NO ART. 576 DO CODIGO CIVIL, O CONFINANTE PREJUDICADO NÃO PODE EXIGIR QUE SE DESFAÇA A JANELA, SACADA, TERRAÇO OU GOTEIRA, MAS NÃO FICA IMPEDIDO DE CONSTRUIR NO SEU TERRENO COM DISTANCIA MENOR DO QUE METRO E MEIO, AINDA QUE A CONSTRUÇÃO PREJUDIQUE OU VEDE A CLARIDADE DO PREDIO VIZINHO.

- AUSENCIA DE SERVIDÃO.

- RECURSO NÃO CONHECIDO.

(REsp 34.864/SP, Rel. Ministro ANTONIO TORREÃO BRAZ, QUARTA TURMA, julgado em 13/09/1993, DJ 04/10/1993 p. 20557)

RECURSO ESPECIAL. NUNCIAÇÃO DE OBRA NOVA. DIREITO DE VIZINHANÇA.

A ABERTURA DE JANELAS NO PREDIO VIZINHO, CONSTRUIDO NA DIVISA HA MAIS DE QUARENTA ANOS, MAS SEM OBEDIENCIA AO NECESSARIO AFASTAMENTO, NÃO CONSTITUI SERVIDÃO APARENTE CAPAZ DE OBRIGAR O RECUO DE METRO E MEIO DO PREDIO NUNCIADO EDIFICADO NOS LIMITES DO RESPECTIVO LOTE.

RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

(REsp 1.749/ES, Rel. Ministro GUEIROS LEITE, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/04/1990, DJ 28/05/1990 p. 4731)

Certamente, o leitor que discordar de tal posicionamento deve argumentar no sentido de que o direito de construir deve estar subordinado à função social da propriedade, o que não deixa de ser correto. Não podemos esquecer deste princípio fundamental.

Ocorre que também não se pode fechar os olhos para a situação fática apresentada pelo problema: houve desrespeito à norma legal. Será que seria justo penalizarmos a "Irmã B" com a redução da sua área construída apenas em razão da sua não objeção, no prazo legal, face a construção da janela por parte da "Irmã A"?

Ressalte-se que da leitura do § 2º do art. 1301 do Código Civil, há a possibilidade de exercício do direito de pleitear a demolição no prazo de um ano. O referido diploma nada menciona acerca de qualquer proibição de construção em seu terreno a partir desse prazo. O que se retira é o direito de exigir a destruição da janela. Nada fala, frise-se, acerca da limitação ao exercício do direito de construir.

Como estamos falando de restrição de direitos, deve haver norma específica acerca do tema, o que não há. Aliás, existe artigo que trata da temática segundo os contornos ora definidos, conforme podemos observar do art. 1302, CC.

Proíbe-se, sim, a prática de atos emulativos, posto que ofenderiam frontalmente o ideal de funcionalização da propriedade, o que não ocorre no caso em apreço. Aqui, a "irmã B" busca a construção de cômodo para dar guarida ao seu filho, ou seja, ela quer assegurar, ainda mais, a função social da sua propriedade.


3. A CONCLUSÃO

Portanto, ao nosso ver, foi equivocada a decisão apresentada no referido programa, posto que a "irmã B" não tem a obrigação de recuar sua construção, haja vista que foi a "irmã A" quem desobedeceu a previsão do Código Civil de construção de janela respeitando a distância mínima de metro e meio. A limitação ao direito de construir pertencente à "Irmã B" é um afronta às previsões constantes no Código Civil.

Sendo assim, com base nos argumentos trazidos, acreditamos que a decisão alcançada no referido programa, infelizmente, não condiz com a realidade dos Tribunais.


REFERÊNCIAS.

GOMES, Orlando. Direitos Reais. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. Vol V. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. Vol V. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2010.

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Sobre o autor
Salomão Resedá

Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia - Ufba. Especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito - Ufba. Professor da Unifacs (Universidade Salvador). Assessor do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Autor de Livros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RESEDÁ, Salomão. Janelas, paredes e vizinhos.: Um problema muito mais presente do que se imagina. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2599, 13 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17180. Acesso em: 22 dez. 2024.

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