Artigo Destaque dos editores

O poder de rejeição de leis inconstitucionais pelo Executivo

Exibindo página 2 de 4
24/08/2010 às 16:28
Leia nesta página:

3. Análise Principiológica do Tema

Os princípios, no modelo pós-positivista, assumem um lugar de destaque no ordenamento jurídico. A partir do século XX a proposta pós-positivista veio difundindo a proclamação da eficácia normativa dos princípios, a partir de então tidos como espécie de normas, capazes de solucionar conflitos. O ordenamento jurídico, na visão pós-positivista é formado por normas jurídicas de duas espécies, regras e princípios. Alguns autores pós-positivistas se ocuparam em estabelecer formas de se diferenciar regras de princípios, destacando-se a contribuição fundamental de Robert Alexy sobre o tema. Alexy estabelece como principal aspecto de diferenciação entre regras e princípios as questões afetas a sua forma de aplicação. [23]

Segundo Alexy as regras são normas que são ou não aplicáveis, em um tipo de aplicação tudo ou nada, através de subsunção. Os conflitos na aplicação de regras são solucionáveis através dos critérios de solução de antinomias, utilizados na solução de casos fáceis, quais sejam: critério cronológico, de especialidade, de hierarquia.

Quanto aos princípios, alerta Alexy que diante de uma colisão, não será possível utilizar-se de critérios de validade, uma vez que ambos os princípios serão válidos no ordenamento jurídico, não podendo ser afastados de forma absoluta como no conflito de regras. Sendo assim, a solução para o conflito de princípios, diante de sua aplicação ao caso concreto, será através de ponderação, que possibilitará a aplicação do princípio de maior relevância para o caso, tendo o outro princípio sua aplicação mitigada naquele caso específico.

Nesse sentido, à luz dos ensinamentos de Alexy, busca-se avaliar a aparente, possibilidade de colisão de princípios aplicáveis ao caso em análise, o princípio da legalidade (no sentido de dever de cumprir a lei, em sua visão mais tradicional e positivista) e supremacia da constituição (em uma visão pós-positivista do texto constitucional e de seus princípios).

Trata-se de dois princípios constitucionais de grande importância, ambos fundamentais para a implementação do Estado Democrático de Direito.

O princípio da legalidade é um postulado do estado de direito e funciona como um garantidor de direitos individuais visando combater o exercício de poder arbitrário do Estado. Sendo assim, está consagrado no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, que preceitua que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Dessa forma, os indivíduos só terão seus direitos restringidos por lei, devidamente válida e integrante do ordenamento jurídico. [24]

Enquanto ao particular é autorizado fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, a chamada "liberdade em sentido fraco", para Administração Pública a lei se mostrará como pressuposto autorizativo para sua atuação.

O princípio da legalidade, previsto no art. 37 caput da Constituição Federal, exerce um papel importante em relação ao controle da Administração Pública, principalmente no que se refere ao controle da discricionariedade, funcionando como uma limitação à atuação administrativa e garantia da segurança jurídica.

O princípio da legalidade é certamente a diretriz básica da conduta dos agentes da Administração. Significa que toda e qualquer atividade administrativa deve ser autorizada por lei. Não o sendo, a atividade é ilícita.

Não custa lembrar, por último, que, na teoria do Estado moderno, há duas funções estatais básicas: a de criar a lei (legislação) e a de executar a lei (administração e jurisdição). Esta última pressupõe o exercício da primeira, de modo que só se pode conceber a atividade administrativa diante dos parâmetros já instituídos pela atividade legisferante. Por isso é que administrar é função subjacente à de legislar. O princípio da legalidade denota exatamente essa relação: só é legítima a atividade do administrador público se estiver condizente com o dispositivo da lei. [25]

Destaca-se ainda que, devido a vários fatores, o referido princípio transmutou-se em princípio da juridicidade, para atendimento aos demais princípios e normas constitucionais que compõe o sistema jurídico.O princípio da legalidade, na visão tradicional de vinculação positiva à lei, que defende que administrar é fazer só o que a lei autoriza, não mais atende à realidade existente. A Administração Pública em seu atual papel não é mera cumpridora de lei. Nesse sentido, o princípio da legalidade administrativa, transmutou-se em princípio da juridicidade, com vinculação direta à Constituição e aos princípios gerais do Direito.

Hoje, portanto, caminha-se para a construção de um princípio da legalidade não no sentido da vinculação positiva à lei, mas de vinculação da Administração ao Direito. O princípio da legalidade ganha, assim, a conotação de um princípio da juridicidade. Não sendo possível a inteira programação legal da Administração Pública contemporânea, é forçoso, contudo, mantê-la totalmente subordinada aos princípios e regras do ordenamento jurídico, especialmente do ordenamento constitucional. [26] (GRIFO ACRESCIDO)

Dessa forma, o princípio da legalidade deixou de ser somente a vinculação da Administração Pública à lei votada pelo Legislativo (ainda que constitucional), mas principalmente, vinculação desta aos preceitos constitucionais que norteiam todo o ordenamento jurídico.

Quanto ao princípio da Supremacia da Constituição, trata-se de princípio basilar do Estado, uma vez que é a Constituição, aquela que assenta-se no mais alto nível normativo do ordenamento jurídico, e que dá validade a toda a forma constituída de Estado, e a todas as demais normas, sendo ela o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico Estatal.

Nesse sentido, a Constituição, fruto da vontade do povo, externada através do Constituinte originário, possui uma hierarquia sobre as demais normas e em decorrência disso, apresenta-se como parâmetro de validade para o exercício legislativo do constituinte derivado, na criação das normas de um dado Estado.

Nesse sentido, destaca-se o conceito de princípio da supremacia da Constituição, adotado por Pedro Lenza:

Trata-se do princípio da supremacia da constituição, que, nos dizeres do Professor José Afonso da Silva, reputado por Pinto Ferreira como "pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político", "significa que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas". Desse princípio, continua o mestre, "resulta o da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a constituição. As que não forem compatíveis com ela são inválidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam com fundamento de validade das inferiores. [27]

Considerando que a Constituição é essencial para a organização política e social do Estado e parâmetro para a criação, alteração, extinção e interpretação das normas existentes no ordenamento jurídico, toda vez que uma norma infraconstitucional afrontar seus preceitos, aquela prevalecerá dada a sua supremacia e a sua capacidade de se impor diante das demais normas vigentes no ordenamento jurídico. Nesse mesmo sentido, é o posicionamento da boa doutrina:

O conflito de leis com a Constituição encontrará solução na prevalência desta, justamente por ser a Carta Magna produto do poder constituinte originário, ela própria elevando-se à condição de obra suprema, que inicia o ordenamento jurídico, impondo-se, por isso, ao diploma inferior com ela inconciliável, de acordo com a doutrina clássica, por isso mesmo, o ato contrário à Constituição sofre de nulidade absoluta. [28]

Dessa feita, embora não haja previsão expressa na Constituição de possibilidade de descumprimento da norma inconstitucional pelos Chefes do Executivo, reafirma-se a possibilidade de descumprimento, uma vez que seria este um meio adequado para que se alcance a proteção do texto constitucional, atendendo assim, de forma satisfatória ao princípio da supremacia da Constituição.

De outro modo, se ao argumento de respeito à separação de poderes, seja em relação à legitimidade do legislativo dada democraticamente pelo voto e pelas competências constitucionalmente previstas, de criar leis, seja em relação ao poder de guarda da Constituição atribuído ao STF, obriga-se ao executivo o cumprimento da lei inconstitucional, ou mesmo, a possibilidade de descumprimento apenas nos casos de concessão de liminar pelo judiciário, estariam sendo feridos outros dispositivos constitucionais, qual sejam: o artigo 85 da Constituição Federal, que dispõe que "São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: VII- o cumprimento das leis e das decisões judiciais."; e o artigo 23 que dispõe que "É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I – zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público".

O Executivo ao negar aplicação à lei inconstitucional não estará afrontando ao princípio da separação dos poderes e a legitimidade de criar normas do Poder Legislativo, uma vez que a legitimidade de criar leis, conferida ao Legislativo, consubstancia-se no dever de criação de normas que guardem compatibilidade com a constituição e não de criar normas inconstitucionais. Além disso, o judiciário é o órgão que detém constitucionalmente a primazia de interpretar o texto constitucional, dando a palavra final sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade das leis.

Todos os Poderes da República interpretam a Constituição e têm o dever de assegurar seu cumprimento. O Judiciário, é certo, detém a primazia da interpretação final, mas não o monopólio da aplicação da Constituição. De fato, o Legislativo, ao pautar sua conduta e ao desempenhar a função legislativa, subordina-se aos mandamentos da Lei Fundamental, até porque a legislação é um instrumento de realização dos fins constitucionais. Da mesma forma o Executivo submete-se, ao traçar a atuação de seus órgãos, aos mesmos mandamentos e afins. Os órgãos do poder Executivo, como órgãos destinados a dar aplicação às leis, podem, no entanto, ver-se diante da mesma situação que esteve na origem do surgimento do controle de constitucionalidade: o dilema entre aplicar uma lei que considera inconstitucional ou deixar de aplicá-la, em reverência à supremacia da Constituição. [29]

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Embora a Constituição também tenha previsto o dever do Executivo de dar cumprimento às leis, ressalta-se que apenas há esse dever em relação às normas que guardem compatibilidade com o texto constitucional.

Por isso mesmo, desautorizar o descumprimento de norma inconstitucional pelo Chefe do Executivo por atendimento ao princípio da legalidade não seria adequado, uma vez que a norma inconstitucional também não atende ao princípio da legalidade, tendo em vista que fere os procedimentos formais e/ou materiais necessários para a sua validade.

Verifica-se, pois que o princípio da legalidade na visão moderna do direito administrativo, nada mais é do que uma decorrência do princípio da supremacia da Constituição, que no modelo pós-positivista tem o poder de influenciar a realidade jurídica e política do Estado, através de sua força de determinar a ordem social, vinculando sujeitos a obrigações de fazer ou de não-fazer, por ser essa conduta ou omissão incompatível com o texto constitucional, condicionando a criação das demais normas do ordenamento jurídico. [30]

O princípio da supremacia da Constituição não estará em colisão com o princípio da legalidade no caso de descumprimento da norma inconstitucional, uma vez que o princípio da legalidade não será prejudicado no caso de descumprimento, ao contrário, zelar pela supremacia da Constituição é em última análise zelar pelo cumprimento apenas das normas que sejam legalmente válidas.

Ressalta-se que, muito embora, exista a possibilidade de controle das leis e atos normativos (Federais e/ou Estaduais) em face da Constituição Federal pelo STF e o controle das leis ou atos normativos (Estaduais e/ou Municipais) em face da Constituição Estadual pelos Tribunais, e que após o advento da Constituição Federal de 1988 houve um alargamento do rol de legitimados do art. 103 para a propositura de ADI, a possibilidade de descumprimento direto pelo Executivo se mostra razoável uma vez que, é um meio direto e rápido e não impede o exercício das demais formas de controle de constitucionalidade, considerando que o judiciário sempre poderá se manifestar sobre o tema, sendo o legitimado pela Constituição a dar a última palavra em matéria constitucional.

A possibilidade de afastamento da aplicação da norma inconstitucional pelo Chefe do Executivo pode funcionar como importante instrumento não só para que se evite inúmeras ações diretas de inconstitucionalidade perante os tribunais e o STF sobre temas já consolidados na jurisprudência, colaborando assim com a economia aos cofres públicos e contribuindo para maior eficiência e celeridade do judiciário, como não prejudica a análise do judiciário nos casos levados à sua apreciação.

Ademais, esse tipo de controle é capaz de promover um maior amadurecimento constitucional dos Chefes do Executivo, ocasionando o que Peter Haberle denomina "democratização da interpretação constitucional" [31], que visa difundir a interpretação do texto constitucional a um maior número de intérpretes em geral, podendo refletir consequentemente em uma maior cautela dos legisladores na elaboração dos textos normativos.

Por outro lado, exigir obrigatoriamente a propositura de ADI perante aos órgãos competentes do Poder Judiciário, STF em casos de afronta à Constituição Federal, de lei ou ato normativo estadual e federal e Tribunais em caso de afronta à Constituição Estadual, de lei ou ato normativo Municipal ou Estadual, não parece razoável, uma vez que, se a recusa ao cumprimento for bem fundamentada, e observados os precedentes dos tribunais, dificilmente haverá entendimento diverso do judiciário.

Nesse sentido, caso haja convencimento sobre a inconstitucionalidade da norma, fundamentado de forma responsável, o judiciário estará atuando como ratificador do posicionamento adotado pelo Executivo no momento do veto e/ou do descumprimento, o que mais uma vez reforça a idéia de desnecessidade da propositura da ADI pelos Chefes do Executivo nestes casos, em que poderão por si só, afastar a aplicação da lei inconstitucional.

Destaca-se que o Executivo deverá propor ADI perante o Judiciário sempre que pairar dúvida sobre a real inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, para que não incorra em responsabilização por seu descumprimento, caso posteriormente a lei tenha sua constitucionalidade declarada pelo judiciário.

Verifica-se pois que ao descumprir a Constituição para dar cumprimento à norma inconstitucional os Chefes do Poder Executivo estarão afrontando de forma grave o princípio da Supremacia da Constituição, ao passo que se optar o Chefe do Executivo por descumprir a norma inconstitucional estará optando por prestar obediência à Carta Maior de nosso ordenamento jurídico, e o princípio da legalidade não estará sendo afetado, uma vez que a norma inconstitucional não atende aos preceitos de validade para que seja considerada uma norma legal, não havendo assim, que se falar em colisão de princípios e sim de dois princípios que se coadunam.

O princípio da legalidade, que norteia a Administração, não é infringido quando se nega cumprimento á ele substancial ou formalmente inconstitucional, porque tal ato, embora emanado do Poder Legislativo, é apenas formalmente lei. Tem feição de lei, mas não a eficácia necessária à formação de direitos subjetivos. [32]

No mesmo sentido, destaca-se o posicionamento do STJ, conforme trecho extraído do voto do Ministro Humberto Gomes de Bastos, em análise de Recurso Especial, em Outubro de 2003:

Diante do ato legislativo em que percebe ilegalidade, a Administração coloca-se na alternativa:

a) executa a lei, desprezando a Constituição;

b) homenageia a Constituição, desconhecendo o preceito legal.

Parece-me que esta última é a opção correta.

O Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, no Acórdão trazido à colação no recurso especial, destaca arguta observação de Francisco Campos. Dizia o festejado jurista:

...os tribunais só opinam mediante provocação. Assim, cada um dos poderes do Estado vê-se na contingência de efetuar o controle imediato da constitucionalidade. Do contrário, estar-se-iam estes poderes relegando-se à inércia e fugindo de suas responsabilidades para com o Estado de Direito.

Quando negou execução ao dispositivo que lhe pareceu inconstitucional, o Estado, através dos atos impugnados pelos impetrantes, mostrou-se zeloso com o primado da Constituição. [33]

Dessa forma, tem-se como possível que os Chefes do Executivo da União, dos Estados e dos Municípios, neguem aplicação à lei considerada inconstitucional, em atendimento ao princípio da supremacia da Constituição.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Ana Lúcia Damascena

Graduada em Direito pela Faculdade Metodista Granbery - FMG, Brasil (2010). Advogada. Servidora Pública Efetiva da Prefeitura de Juiz de Fora - MG. Atualmente atuando na Assessoria Jurídica da Comissão Permanente de Licitação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DAMASCENA, Ana Lúcia. O poder de rejeição de leis inconstitucionais pelo Executivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2610, 24 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17250. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos