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Extrafiscalidade: crise econômica mundial e o Estado Democrático de Direito

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3.Valores tutelados pela Constituição como fundamento da extrafiscalidade

A Constituição Federal de 1988, como norma suprema, instituidora do ordenamento jurídico pátrio, apresenta uma série de normas, princípios e regras, que orientam e limitam toda a elaboração legislativa, inclusive o seu conteúdo.

Tais normas (regras e princípios), por sua vez são sustentados por valores eleitos pelos constituintes que implementaram no texto constitucional a tutela de bens jurídicos que a sociedade brasileira, por meio de seus representantes, entendeu como os mais relevantes e que, portanto, mereciam estar na Constituição Federal.

Ainda, a Carta Magna outorga e delimita o papel que o Estado tem na promoção de mecanismos que determinem a defesa e o estímulo à efetiva concretização destes valores elevados à categoria de direitos.

Para uma compreensão dos fins que legitimam a presença dos tributos com uma função extrafiscal no ordenamento jurídico pátrio, destacar-se-á uma breve referência, de forma exemplificativa e aberta, a valores tutelados pela Constituição Federal.

Foram escolhidos apenas alguns valores que merecem destaque em relação à extrafiscalidade, uma vez que uma lista exaustiva fugiria ao propósito deste trabalho, sujeitando-se ainda a ser incompleta, devido a toda a extensão e complexidade do texto Constitucional de 1988.

Desenvolvimento Econômico e Social

Um dos importantes valores que permeiam a Constituição Federal é o desenvolvimento nacional em diversos sentidos, em especial o desenvolvimento econômico e social.

A menção a tal característica surge inicialmente no próprio preâmbulo do texto constitucional que faz referência à instituição de um Estado Democrático de Direito destinado a assegurar, dentre outras questões o desenvolvimento.

Posteriormente, no art. 3º, ao disciplinar os objetivos da República Federativa do Brasil, a Carta Magna destaca o desenvolvimento nacional, compreendido em conjunto com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza, da marginalização, redução das desigualdades sociais e regionais, bem como a promoção do bem de todos sem quaisquer formas de discriminação.

Evidentemente todos estes objetivos só podem ser alcançados quando os cidadãos têm condições, formais e materiais, de exercer uma participação efetiva no processo político e também contribuir como agentes econômicos. Isto implica um desenvolvimento do país com distribuição de riquezas e a equanimização dos direitos sociais.

De que forma a República pode promover este desenvolvimento? Quais são os recursos que o Estado tem para realizar estes objetivos da República? Seria absurdo considerar que tais dispositivos possuem conteúdo meramente ilustrativo ou poético. Ainda que as normas jurídicas, por si só, não sejam capazes de determinar uma efetiva mudança no cenário social, o Estado deve possuir meios para realizar tal objetivo. A própria Constituição garante a legitimidade de medidas neste sentido e oferece os recursos para tanto.

Algumas dessas prerrogativas estão no texto constitucional, quando ele determina, por exemplo, que o Estado exerce a função de agente normativo e regulador da atividade econômica, art. 174, caput, ou quando determina que a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, art. 174, § 1º.

O próprio texto constitucional, art. 179, determina que a legislação tributária em todos os níveis da Federação, seja utilizada com função extrafiscal, com o fim de favorecer o desenvolvimento e sustentação das pequenas empresas e empresas de pequeno porte. Tal determinação se apóia na importância que tais empresas cumprem na atividade econômica do país, bem como seu valor social, uma vez que são responsáveis pela promoção de muitos empregos.

Reforça tal postura o art. 146, III, "d", que também sustenta a utilização de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e empresas de pequeno porte, inclusive determinando regimes especiais e simplificados no caso do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS), das Contribuições Sociais para a Seguridade Social, das contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP).

O inciso "c", do art. 146, III, da Carta Magna, tendo em conta o relevante papel econômico e social das sociedades cooperativas, determina ainda que lei complementar deverá estabelecer um adequado tratamento tributário do ato cooperativo.

O art. 195, § 9º, permite ainda que as contribuições sociais tenham alíquotas e bases de cálculo diferenciadas em razão da atividade econômica ou da utilização intensiva da mão-de-obra. Neste caso a previsão dos tributos extrafiscais busca premiar as empresas que mais oferecem oportunidades de trabalho, promovendo a valorização do trabalho humano e o desenvolvimento social aliado ao econômico.

Propriedade Privada

No caput do art. 5º da Constituição Federal apresenta-se um rol de direitos e garantias fundamentais. Dentre estes, está a garantia, para brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, do direito à propriedade.

Esta referência consagra no ordenamento vigente, a adoção de um sistema capitalista, inibindo a implementação de um Estado nos moldes socialista, ou mesmo vedando a utilização de medidas que impeçam o desenvolvimento da propriedade privada. O Estado, na realidade, tem o dever de proteger e incentivar a propriedade privada, uma vez que o povo brasileiro, por meio de seus representantes, a elegeu como bem jurídico que merece ser tutelado.

A tributação relaciona-se de maneira muito intensa com o princípio da propriedade privada, sua incidência implica a transferência de propriedade do contribuinte para o ente estatal. Como limite a tal transferência a Constituição Federal, art. 150, IV, veda a utilização de tributo com efeito de confisco. Dessa forma, a incidência de obrigação tributária não pode impedir o exercício do direito de propriedade, sob pena de tornar-se confiscatória.

Por outro lado, a própria existência do tributo somente possui fundamento em um ordenamento jurídico que tutele a propriedade privada, caso contrário, as riquezas já se concentram no domínio do próprio Estado, não havendo inclusive capacidade contributiva que dê ensejo à incidência da norma tributária.

Como ensina Luciano Dias Bicalho Camargos (2001, p. 7-19), o instituto da propriedade está presente desde os tempos mais remotos da história humana, tendo-se constituído a propriedade imobiliária primeiro como um direito coletivo vinculado às tribos e clãs, admitindo-se posteriormente na Grécia Antiga a propriedade imobiliária privada.

Este mesmo jurista destaca que durante certa etapa, especialmente a partir do período pós-clássico (séculos IV a VI d.C.) a propriedade foi considerada como um direito individual absoluto, atribuindo a seu titular o direito pleno de usar, gozar e abusar da coisa conforme o seu entendimento.

O avanço da vida em sociedade e dos sistemas jurídicos demonstrou, entretanto, que nenhum direito, inclusive o direito à propriedade, não pode ser absoluto, deve ser compreendido e limitado em conjunto com todos os demais princípios que permeiam o ordenamento jurídico. É o que se chama de ponderação de princípios constitucionais.

Dessa forma, é plenamente reconhecido hoje que a propriedade privada deve cumprir uma função social, estando tal determinação prevista no art. 5º XXIII e art. 170, III do texto constitucional. A utilização da propriedade deve proporcionar benefícios para toda a sociedade.

Com isso, é possível adotar tributos extrafiscais com o objetivo de estimular uma adequada utilização da propriedade privada, havendo inclusive expressa menção neste sentido na Constituição da República, art. 153, § 4°, ao estabelecer, que o imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR) terá suas alíquotas majoradas em relação às propriedades improdutivas. A norma aqui apontada apresenta uma característica especial, além de prever a criação de característica extrafiscal ao imposto através da progressividade e das alíquotas diferenciadas, já aponta com clareza qual é o motivo de tal regra: o desestímulo à manutenção de propriedades improdutivas. Nisso, tem nítida relação com a diminuição ou até mesmo a vedação a uma maior desigualdade social no campo, estimulando que as propriedades cumpram sua função social, produzindo riquezas para a coletividade e gerando empregos ou ocupação econômica de pessoas em idade economicamente ativa.

Ressalta-se no inciso II, desse mesmo § 4°, que não haverá incidência do tributo sobre pequenas glebas rurais exploradas pelo proprietário e sua família, desde que ele não possua outro imóvel.

Outra previsão constitucional em relação à utilização dos tributos com fim de estimular a adequada utilização da propriedade em sua função social, está no art. 182, § 4°, II, que faculta ao Poder Público Municipal exigir imposto progressivo no tempo sobre a propriedade territorial urbana dos proprietários de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado.

Livre Iniciativa e Livre Concorrência

O constituinte brasileiro optou pela criação de um regime econômico nacional que atribui à iniciativa privada a tarefa de exploração da atividade econômica, cabendo ao Estado atuação subsidiária e em casos específicos conforme determina a Constituição no art. 173.

Ao Estado recai a responsabilidade de atuar apenas como agente normativo e regulador da atividade econômica, art. 174 da CR/88, tendo em conta a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, conforme assevera o art. 170 da CR/88.

Reforçando o valor da iniciativa privada no Estado Democrático de Direito Brasileiro, a Constituição da República assegura ainda a liberdade para o exercício de qualquer, ofício ou profissão nos termos do art. 5º, XIII e o livre exercício de qualquer atividade econômica, art. 170, parágrafo único.

O já mencionado art. 146, III, "d" da Constituição Federal ao determinar a adoção de tratamento tributário diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte tem por objetivo contribuir com a livre iniciativa, criando melhores condições para o surgimento de novas sociedades empresárias.

A Constituição favorece, estimula, tutela a livre iniciativa, o aporte de capital, inclusive através de normas extrafiscais, como o art. 156, § 2º, I, da CR/88 que estabelece imunidade do imposto de transmissão "inter vivos" em relação à transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, assim como sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.

Entretanto, o próprio ordenamento prevê limites ao exercício do direito à livre iniciativa como forma de proteção de outros direitos fundamentais, e até como forma de impedir que a livre iniciativa outorgada a alguns, restrinja a de outros, ao impedir que novos agentes ingressem no mercado econômico.

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Dessa forma, o ordenamento jurídico brasileiro assegura, no art. 170, IV, da Constituição da República a livre concorrência. É nesse sentido que vigoram normas como a do art. 173 § 4º, da CR/88, que determina que a lei reprima o abuso do poder econômico que persiga uma dominação dos mercados, a eliminação da concorrência ou o aumento arbitrário dos lucros.

Meio Ambiente

No caput do art. 170, a Carta Magna, ao afirmar que a ordem econômica instituída pela Constituição tem por fim assegurar a todos existência digna, não deixa de destacar que para isto deve ser respeitado o princípio da defesa do meio ambiente. O art. 170, VI, da CR/88, inclusive, dá instrumento para operacionalização dessa defesa do meio ambiente, por meio da adoção de tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.

Não havendo menção expressa ao que significa exatamente este tratamento diferenciado, pode-se admitir inclusive a adoção de um tratamento jurídico tributário diferenciado, mais benéfico àqueles que preservem o meio ambiente, e mais severo àqueles que apenas respeitam os índices de degradação ambiental permitido pela legislação em vigor. Dessa forma, inclusive, dá-se uma opção ao cidadão empreendedor consciente de suas responsabilidades para com o desenvolvimento sustentável de, espontaneamente, mas por meio de utilização de benefícios fiscais, reduzir o impacto ambiental gerado por sua atividade econômica. Ou seja, deixa-se, desse modo, de tratar a questão da adequação ambiental como algo apenas criminal. Há gradações entre os que respeitam a legislação ambiental vigente que devem ser consideradas.

O desenvolvimento nacional destacado anteriormente não pode se dar então de qualquer maneira, à revelia das conseqüências ambientais que possa produzir. Ainda, nesse sentido, a inibição de atividade econômica predatória do meio ambiente não pode se dar apenas pela imposição de limites de exploração ou de tipificação criminal de condutas.

Há que se distinguir os que apenas respeitam a legislação ambiental atual, daqueles que de modo efetivo, prosseguem sua exploração econômica, mas com uma adequação ambiental que beire à sustentabilidade e preservação do meio ambiente para a prosperidade, alçando patamares mais elevados de preservação ambiental. Sendo que a forma de distinção desses agentes econômicos, dentre outras, pode se dar por meio da extrafiscalidade tributária.

O que a Constituição tutela é um desenvolvimento sustentável que garanta existência digna não apenas aos seres do presente, mas também àqueles que formarão as gerações futuras.

Conforme será visto posteriormente o legislador infraconstitucional tem se fundamentado nessa valorização do meio ambiente para estabelecer normas de caráter extrafiscal.

Desenvolvimento científico e tecnológico

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 218, atribui ao Estado a competência e também o dever de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica, autorizando inclusive que Estados e o Distrito Federal vinculem parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas que estimulem o ensino e a pesquisa científica e tecnológica.

Em um contexto mundial em que o conhecimento científico e tecnológico é responsável por uma maior produção de riquezas e multiplicação do conforto, da qualidade de vida, o constituinte não deixou de eleger esse como um dos valores tutelados pelo Estado brasileiro.

Evidentemente, se, como referido anteriormente, o Estado está autorizado a destinar parte do tributo arrecadado para financiar o desenvolvimento científico e tecnológico, com mais razão poderá também conceder benefícios de natureza extrafiscal para a consecução dessa determinação constitucional.

Por meio da legislação infraconstitucional, conforme será destacado posteriormente (como é o caso da Lei do Bem – Lei 11.196/05), tem-se adotado então normas de caráter extrafiscal como forma de promover o desenvolvimento científico e tecnológico.

Apoio à Educação, Cultura e ao Desporto

A Constituição Federal, no art. 205, determina que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, exige ainda que a União aplique anualmente a parcela mínima de 18% e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios de 25%, da receita resultante de impostos na promoção desse direito.

Na Constituição encontramos previsão de norma com caráter extrafiscal que tutela a educação. Nesse sentido faz-se referência à imunidade das instituições de educação sem fins lucrativos, prevista no art. 150, VI, "c", assim como a imunidade de livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão, prevista no mesmo art. 150, VI, "d".

Tais imunidades beneficiam a formação de instituições escolares que tenham por objetivo dedicar-se à promoção da educação, assim como facilitam a difusão do conhecimento por meio da publicação de livros, jornais e periódicos.

O texto constitucional, art. 215, também valoriza as manifestações culturais, determinando que o Estado apoiará e incentivará sua valorização e difusão, devendo, inclusive, proteger a manifestação de grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Interessante constatar que as imunidades do art. 150, VI, "c" e "d", também beneficiam a cultura, uma vez que garantem a imunidade dos impostos às fundações sem fins lucrativos, destacando-se que as fundações podem constituir-se para fins culturais, conforme prevê o Código Civil, Lei 10.406/02, art. 62, parágrafo único, bem como asseguram imunidade ao papel, livros, jornais e periódicos que são importantes instrumentos de difusão dos costumes, das tradições, da própria história, da literatura e da linguagem que compõe o patrimônio cultural da nação.

Além disso, o constituinte determinou no art. 216, § 3º, que a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais, indicando expressamente ao legislador infraconstitucional a possibilidade de utilizar a legislação tributária como forma de incentivo à promoção cultural.

Outro valor atribuído pelo Estado é o da prática de esportes, estabelecendo como seu dever, art. 217, o fomento de práticas desportivas formais e não formais.

Não faltam também exemplos de leis ordinárias que, por meio de normas de caráter extrafiscal, buscam apoiar a educação, a cultura e o desporto, o que será exemplificado mais adiante.

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Sobre o autor
Flávio Lúcio Chaves de Resende

Procurador da Fazenda Nacional desde 2008. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007). Pós-Graduando Lato Sensu em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp e Rede LFG e em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp e Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e Rede LFGexperiência na área de Direito, com ênfase em Direito Tributário, Constitucional, Administrativo e Processo Civil. Ex-Gestor Fazendário da Secretaria de Estado de Fazenda de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RESENDE, Flávio Lúcio Chaves. Extrafiscalidade: crise econômica mundial e o Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2610, 24 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17255. Acesso em: 26 abr. 2024.

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