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Trânsito à beira do caos

01/11/1999 às 01:00
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Não raras às vezes, nós operadores do direito, buscamos nas entrelinhas das leis e similares a mens legis, noutras vezes, a mens legislatoris, no intuito de trazer à baila discussões de ordens jurídicas, seja no campo doutrinário, jurisprudencial ou até idiossincrático.

Porém, poucas são as vezes que realmente nos auto aplicamos a placa PARE, para que diante desta reflitamos a realidade do trânsito em sentido prático em nossa sociedade brasileira. Sempre foi incomodo trabalhar com valores teóricos e práticos simultaneamente, pois nem sempre a teoria corresponde a prática. Apesar disso, e nisto aposto todos os meus centavos, temos a necessidade de trabalhar com a realidade e legalidade de mãos dadas, no intuito de não fugir do objetivo social a ser alcançado pela lei nas determinadas situações e óbices. Isto para que não pendamos para uma visão teórica-legalista (bom teórico e mau prático), nem tampouco para uma visão concreta-desvirtuada (mau teórico e bom prático). Urge aplicarmos a balança, símbolo maior da justiça. Hoje nossa tentativa de redação neste pequenino texto cinge-se ao aspecto social do trânsito; prende-se ao escopo de trazermos para dentro de nós o que realmente acontece em nossas estradas, e consequentemente em nossas vidas.

É, portanto, com esse objetivo que trago para nossa reflexão o assunto TRÂNSITO, que ora iniciamos.


O MASSACRE

Iniciemos com alguns dados do DENATRAN, para que desde já entendamos as devidas proporções do problema chamado trânsito. Pasmem, porém, mais de 600.000 pessoas morreram vitimadas por acidentes de trânsito entre os anos de 1960 e 1996 em nosso país. Para que possamos compreender tamanha destruição de vida humana, se somarmos todos os habitantes do Estado do Acre (330.000) e do Estado de Roraima (270.000), teremos o mesmo numerário. Se ainda, computarmos que no ano de 1997 e 1998 mais de 60.000 pessoas morreram devido aos acidentes de trânsito, nosso espanto ainda subiria para a casa de 660.000 mortos , i.e., em 38 anos auto eliminamos o equivalente a dois Estados de nosso país, em conseqüência do trânsito. A guerra do Vietnã, por exemplo, que perdurou durante muitos anos, computou um total de 50.000 baixas aproximadamente . Temos portanto uma guerra do Vietnã em nossas vias públicas todos os anos.

Ainda nem nos demos ao capricho de trazer ao conhecimento as vítimas não fatais, mas que sofreram graves seqüelas, tais como perda de membros, da visão, paraplégicos, tetraplégicos, sem questionarmos marcas profundas e irreversíveis de cunho emocional. Aqui chegamos na casa dos 500.000 vitimados por ano. Repito, Meio Milhão de vitimados anualmente que tiveram suas vidas arruinadas por causa de um tal de TRANSITO.

Lanço desde já um desafio , perguntando quem de nós não teve um ente querido vitimado no trânsito, seja fatal ou não. Aliás, muito de nós mesmos já nos envolvemos em acidentes de trânsito, concordam?

Tamanha é a preocupação em todo o mundo com as mortes no trânsito, que durante a abertura da Conferência Anual de Transportes , Segurança de Trânsito e Saúde, em Washington, a OMS (Organização Mundial de Saúde), juntamente com o BID e a Escola de Saúde Pública de Harvard, afirmaram que no ano de 2020 os acidentes de carro serão a terceira maior causa de mortes e ferimentos em todo o planeta, ficando atrás apenas de isquemias do coração e da depressão. Nesta situação crescente, logo teremos o trânsito como o inimigo número 1 da vida humana.

Nosso país gasta anualmente a quantia aproximada de 4, 5 bilhões de dólares devido aos acidentes de trânsito, aqui computados os gastos médicos, hospitalares, a invalidez, a improdutividade no emprego, seguros, pensões, etc. Segundo o Gerat (Grupo Executivo de Redução de Acidentes de Trânsito ), órgão vinculado a Casa Civil da Presidência da República, tal numerário seria o suficiente para construirmos 400.000 casas populares. Portanto , se não houvessem acidentes, em apenas 10 anos, poder-se-ia construir 4 milhões de casas próprias.

Um outro dado interessante é de que em cada dez leitos hospitalares, cinco são ocupados por vítimas do trânsito. Diariamente na impressa acompanhamos o amontoado de doentes e internados nos corredores dos hospitais, a ausência de vagas, a falta de estrutura, poucos médicos. Mas será que se diminuíssemos o número de acidentes de trânsito, o sistema de saúde não estaria melhor, mais ágil e eficaz?


A QUANTO ANDA NOSSA CONSCIÊNCIA NO TRÂNSITO

No ano passado uma pesquisa inédita realizada entre acidentados no trânsito de quatro cidades brasileiras, nos traz a entristecedora realidade de que 61% dos acidentados tinham álcool no sangue. O levantamento denominado "Impacto do Uso de Álcool e Outras Drogas em Vítimas de Acidente de Trânsito" foi realizada nas cidades de Brasília, Curitiba, Salvador e Recife. A pesquisa foi realizada nos dois principais hospitais de cada cidade e nos IMLs locais. Algo que nos preocupou foi o fato de 52,8 % dos acidentados com menos de 20 anos estavam alcoolizados. Neste mesmo universo de pesquisa, verificou-se que 7,3 % dos acidentados haviam usado maconha, 3,4 % tranqüilizantes e por último 2,3% cocaína. A grande maioria dos acidentados, cerca de 40% enquadram-se na faixa etária de 20 a 29 anos, portanto, jovens em sua maioria.

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A própria Abramet (Associação Brasileira de Acidentes e Medicina de Tráfego) informou que cerca de 35% dos acidentes de trânsito com vítimas são causados pelo álcool. Tais dados vêm a ratificar nossa anterior exposição, ao falarmos dos abarrotamentos dos hospitais devido aos acidentes de trânsito.

A Santa Casa de São Paulo comprova que 80% das pessoas lá atendidas com traumatismos graves decorrentes de acidentes de trânsito, entram no hospital alcoolizadas.


ERRAR DE NOVO ?

Após um longo período de caos legal referente ao trânsito, fez-se viger a lei 9503/97, respaldado na praticidade do respeitado Código de Trânsito Alemão , o qual serviu de espelho. De início muitas foram as críticas, porém, mister se faz ressaltar que muito se melhorou em aspectos administrativos e criminais com o advento deste novel código. Nós brasileiros tivemos a sensação de que o rigorismo e a certeza da punibilidade oriunda do Estado, pudesse erradicar focos dos abusos e desmandos na área de trânsito.

Fato é, porém, que de alguns meses para cá, temos observado uma tendência da maioria em querer abrandar o código de trânsito brasileiro. Tentativas de se diminuírem os valores das multas, aumento da tolerância de álcool ao condutor embriagado, paralisação dos caminhoneiros para que se aumentam o limite de pontos na carteira de 20 para 30 no período de um ano , projeto de lei (já aprovado na Câmara dos deputados) para que seja necessário, quando em perímetro urbano a assinatura do infrator, sob pena de ser considerada inválida a autuação de um policial.

Oras, o policial autua em nome do povo, constituído pelo Estado (que somos nós mesmos), para ter a chamada fé pública. Porém, estamos buscando dar margens a mais impunidades e consequentemente mais acidentes e tragédias. Acredito que nossas corporações não deixarão viaturas perseguindo a torta e a direita pelos centros da cidade os furões de semáforos, pois desta maneira um furo de sinal vermelho poderá se transformar em um trágico acidente ou atropelamento proveniente de uma perseguição urbana.

Mas afinal de contas, o que realmente queremos?

Uma lei frágil, branda, com erros técnicos, que permita impunidade aos infratores e que dificulte a atuação das instituições que visam preservar a ordem pública no trânsito. Se a resposta é sim, então rasguemos o atual código e demos efeito respristinatório ao antigo Código Nacional de Trânsito. Mas se ao contrário, buscamos uma sociedade justa , pacífica e tranqüila, que lutemos por uma lei séria e que se faça justa tanto aos infratores quanto aos ordeiros, pois do contrário, estaremos dissimuladamente apoiando o aumento dos dados "tragestatísticos" citados alhures.


PARA FINALIZAR

Verdade é que não existe solução mágica para todos os males do trânsito em nosso país. Entrementes, não podemos olvidar que temos parcela de responsabilidade junto a atual conjuntura nacional, e diante disto, de maneira despretensiosa arriscamos alguns palpites para que possamos fazer do trânsito uma benesse, ao revés de um malefício.

  1. Maior ênfase a educação, pois esta consideramos a mola-mestra de todo o mecanismo atual e futuro no que se refere ao trânsito,
    1.1  Nas escolas públicas ou privadas, através de um maior engajamento do corpo docente e discente , cumprindo o que realmente prevê o CTB.
    1.2  Aplicação e intensificação de programa de ensino de trânsito às crianças (futuros motoristas) do ensino fundamental, em convênio entre escolas e Polícias Militares.
    Não foram poucas às vezes que testemunhamos em nossa cidade de Rio do Sul/SC, crianças que receberam aulas da PMSC dizendo " pai o Sr., esqueceu de colocar o cinto; o senhor não deveria ter passado o sinal vermelho..). São estes exemplos de cidadania familiar, invertendo a hierarquia de responsabilidades (cobrança dos filhos aos pais), e que sem dúvida, surtem mais efeito do que uma simples notificação de um policial.
  2. Maior apoio às organizações não governamentais (ONG), tal qual o projeto "VIDA URGENTE" na cidade de São Paulo, que paulatinamente vem educando e conscientizando os jovens que freqüentam bares da noite paulistana, do risco e da ilegalidade de se dirigir em ação do álcool no organismo.
  3. Implantação e manutenção de programas e cursos de trânsito gratuitos, oferecidos pelas Polícias Militares, Órgãos de Trânsito Municipais, CET, etc, a fim de fazer do condutor um verdadeiro cidadão ordeiro, a exemplo do que vem ocorrendo na Companhia de engenharia de Tráfego de São Paulo, a qual oferece cursos de direção defensivas para motoboys, motociclistas que trabalham em empresas de tele-entrega e outros.
  4. Uma maior e mais efetiva fiscalização de nossas polícias militares, bem como polícias rodoviárias federais e estaduais, tendo sempre em mente que ainda se faz necessário a permanente fiscalização e cobrança das regras de trânsito, pois a disciplina consciente dos usuários do trânsito ainda é utopia.
  5. A maior aplicação de tecnologia junto ao trânsito em geral, desde radares, lombadas eletrônicas, sensores de faixas de pedestres, sensores de "fura-semáforo", no intuito de se fiscalizar melhor , bem como proteger o cidadão condutor de eventuais falhas humanas na aplicação de penalidades.
  6. A conscientização e seriedade dos parlamentares, a fim de levarem para os debates e votações no Congresso Nacional, assuntos que representem a vontade da maioria(não infratora), e não de alguns poucos, que muitas vezes são os infratores contumazes
  7. A seriedade dos órgãos se trânsito (DETRAN, CIRETRAN,...) ao aplicarem as penalidades administrativas aos condutores ou proprietários infratores, pois a certeza da punibilidade estatal, sem dúvida é um dos maiores fatores que inibem o futuro infrator.
  8. A necessidade urgente de se adotarem políticas de engenharia de tráfego e urbana sérias, a partir de projetos de vias consideradas seguras e corretamente sinalizadas, bem como a devida manutenção destas vias. Sabe-se que a esmagadora maioria dos acidentes ocorre devido a falha humana, porém, não podemos desprezar que a maior parte de nossas estradas estão deficientes em sinais de trânsito e em segurança.
  9. Que o Ministério Público, órgão autônomo e independente, apesar do acúmulo de serviço existente , se faça mais presente e atuante através de inquéritos civis e ações públicas, nos casos dos itens 1,7,8, e ainda, nas licitações públicas referentes a pavimentações e construções de estradas e obras de trânsito, pois como já divulgado amplamente pela mídia, há em alguns casos, desvio de verbas por uns poucos mal intencionados, prejudicando a qualidade do serviço prestado.
  10. Por último, que nós componentes de uma sociedade democrática, desde já, nos conscientizemos e façamos nossa parte, cada qual em seu setor, seja como pais em relação aos filhos, ou dos filhos em relação aos pais, seja como motoristas, pedestres, ciclistas, professores, diretores, juizes, promotores públicos, policiais, enfim, como o maior e mais importante papel junto à sociedade, ou seja, de CIDADÃO BRASILEIRO.

Como última mensagem, cito uma leitura que fiz de uma entrevista do diretor do Pronto Socorro cirúrgico do Hospital das Clínicas em São Paulo, que pela sua enorme sabedoria , suas palavras em mim ficaram latentes. Dizia ele que o termo acidentes de trânsito deveria ser substituído por doenças de trânsito, pois acidentes em si ocorrem em locais inesperados, em situações imprevistas e com pessoas improváveis. Já doenças de trânsito, se combatidas com a conscientização, educação e seriedade Estatal, comparam-se `a doenças normais. E como estas podem ser prevenidas, tratadas , e por fim, curadas.

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Sobre o autor
Rodrigo Kurth Quadro

tenente da Polícia Militar de Santa Catarina, em Rio do Sul (SC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUADRO, Rodrigo Kurth. Trânsito à beira do caos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 36, 1 nov. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1727. Acesso em: 18 abr. 2024.

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