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O dolo eventual nos homicídios de trânsito:

uma tentativa frustrada

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01/07/2000 às 00:00
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Sumário: 1. Introdução ao tema. 2. Dolo eventual e culpa consciente. 3. O perigo da elasticidade do conceito de dolo eventual e a frustrada tentativa de reduzir as mortes no trânsito. 4. Considerações finais à luz do art. 302 do novo Código de Trânsito Brasileiro.


1. INTRODUÇÃO AO TEMA.

Trataremos, neste breve articulado, a propósito de um tema que há algum tempo vem atormentando a sociedade e o Direito Penal. O tema escolhido reúne dois grandes problemas: a morte no trânsito, cujas estatísticas assombram a sociedade e a discussão sobre a definição do conceito de dolo eventual que, inquestionavelmente, acutila os dogmáticos do Direito Penal.

A mídia, como se a sociedade lhe houvesse outorgado uma procuração, clama pelo aumento de penas e pelo fim da dita "impunidade". Isso, como disse Lenio STRECK, "gera reações de caráter repressivista, mormente quando ocorrem casos de grande repercussão." (1) Face a isso, existe notoriamente uma tentativa de se levar os casos de homicídios ocorridos no trânsito ao crivo do júri popular, acreditando-se que tais agentes agiriam com manifesto dolo eventual.

          A priori, cabe fazermos a pergunta que é imperativa: será possível realizar tal enquadramento? Ou ainda: será possível enquadrarmos os autores dos homicídios no trânsito no homicídio doloso (dolo eventual) sem que, para isso, se tripudie sobre os fundamentos basilares da teoria geral do delito?

A discussão é complexa e face ao novo Código de Trânsito Brasileiro, torna-se novamente pertinente.


2. DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE.

Os dogmáticos lecionam que a culpabilidade assume duas formas únicas: o dolo e a culpa. Todavia, a questão não se resume somente a esta assertiva. Descortina-se dentro desta matéria, no dizer de Hans WELZEL (2), "um dos problemas mais difíceis e discutidos do Direito Penal, por tratar-se de um fenômeno anímico", qual seja: a delimitação do dolo eventual da culpa consciente.

Então, torna-se imperiosa uma análise acurada deste "tormentoso" tema do Direito Penal do qual, a par de toda a divergência e polêmica existente, extrai-se somente uma certeza: a existência de uma tênue diferença entre o chamado dolo eventual e a culpa consciente.

Com efeito, Nelson HUNGRIA (3), ainda comentando o antigo artigo 15 do Código Penal pátrio, já se manifestava no sentido de que: "...tem-se pretendido em doutrina e na jurisprudência, identificar o dolus eventualis com a culpa consciente (luxúria ou lascívia, do direito romano), isto é, como uma das modalidades de culpa strictu sensu. Sensível é a diferença entre as duas atitudes psíquicas."

Como disse o professor da Universidade de Münster, Johannes WESSELS (4), "é largamente discutida a questão de que modo se diferencia o dolo eventual da negligência consciente."

MUÑOZ CONDE (5), lecionando sobre o dolo eventual, citando as expressões utilizadas pela doutrina, "assume o risco", "conta com ele", refere que "com todas essas expressões pretende-se descrever um complexo processo psicológico no qual se mesclam elementos intelectivos e volitivos, conscientes ou inconscientes, de difícil redução a um conceito unitário de dolo ou culpa."

O professor gaúcho, Cezar Roberto BITENCOURT (6), em sua novíssima obra, afirma que "os limites fronteiriços entre o dolo eventual e culpa consciente constituem um dos problemas mais tormentosos da Teoria do Delito."

A questão foi dirimida inicialmente na clássica obra de HUNGRIA (7) que, escorando-se na lição de Paul LOGOZ (Commentaire du Code Pénal Suisse), escreveu, o que é digno de reprodução: "Sensível é a diferença entre essas duas atitudes psíquicas. Há, entre elas, é certo, um traço comum: a previsão do resultado antijurídico; mas, enquanto no dolo eventual o agente presta a anuência ao advento dêsse resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, o agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese de supereminência do resultado e, empreende a ação na esperança ou persuasão de que êste não ocorrerá. Eis a clara e precisa lição de Logoz, que merece transcrição integral: ‘...a diferença entre estas duas formas de culpabilidade (dolo eventual e culpa consciente) apresenta-se quando se faz a seguinte pergunta: ‘por que, em um e outro caso, a previsão das conseqüências possíveis não impediu o culpado de agir?’ A esta pergunta uma resposta diferente deve ser dada, segundo haja o dolo eventual ou culpa consciente. No primeiro caso (dolo eventual), a importância inibidora ou negativa da representação do resultado foi, no espírito do agente, mais fraca do que o valor positivo que êste emprestava à prática da ação. Na alternativa entre duas soluções (desistir da ação ou praticá-la, arriscando-se a produzir o evento lesivo), o agente escolheu a segunda. Para êle o evento lesivo foi como o menor de dois males. em suma, pode dizer-se que, no caso de dolo eventual foi por egoísmo que o inculpado se decidiu a agir, custasse o que custasse. Ao contrário, no caso de culpa consciente, é por leviandade, antes que por egoísmo, que o inculpado age, ainda que tivesse tido consciência do resultado maléfico que seu ato poderia acarretar. Neste caso, com efeito, o valor do resultado possível era, para o agente, mais forte que o valor positivo que atribuía à prática da ação. Se estivesse persuadido de que o resultado sobreviria realmente, teria, sem dúvida, desistido de agir. Não estava, porém, persuadido disso. Calculou mal. Confiou em que o resultado não se produziria, de modo que a eventualidade, inicialmente prevista, não pôde influir plenamente no seu espírito. Em conclusão: não agiu por egoísmo, mas por leviandade; não refletiu suficientemente.’."

Os manuais de sala de aula ensinam de forma superficial que o agente agirá com dolo eventual quando este antevê o resultado e age. Entretanto, se o agente confiar que o resultado não se produzirá, agirá com culpa consciente. Veremos que a quaestio não é tão simples. Modernamente, a caracterização do dolo eventual gira em torno da construção de duas principais teorias: teoria da probabilidade e teoria do consentimento ou da vontade. (8)

Ambas as teorias sofrem críticas doutrinárias. (9) A teoria do consentimento ou da vontade tem maior embasamento jurídico-penal, sendo mais facilmente sustentada. Ocorre que, há quem defenda a teoria da probabilidade, gerando assim uma jurisprudência vacilante que, por vezes utiliza a teoria do consentimento e, não menos raramente utiliza a teoria da probabilidade. (10)

Nos filhamos àqueles que acreditam que a teoria da probabilidade parte apenas do elemento intelectivo do dolo, esquecendo de valorar o elemento volitivo (elemento essencial do dolo, sublinhe-se!). É este elemento volitivo (intenção), presente no dolo, que notoriamente, o distingue da culpa. O dolo é composto necessariamente de elemento volitivo e intelectivo e no dolo eventual não é diferente.

Na verdade, não basta apenas que o autor tenha como provável, ou até muito possível o resultado, pois é preciso mais do que isso para que se configure o dolo eventual. Como disse Enrique BACIGALUPO (11), "el concepto de dolo eventual requiere algo más que la representación de la possibilidad de la realización del tipo penal."

Contra a teoria da probabilidade, que ainda é defendida por GIMBERNAT (12), se tem dito e repetido que ela exige apenas que o autor tenha decidido realizar um ato que provavelmente implicará lesão de um bem jurídico. Ocorre que esta representação da probabilidade de lesão não é suficiente para se acreditar que o autor realmente tenha assumido o risco de produzir um determinado resultado, uma vez que, embora a realização seja provável, poderá o autor, confiando em sua boa fortuna, acreditar que o resultado não se produzirá.

Nesse sentido, mais correta é a teoria do consentimento, que além da necessidade de representação por parte do autor da provável lesão ao bem jurídico, exige que este tenha anuído, consentido interiormente, com o provável resultado e a conseqüente lesão.

Também contra esta teoria, como já se disse, se tem levantado críticas. BACIGALUPO (13) cita OTTO e QUINTERO OLIVARES para referir a dificuldade da prova. (14) Com certeza a dificuldade está na ilação de confrontar, hipoteticamente, o autor com uma situação irreal, com um resultado possível mas que todavia ainda não ocorreu e, além disso, demonstrar o querer efetivo do autor em lesionar o bem jurídico.

Contudo, a teoria do consentimento ou da vontade, na ausência de uma teoria mais convincente, vem sendo defendida por grande parte da doutrina moderna.

Registre-se, a propósito, que a teoria do consentimento foi defendida pelo professor da universidade de Bonn. Assim sendo, se o próprio WELZEL (15), que originou toda a escola Welziana e honrou o Direito Penal assim optou, o que restará a nós da planície... Basta citá-lo: "Hay que tener presente siempre, que puede existir dolus eventualis solamente cuando el autor fue realmente conciente de las consecuencias posibles. Si no ha pensado em absoluto en ellas, habiendolas podido conocer, actúa solamente (inconcientemente) culposamente, pero nunca com dolus eventualis. La opinión aquí defendida - teoria del asentimento - es la seguida por la jurisprudencia y la literatura, sobre la base de la voluntad de concreción. En oposición a ella, la llamada teoria de las probabilidades distingue el dolus eventualis de la culpa conciente a través del mayor número de probabilidades de producción del resultado, representado por el autor. ...En contra de esa opinion debe señalarse que descuida el elemento volitivo del dolo, en favor del intectual."

Sobre a teoria da vontade, destacamos também a segura orientação de MUÑOZ CONDE (16), trazida ao direito pátrio por Juarez TAVARES: "Para esta teoria não é suficiente que o autor situe o resultado como de produção provável, mas é preciso que, além disso, diga: ‘ainda que fosse certa a sua produção, atuaria’."

Vê-se, no Direito comparado, que a moderna doutrina continua repelindo a teoria da probabilidade. MUÑOZ CONDE (17), recentemente (1996), comentando o moderno Código Penal espanhol de 1995, em companhia de Mercedes GARCÍA ARÁM, disserta sobre as duas teorias e, embora não desconheça as críticas, opta pela teoria do consentimento: "Dolo eventual. Con la categoría del dolo directo no se pueden abarcar todos los casos en los que el resultado producido debe, por razones político-criminales, imputarse a título de dolo, aunque el querer del sujeito no esté referido directamente a ese resultado. Se habla aquí de dolo eventual. En el dolo eventual el sujeto se representa el resultado como de probable producción y, aunque no quiere producirlo, sique actuado, admitiendo su eventual realización. El sujeto no quiere el resultado, pero (cuenta con él), (admite su producción), (acepta el riesgo), etc. Con todas estas expresiones se pretende describir un complejo processo psicológico en el que se entremezclan elementos intelectuales y volitivos, conscientes e inconscientes, de difícil reducción a un concepto unitario de dolo. El dolo eventual constituye, por tanto, la frontera entre el dolo y la imprudencia, sobre todo con la llamada imprudencia consciente, y dentro de esa zona fronteriza se hace difícil determinar qué que procesos psicológicos son incluibles en una u otra forma de imputación subjetiva; pero dado el diverso tratamiento jurídico de una y otra categoría es necesario realizar la distinción con la mayor claridad. Para distinguir el dolo eventual de la imprudencia se han formulado principalmente dos teorías: La teoría de la probabilidad parte del elemento intelectual del dolo. Dado lo difícil que es demostrar en el dolo eventual el elemento volitivo, el querer el resultado, la teoría de la probalidad admite la existencia de dolo eventual cuando el autor se representa el resultado como de muy probable producción y a pesar de ello actúa, admita o no su producción. Si la probabilidad es más lejana o remota, habrá imprudencia consciente o con representación. La teoría de la voluntad o del consentimiento atiende al contenido de la voluntad. Para esta teoría no es suficiente con que el autor se plante el resultado como de probable producción, sino que es preciso que además se diga: (fórmula de Frank). Hay, por el contrario, imprudencia si el autor, de haberse representado el resultado como de segura producción, hubiera dejado de actuar. ... Parece, por ello, preferible la teoría de la voluntad, por cuanto, además de tener en cuenta el elemento volitivo, delimita com mayor nitidez el dolo de la culpa. ..."

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Ainda no Direito comparado, destacamos a recente tese de doutoramento de Mª. del Mar DÍAZ PITA (18), intitulada "El Dolo Eventual", que ao analisar as novas tendências da vontade como paradigma de delimitação e elemento do dolo, leciona sobre as teorias tradicionais, vejamos: "Las teorias volitivas tradicionales intentam la delimitación entre dolo eventual e imprudencia consciente através de un momento volitivo afirmando el dolo eventual cuando el autor no sólo se representa la posibilidad de la realización del tipo sino que, además, asiente inteiramente a su realización, es decir, aprueba la producción del resultado o lo acepta. La más extendida y admitida de estas teorías volitivas, tanto por la Jurisprudencia como por la Doctrina, es la teoría del consentimento, que además de la previsión del resultado, exige que el sujeto, desde un punto de vista interno, haya consentido en la producción del misto o, lo que es lo mismo, que haya estado de acuerdo con dicho resultado. [...] Tanto la Jurisprudencia alemana como la española, ya desde los tiempos del Reichsgericht, ha defendido una de las versiones de la teoría del consentimento como la más adecuada para delimitar el dolo eventual de la imprudencia consciente. Para afirmar la concurrencia de dolo, el sujeto debe haber ‘consentido’ en la produción del resultado."

Também WESSELS (19) já havia se manifestado sobre a teoria do consentimento: "A teoria do consentimento ou da aprovação (dominante antes de tudo na jurisprudência) exige que o autor deva ter "aprovado" ou, "aprovando, tomado em compra" o resultado tido como possível... "Aprovar" em sentido jurídico, segundo o Supremo Tribunal Federal (BGHSt 7,363); significa também, quando o resultado seja altamente indesejável ao autor, que este, por causa do fim pretendido, se conforme com sua ocorrência (com pormenores Roxim, JuS 64, 53 - Grudlagenprobeleme, pág. 209)."

José Cerezo MIR (20), após afirmar que a teoria do consentimento é a mais aceita pela doutrina, refere que a moderna ciência do direito penal alemão tem se esforçado no sentido de encontrar novas vias para deslindar o problema do dolo eventual e imprudência consciente, mas opõe-se ao critério trazido por STRATENWERTH: "Según Stratenwerth, si el sujeto se tomó en serio la possibilidad de realización de los elementos objetivos del tipo y, no obstante, llevó a cabo la acción, se daria el dolo eventual. Si confiaba, en cambio, por ligereza o temeridad, en que la realización del tipo no se produjese, se daría una imprudencia consciente. Este criterio ha hallado una amplia acogida, pues según la opinión hoy más extendida se dará el dolo eventual simpre que el sujeto se tome en serio la possibilidad de realización de los elementos objetivos del tipo y se resigne a esta posibilidad. Este criterio ha influido también en la Ciencia del Derecho penal española y en más moderna orientación de la jurisprudencia de nuestro Tribunal Supremo, que exige, para la concurrencia de dolo eventual, que el sejuto considere probable la producción del resultado delictivo, se la tome en serio y que intervenga de algún modo la voluntad, aceptándolo, aprobándolo o conformando-se com él. El criterio de que el sujeto se haya tomado en serio la posibilidad de la realización de los elementos objetivos del tipo me parece discutible, pues perjudica a las personas escrupulosas, coscientes y responsables y favorece, en canbio, al desapresivo o egoísta, que no reflexiona y, por tanto, no se toma en serio la posibilidad de la realización del tipo. ... El criterio decisivo se halla en la actitud emocional del sujeto y, por tanto, no en la magnitud que atribuya al peligro. Siempre que al realizar la acción cuente com la posibilidad de la realización del tipo, se dará el dolo eventual. Si confía, en cambio, en que el tipo no se realice, se dará la imprudencia consciente. Si el sujeto considera probable la realización de los elementos objetivos del tipo contará generalmente, pero no siempre, com su producción. Aunque el sujeto no considere probable la realización de los elementos objetivos del tipo se dará el dolo eventual si contaba com dicha posibilidad. Cuando al sujeto le sea indifernte la lesión o el peligro del bien jurídico, contará generalmente com su produción, pero no es preciso que así sea."

Cerezo MIR, assim como COBO del ROSAL e VIVES ANTON (21), dá elasticidade demasiada ao conceito de "intenção" (expressão utilizada na legislação de seu país). Como referido pelo próprio professor: "el término ‘intención’ tiene que ser interpretado, a mi juicio, como sinónimo de dolo, es decir, en sentido amplio y no en su estricto sentido psicológico." (22)

Se STRATENWERTH refere que para a caracterização do dolo eventual é necessário que o sujeito haja tomado a sério a possibilidade de realização dos elementos objetivos do tipo, é porque se assim não for, se o agente não levar com seriedade tal possibilidade (de realização dos elementos objetivos), significa que ele, por alguma razão, realmente acreditava que o resultado não se concretizaria. Dolo é tomar ciência e querer os elementos objetivos previstos no tipo legal. Então, ao contrário, se o autor levasse a sério a possibilidade da realização dos elementos objetivos do tipo, e se diante disso, agisse, estaria configurado o dolo eventual.

No mesmo sentido que STRATENWERTH está JESCHECK (23), que em pensamento semelhante, afirma que "dolo eventual significa que el autor considera seriamente como posible la realización del tipo legal y se conforma com ella." O professor alemão refere que pertencem ao dolo eventual, de um lado, a consciência da existência do perigo concreto de que se realize o tipo e, de outro, a consideração séria deste perigo por parte do autor.

Enquanto isso, os espanhóis continuam discutindo a "semântica" do termo "intenção" que fora empregado em sua legislação. Cerezo MIR, refere que "las lenguas románicas la palabra ‘intención’ se utiliza tambíen en un sentido amplio, equivalente a ‘voluntariedad’ y, además, de interpretarse la palabra ‘intención’ en sentido estricto, se llegaría a consecuencias insatisfactorias desde el punto de vista político-criminal." (24)

O litígio semântico sobre o termo "intenção" possibilita que seja dado um conceito mais elástico à figura do dolo eventual, isso se a "intenção" for admitida em sua forma "lata". Com certeza, Cerezo MIR desconhece o perigo da elasticidade do conceito de dolo eventual. Ao contrário do que preconiza o ilustrado professor, a dilatação do conceito ou a sua interpretação em sentido amplo, se não utilizado em benefício do agente, fere os princípios basilares do Estado Social Constitucional Democrático de Direito, bem como a teoria do garantismo, desembocando numa política criminal meramente repressivista.

Existem, indubitavelmente, grandes dificuldades para a delimitação do dolo eventual e da culpa consciente. Percebe-se, com hialina clareza, que embora existam novas teorias que não refiram de forma expressa a necessidade do consentimento/anuência no resultado, estas, para fixarem os limites do dolo eventual, não dispensam o seu elemento volitivo, como fazem os defensores da teoria da probabilidade. Apenas a possibilidade, a representação (que existe também na culpa consciente) não basta para delimitar o dolo eventual.

O Código Penal brasileiro, em seu artigo 18, dispõe: "Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. § único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido for fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente." (25) (26)

Luiz REGIS PRADO, comentando o artigo, refere que no dolo eventual "o agente não quer diretamente a realização do tipo objetivo, mas aceita como provável ou possível – assume o risco da produção do resultado (teoria do consentimento – art. 18, I, in fine, CP). O agente conhece a probabilidade de que sua ação efetive o tipo. O que o caracteriza é a representação de um possível resultado. O Código Penal deu tratamento eqüipolente às duas espécies, devendo a distinção ser feita no momento da aplicação da pena."

Paulo José da COSTA Jr. (27), escorando-se na doutrina italiana, cita GALLO para referir que na culpa consciente há uma previsão negativa: o evento não se realizará. No dolo eventual, há uma previsão positiva: é possível que se verifique o evento. Por fim, COSTA Jr. diagnostica: "os elementos integrantes do dolo eventual são dois: a representação do resultado como possível e a anuência do agente à verificação do evento, assumindo o risco de produzi-lo." (28) (grifamos)

Ainda na doutrina pátria, cabe por em relevo a lição de Alberto SILVA FRANCO (29) que, corretamente, evidenciou os dois momentos exigidos pela teoria da vontade: "A conjugação da consciência e da vontade representa o cerne do dolo e esses dois momentos definidores não são estranhos ao dolo eventual que, como observa Diaz Palos, "es dolo antes que eventual (Dolo Penal, Barcelona, p. 97). E, por ser dolo e, desta forma, por exigir os dois momentos, não pode ser conceituado com o desprezo de um deles, como fazem os adeptos da teoria da probabilidade, que se desinteressam por completo o momento volitivo. Assim, não basta para que haja dolo eventual que o agente considere sumamente provável que, mediante seu comportamento, se realize o tipo, nem que atue consciente da possibilidade concreta de produzir o resultado, e nem mesmo que tome a sério o perigo de produzir possível conseqüência acessória. Não é exatamente no nível atingido pelas possibilidades de concretização do resultado que se poderá detectar o dolo eventual e, sim, numa determinada relação de vontade entre esse resultado e o agente. Daí a posição mais correta dos defensores da teoria do consentimento que se preocupam em identificar uma manifestação de vontade do agente em relação ao resultado." (grifo nosso)

José Frederico MARQUES (30) utiliza duas expressões para descrever a figura do dolo eventual, afirmando que "o agente prevê o resultado como possível e o admite como conseqüência de sua conduta, muito embora não queira propriamente atingi-lo." (grifamos)

A lição de Cláudio Heleno FRAGOSO (31) é repetida invariavelmente, no sentido de que a expressão "assumir o risco é imprecisa, para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve ser interpretada em consonância com a teoria do consentimento."

Celso DELMANTO (32) afirmou que "no dolo eventual, não é suficiente que o agente se tenha conduzido de maneira a assumir o risco de produzir o resultado; exige-se, mais, que ele haja consentido no resultado." (grifamos)

Portanto, resta evidente que na caracterização do dolo eventual não basta que o agente se comporte somente assumindo o risco de produzir o evento. Também, sob nossa ótica, é requisito obrigatório o fator volitivo: concordância, anuência ao advento do resultado. Não resta outra alternativa, senão aderirmos a teoria do consentimento.

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Sobre o autor
Alexandre Wunderlich

advogado criminal, especialista e mestre em Ciências Criminais (PUC/RS), professor de Direito Penal da pós-graduação da PUC/RS e UFRGS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WUNDERLICH, Alexandre. O dolo eventual nos homicídios de trânsito:: uma tentativa frustrada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1732. Acesso em: 4 nov. 2024.

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