A JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA A RESPEITO DA APLICAÇÃO HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Expostas algumas posições doutrinárias nacionais a respeito da matéria, passa-se agora à análise de algumas decisões judiciais proferidas pelos Tribunais pátrios, destacando-se, em primeiro lugar, uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos idos de 1996 em que, sem discutir as teorias acima elencadas, adotou a tese da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Com efeito, em 1996, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal julgou o caso em que uma determinada companhia aérea francesa pagava um salário para os seus funcionários brasileiros e outro, maior, para os seus funcionários franceses. Chegando a matéria ao Pretório Excelso, por meio do Recurso Extraordinário nº 161243/DF, de relatoria do então Ministro Carlos Velloso, foi consignado que referida diferenciação seria inconstitucional, por violação ao princípio da isonomia, amparado no artigo 5º, caput, da Carta Constitucional, estando a ementa desta decisão assim disposta,
CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput.
I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput).
II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465.
III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso.
IV. - R.E. conhecido e provido. [33]
Contudo, após estes julgados e alguns outros proferidos pelos Tribunais pátrios, chega ao Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso Extraordinário 201819/RJ, um caso versando sobre a aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada, em que acabou se discutindo as diversas teses existentes sobre o tema.
Tratava-se de Recurso Extraordinário interposto pela União Brasileira de Compositores contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que havia confirmado sentença de primeira instância onde se determinara a reintegração de um sócio excluído dos quadros da associação sem lhe ter sido oportunizado o direito à ampla defesa e ao contraditório. Sustentava a referida associação que ao caso era inaplicável o princípio da ampla defesa, pois não possuía essa a qualidade de órgão da Administração Pública, mas de entidade de direito privado, dotada de estatutos e atos regimentais próprios que disciplinavam a relação com seus sócios.
A Relatora originária, Ministra Ellen Gracie, em 08 de agosto de 2004, votou no sentido do conhecimento e provimento do recurso, por entender não ser aplicável às associações privadas o princípio da ampla defesa e do contraditório, adotando a teoria do "state action"norte-americana.
Neste sentido,
[...] A controvérsia envolvendo a exclusão de um sócio de entidade privada resolve-se a partir das regras do estatuto social e da legislação civil em vigor. Não tem, portanto, o aporte constitucional atribuído pela instância de origem, sendo totalmente descabida a invocação do disposto no art. 5º, LV da Constituição para agasalhar a pretensão do recorrido de reingressar nos quadros da UBC.
[...]
Diante do exposto, conheço do recurso, e lhe dou provimento. [34]
Após, o voto da Ministra Relatora, o Ministro Gilmar Mendes pedira vista dos autos, para melhor análise do mesmo, trazendo na sessão de 16 de novembro de 2004, por meio de um longo texto, em que abordara as diversas concepções acerca da matéria, o seu entendimento. Neste afirmou que, tendo em conta que a União Brasileira de Compositores possuía caráter público e geral, era legitima a aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório no processo de exclusão de seu sócio, razão pela qual estaria desprovendo o recurso.
Nesta seara, Gilmar Ferreira Mendes, defende
[...] Estando convencido, portanto, de que as particularidades do caso concreto legitimam a aplicabilidade dos direitos fundamentais referidos já pelo caráter público – ainda que não estatal – desempenhado pela entidade, peço vênia para divergir, parcialmente, da tese apresentada pela eminente Relatora. Voto, portanto, pelo conhecimento do recurso e, no mérito, pelo seu desprovimento. [35]
Considerando a dimensão que a matéria alcançou, o Ministro seguinte, Joaquim Barbosa, entendeu por bem em pedir vistas, trazendo seu voto ao lume da Turma, em 26 de abril de 2005, acompanhando a posição tomada pelo seu predecessor,
[...] De minha parte, a exemplo do ministro Gilmar Mendes, penso, ao contrário, que os direitos fundamentais têm, sim, aplicabilidade no âmbito das relações privadas. Tomo a cautela de dizer que não estou aqui a esposar o entendimento de que essa aplicabilidade deva verificar-se em todas as situações. No campo das relações de privadas, a incidência das normas de direitos fundamentais há de ser aferida caso a caso, com parcimônia, a fim de que não se comprima em demasia a esfera da autonomia privada do indivíduo.
[...]
Assim, na linha do que foi sustentado no voto divergente, e em virtude da natureza peculiar da associação em causa (que tem natureza "quase pública"), peço vênia à ministra Ellen Gracie para dela divergir, concordando com o entendimento de que os princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal no caso têm plena aplicabilidade para fins de exclusão do sócio da sociedade.
Conheço, pois, do recurso extraordinário, e a ele nego provimento. [36]
Na mesma sessão, em que pesem os votos divergentes dos Ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa, entendeu o Ministro Carlos Velloso, apesar de reconhecer que na esfera de direitos trabalhistas estes vinculam direta e imediatamente os particulares, em acompanhar o raciocínio da Ministra Ellen Gracie, dando provimento ao recurso sob o fundamento de que a posição tradicional daquele Excelso Pretório era de que para regularidade da garantia do devido processo legal bastava a observância da lei que remetia ao estatuto da associação. Tendo sido o processo de exclusão pautado no mencionado estatuto, não haveria que se falar em violação à cláusula do devido processo legal.
Neste diapasão,
[...] Temos, no caso, a mesma doutrina que aplicamos quando se alega o descumprimento do devido processo legal. É que devido processo legal se exerce de conformidade com a lei. Ora, neste caso, exerce-se de conformidade com o Estatuto do clube a que ele aderiu. O novo Código Civil manda observar essas prescrições de defesa e a questão continua, entretanto, no âmbito infraconstitucional; ter-se-á, então, questão de ilegalidade se entender necessária esta interferência, esta defesa, nos termos do novo Código Civil. Questão infraconstitucional, portanto.
[...]
Acompanho a Sra. Ministra-relatora, data vênia do Sr. Ministro Joaquim Barbosa. [37]
Empatado o julgamento, o então Ministro-Presidente da Turma, Celso de Mello, entendera por bem estudar melhor o caso, trazendo à discussão da Corte a matéria em 11 de outubro de 2005, sessão na qual votou no sentido do desprovimento do recurso, acolhendo a tese da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais na esfera das liberdades públicas.
Neste sentido, Celso de Mello assim averberou,
É por essa razão que a autonomia privada – que encontra claras limitações de ordem jurídica – não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia de vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.
[...]
Concluo, pois, Senhores Ministros, no sentido de reconhecer que assiste, ao associado, no procedimento de sua expulsão referente à entidade civil de que seja membro integrante, a prerrogativa indisponível de ver respeitada a garantia do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, consoante prescreve, em cláusula mandatória, a Constituição da República, em seu artigo 5º, LV, não obstante se trate, como no caso, de ato praticado na esfera e sob a égide de uma típica relação de ordem jurídico-privada.
Sendo assim, consideradas as razões expostas e na linha de divergência iniciada pelo eminente Ministro Gilmar Mendes e reafirmada pelo eminente Ministro Joaquim Barbosa, peço vênia para conhecer e negar provimento ao presente recurso extraordinário, mantendo, em conseqüência, por seus próprios fundamentos, o v. acórdão emanado do E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. [38]
Assim, colhidos os votos de todos os integrantes da Segunda Turma, fora o Recurso Extraordinário interposto pela União Brasileira de Compositores, por maioria, conhecido e desprovido, estando a sua ementa assim vazada,
SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS.
As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.
II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES.
A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.
III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO.
As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88).
IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. [39]
Ressalte-se, que em que pese o Pleno do Supremo Tribunal Federal não ter conhecido, ainda, da matéria, denota-se pelas decisões de sua Segunda Turma, um claro posicionamento no sentido de se prover aos direitos fundamentais uma eficácia direta e imediata na órbita das relações privadas.
No compasso desta digressão, mais recentemente, imbuídos desta nova visão a respeito dos direitos fundamentais, já acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, os Tribunais de Justiça dos Estados têm adotado, sem titubear, a tese da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações horizontais.
Neste diapasão, colaciona-se, dentre várias, a ementa do seguinte julgado proferido pela Décima Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no bojo da Apelação Cível 2006.001.56147, Relator Desembargador Luiz Fernando de Carvalho, cuja sessão ocorrera em 16.10.2007, versando sobre a conduta afrontosa à honra e intimidade de certo empregador para com seus empregados, em razão de furto ocorrido no local de uma determinada obra,
RESPONSABILIDADE CIVIL E CONSTITUCIONAL. VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS. FURTO EM LOCAL DE OBRA.
Operários que são conduzidos de carro pelo dono da obra a suas próprias casas, em meio ao trabalho, sob o pretexto de carona, para que buscar documentos de identidade para depor em inquérito policial, lá sendo constrangidos pela entrada não-consentida de seu contratante nas residências, em atitude inquisitiva e sugestiva da participação dos trabalhadores no furto. Ações fundadas no mesmo conjunto de fatos, com idênticas causas de pedir e pedidos. Conexão factual. Sentenças de improcedência. Apelações dos autores. Circunstância incontroversa de que os autores trabalhavam em obra do réu no período do furto, sendo por ele conduzidos de carro às suas casas, nelas entrando aquele, apesar de instado em contrário. Ausência de refutação pelo réu. Constatação do intuito de pressionar e constranger os autores, em conduta afrontosa, praticada em público, em vizinhança modesta de cidade interiorana, com abuso da subordinação jurídica dos autores pelo réu. Atitude policialesca e acusatória, que implicou na violação dos direitos fundamentais à intimidade, à honra e à imagem (art. 5º, X, CRFB). Prova testemunhal que corrobora as narrativas dos autores. Direitos cuja eficácia não se restringe ao aspecto vertical, como defesa dos cidadãos perante o estado, mas também horizontal, aplicando-se às relações privadas, pois é incompreensível uma ordem jurídica na qual apenas os entes públicos - e não os particulares - estejam jungidos ao respeito aos direitos fundamentais. Precedentes do STF. Ilicitude. Dano à esfera extrapatrimonial dos autores, que se mostra in re ipsa e excede em gravidade, em razão das circunstâncias, aquele comumente reconhecido em hipóteses de negativação indevida e de publicação de matéria meramente injuriosa, ao qual deve ser atribuída reparação que expresse a concorrência entre o pretium doloris e o valor de desestímulo, fixando-se, portanto, em quantia equivalente a 60 salários mínimos na data da sentença, com os acréscimos e atualização legais. Pleito de publicação de matéria de desagravo que se rejeita, em vista do tempo decorrido desde o fato e de um dos autores que o formularam já ter falecido, não podendo a prestação voltar-se para a recomposição de sua imagem. Provimento parcial do apelo. [40]
Como salientado, já é possível observar decisões judiciais pátrias que determinam a aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada, adotando-se, como regra, a tese da eficácia direta e imediata desta espécie de direitos nas relações horizontais.
E é neste sentido que se conclui o presente estudo, por meio do cotejo entre a Constituição da República, a tese da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas e a jurisprudência pátria sobre o assunto.