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O princípio da insignificância e sua aplicação pelos tribunais

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07/09/2010 às 11:03
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3. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E OS TRIBUNAIS PÁTRIOS

A doutrina aponta como o primeiro julgado a acolher o princípio da insignificância o RHC nº 66.869-1, da 2º turma do STF, que, em julho de 1988, em votação unânime, decidiu arquivar a ação penal com o fundamento de que uma equimose, de três centímetros de diâmetro, decorrente de um acidente automobilístico, escapa ao interesse punitivo do Estado em virtude do princípio da insignificância - não acolhendo a tese do Tribunal inferior e da Procuradoria-Geral da República que sustentava que a lesão preenchia os requisitos necessários para a existência da tipicidade penal, ainda que de nenhuma conseqüência funcional. No julgamento, os Ministros alegaram que o prosseguimento da ação penal não lograria nenhum resultado, só sobrecarregaria ainda mais os serviços da Justiça e incomodaria inutilmente a vítima. Esse julgado foi, muito provavelmente, o precedente para inserção do princípio da insignificância nos demais tribunais pátrios.

Os nossos tribunais, desde então, têm aplicado o princípio da insignificância em casos de furto, lesão corporal, dano, posse/uso de drogas [19], contravenções etc, consoante aos argumentos de irrelevância social e econômica da res furtiva, aliados à ausência de periculosidade da conduta incriminada, e os argumentos da falta de potencialidade ofensiva do fato, a natureza levíssima das lesões causadas e a falta de ameaça danosa ou concretamente perigosa que justifique a imposição de uma pena.

Entretanto, a questão é que os nossos tribunais não têm seguido uma mesma linha. Isto é, aplica-se o princípio da insignificância com argumentos diferentes, ora conjugado com o princípio da proporcionalidade, ou da intervenção mínima, da fragmentariedade ou da subsidiariedade, dentre outros. É por isso que se mostra necessário estudar este princípio, a fim de dar-lhe, se possível, um conceito comum, ou, pelo menos, traçar as linhas gerais que são comuns.

Com relação ao furto, veja-se a jurisprudência do TJGO [20]:

"Furto qualificado. Apelação da acusação. Botijão de gás. Crime de bagatela. Pequeno valor da ‘res’ em relação ao patrimônio das vítimas. Apreensão e devolução imediatas. Ausência de prejuízo. Aplicação do princípio da insignificância. Absolvição - O furto de um botijão de gás sem prejuízo, ínfimo que seja para a vítima, diante da imediata apreensão e devolução, decorrente do flagrante, sem também, maiores conseqüências ao adquirente do bem furtado, é fato de nenhuma relevância social na escala de valor atual da norma incriminadora, a merecer a movimentação do caro mecanismo judiciário num direito penal clássico como o nosso"

Com relação ao crime de lesões corporais, veja-se a jurisprudência do TJSC:

"A insignificância da lesão sofrida pela vítima afasta a tipicidade do crime previsto no artigo 129 do CP, impondo-se a solução absolutória" [21].

Segundo Juarez Freitas, os Tribunais Regionais Federais são os que mais se utilizam do princípio da insignificância para a resolução dos litígios, sendo, em certos casos, como nos delitos de descaminho [22], aplicado o princípio de forma pacífica, sob os argumentos de que descaminho de mercadoria de valor irrisório não chega a causar lesão relevante; também é muito utilizado nos crimes contra a fauna, sob os argumentos de que nos crimes contra a fauna, o direito penal não deve preocupar-se com ações insignificantes, que pela sua natureza não causam um dano ao bem jurídico tutelado [23].

Com relação aos crimes de descaminho, jurisprudência do TRF 4º Região:

"Pacificou-se a jurisprudência desta 1º Turma no sentido de que o descaminho de mercadorias de valor irrisório não chega a causar lesão relevante, que justifique o prosseguimento da ação penal, devendo nessas hipóteses, ser aplicado o princípio da insignificância" [24].

Com relação aos crimes contra a fauna, jurisprudência do TRF 5º Região:

"A comercialização de 17 (dezessete) borboletas não pode ensejar uma pena de 2 a 5 anos de reclusão. Homenagem ao princípio da insignificância" [25].

3.1 O princípio da insignificância no Superior Tribunal de Justiça

No Superior Tribunal de Justiça, verifica-se que denota uma maior aplicação do princípio da insignificância aos delitos de descaminho ou contrabando, sob o mesmo argumento dos Tribunais Federais, ou seja, que as mercadorias de ínfimo valor não caracterizariam crime de descaminho ou contrabando. Também há inúmeros julgados em que se aplicou o princípio da insignificância em crimes militares, principalmente a posse/uso de drogas. Há também vários julgados em que se aplicou o princípio da insignificância em delitos contra o patrimônio.

Nesse sentido, colacionamos os seguintes arestos:

"PENAL. FURTO DE PEQUENO VALOR. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. - O valor ínfimo da "res furtiva", sem qualquer repercussão no patrimônio da firma vítima, não tem o repercussão na seara penal, à míngua de efetiva lesão do bem jurídico tutelado, enquadrando-se a hipótese no princípio da insignificância" (STJ-6ª T., REsp n° 264633/MG, Rel. Min. Vicente Leal, J. 3/10/2000; DJU 23/10/2000).

Habeas corpus. Penal. Crime de descaminho. Princípio da insignificância. Ordem concedida. 1. Nos termos da jurisprudência da Corte Suprema, o princípio da insignificância é reconhecido, podendo tornar atípico o fato denunciado, não sendo adequado considerar circunstâncias alheias às do delito para afastá-lo. 2. No cenário dos autos, presente a assentada jurisprudência da Suprema Corte, o fato de já ter antecedente não serve para desqualificar o princípio de insignificância. 3. Habeas corpus concedido. (HC 94502, Relator:  Min. MENEZES DIREITO, Primeira Turma, julgado em 10/02/2009, DJe-053 DIVULG 19-03-2009 PUBLIC 20-03-2009 EMENT VOL-02353-02 PP-00322).

HABEAS CORPUS. CRIME DE FURTO SIMPLES (CAPUT DO ART. 155 DO CP). ALEGADA INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PENAL. ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. PROCEDÊNCIA DA ALEGAÇÃO. ORDEM CONCEDIDA. 1. O Direito Penal não é instrumento estatal idôneo para o controle de fatos socialmente irrelevantes. 2. A incidência da norma penal exige, para além da adequação formal do fato empírico ao tipo legal, que a conduta delituosa se contraponha, em substância, ao tipo em causa. 3. A inexpressividade financeira do objeto subtraído pelo acusado salta aos olhos. A revelar muito mais uma extrema carência material do ora paciente do que uma firme intenção e menos ainda toda uma crônica de vida delituosa.

(HC 94017, Relator(a):  Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 14/10/2008, DJe-064 DIVULG 02-04-2009 PUBLIC 03-04-2009 EMENT VOL-02355-03 PP-00427)

HABEAS CORPUS. POSSE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. PEQUENA QUANTIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. ORDEM CONCEDIDA. Não constitui crime militar trazer consigo quantidade ínfima de substância entorpecente (4,7 gramas de maconha), em atenção ao princípio da insignificância. Ordem concedida para absolver o paciente. (HC 91074, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 19/08/2008, DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-03 PP-00767).

3.2 O princípio da insignificância no Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal, em seus julgados, têm orientado a aplicação do princípio da insignificância caso a caso, inadmitindo traçar um conceito comum, orientando a sua aplicação de forma casuística o que não deixa de criar certa insegurança jurídica, na medida em que, em muitos casos semelhantes, temos pessoas presas e pessoas absolvidas, o que, certamente, viola o princípio da igualdade.

Nesse sentido:

HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. TENTATIVA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. OCULTA COMPENSATIO. 1. O princípio da insignificância deve ser aplicado de forma criteriosa e casuística. 2. Princípio que se presta a beneficiar as classes subalternas, conduzindo à atipicidade da conduta de quem comete delito movido por razões análogas às que toma São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, para justificar a oculta compensatio. A conduta do paciente não excede esse modelo. 3. O paciente tentou subtrair de um supermercado mercadorias de valores inexpressivos. O direito penal não deve se ocupar de condutas que não causem lesão significativa a bens jurídicos relevantes ou prejuízos importantes ao titular do bem tutelado ou à integridade da ordem social. Ordem deferida. (HC 92744, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 13/05/2008, DJe-152 DIVULG 14-08-2008 PUBLIC 15-08-2008 EMENT VOL-02328-03 PP-00458)

HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE ESTELIONATO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. OCULTA COMPENSATIO. 1. A aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa e casuística, não sendo possível, quanto a ela, o estabelecimento de parâmetros genéricos e abstratos pré-definidos. 2. Princípio que se presta a beneficiar as classes subalternas, conduzindo à atipicidade da conduta de quem comete delito movido por razões análogas às que toma São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, para justificar a oculta compensatio. A conduta do paciente excede esse modelo. 3. As quantias subtraídas correspondem aos vencimentos das vítimas, destinando-se ao atendimento de suas necessidades. Não podem ser consideradas insignificantes. Ordem indeferida. (HC 91756, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 29/04/2008, DJe-152 DIVULG 14-08-2008 PUBLIC 15-08-2008 EMENT VOL-02328-02 PP-00390)

Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça na Bahia, em recente pesquisa [26], afirmou que os Ministros do STF têm aplicado o princípio da insignificância quando reunidas quatro condições essenciais: 1) mínima ofensividade da conduta, 2) inexistência de periculosidade social do ato, 3) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e 4) inexpressividade da lesão provocada.

As decisões também levam em conta a intervenção mínima do Estado em matéria penal, no sentido que o Estado deve ocupar-se de lesões significativas, ou seja, daquelas condutas humanas que têm potencial efetivo de causar lesar ou expor a perigo bens protegidos pelas leis penais.


4. CONCLUSÃO

1) O conteúdo jurídico do princípio da insignificância foi pioneiramente delineado por Claus Roxin, na década de 1960, como imperativo de interpretação restritiva e teleológica dos tipos penais, visando, separar o joio do trigo, deixando a cargo da pena corporal somente as condutas que violem ou coloquem em risco bens jurídicos relevantes.

2) O exame da nossa jurisprudência permite concluir de que o princípio da insignificância tem sido aplicado pelos nossos tribunais, embora ainda não tenha sido delineado um marco teórico comum.

3) A máquina estatal de prevenção e repressão do crime é cara e está sobrecarregada de casos sem nenhuma potencialidade lesiva ou reprovação social, o que não significa que o exercício da jurisdição deve ser deixado de lado em casos menos importantes. Na verdade, o que se deve fazer, seja o legislador, seja o aplicador da lei penal, é estabelecer critérios objetivos para se aferir a tipicidade penal, de modo a fazer não chegar à máquina estatal aqueles casos em que a lei penal não pretendia intervir. O princípio da insignificância é um desses instrumentos capazes de materializar a finalidade protetiva da norma penal, pois, em razão do seu caráter subsidiário, primeiro serão utilizados os demais instrumentos de solução dos conflitos sociais, e, caso estes fracassarem, lança-se mão da pena.

4) A tipicidade penal atual exige a ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos na norma penal. Significa dizer que a intervenção do direito penal apenas se justifica quando o bem jurídico tutelado tenha sido exposto a um dano impregnado de significativa lesividade. Não havendo, outrossim, a tipicidade material, mas apenas a formal, a conduta não possui relevância jurídica, afastando-se, por conseqüência, a intervenção da tutela penal, em face do postulado da intervenção mínima [27].

5) Nos nossos tribunais, ainda não há identidade na aplicação do princípio da insignificância, não havendo um conceito que forneça critérios objetivos para a sua aplicação, mas apenas alguns pontos comuns, o principal deles no sentido de que tal princípio está inserto na tipicidade material do delito, visando considerar típica condutas ou lesões insignificantes (desvalor da conduta e do resultado).

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6) O Supremo Tribunal Federal estabelece critérios para se aplicar o princípio da insignificância, lá predominando o entendimento que este erige como um fator de descaracterização material da tipicidade penal e que, para sua incidência, deve ser observada a presença de certos vetores, tais como:

1.a mínima ofensividade da conduta do agente;

2.a ausência de periculosidade social da ação;

3.o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento;

4.a inexpressividade da lesão jurídica provocada..

7) Também o Superior Tribunal de Justiça, em vários julgados, tem admitido os mesmos critérios acima, mas, há julgados recentes em que se admitiu que "as circunstâncias de caráter pessoal do agente, tais como a reincidência, os maus antecedentes e a personalidade do agente, não têm influência na análise da insignificância penal" [28]. Esta talvez seja a posição mais sensata e que deverá prevalecer, pois há muito se abandonou a chamada culpabilidade pela condução de vida.

8) Nos Tribunais de Justiça dos Estados os posicionamentos são controvertidos e, muitas vezes, sem critérios, havendo divergência de votos entre juízes, divergência entre turmas e seções recursais, e ainda entre os diversos tribunais estaduais, e, nem sempre, tem-se adotado o posicionamento dos pretórios [29], o que acaba por deixar o princípio da insignificância com baixa credibilidade entre alguns juristas e doutrinadores.

9) Embora ainda haja em alguns tribunais uma fundição entre os princípios da insignificância e da irrelevância penal do fato, estes não ocupam a mesma posição topográfica dentro do Direito Penal [30]: o primeiro é causa de exclusão da tipicidade material do fato (ou porque não há resultado jurídico grave ou relevante ou porque não há imputação objetiva da conduta); o princípio da irrelevância penal do fato é causa excludente da punição concreta do fato, ou seja, de dispensa da pena (em razão da sua desnecessidade no caso concreto).

10) O princípio da insignificância deve situar-se dentro do estudo da tipicidade, em sua concepção material, diferentemente do princípio da irrelevância penal do fato, que diz respeito à desnecessidade da pena. Aquele tem por fundamento o desvalor do resultado ou da conduta, enquanto este exige sobretudo desvalor ínfimo da culpabilidade (da reprovação: primário, bons antecedentes etc.), assim como o concurso de uma série de requisitos post factum que conduzem ao reconhecimento da desnecessidade da pena in concreto.

11) por fim, frise-se que o princípio da insignificância não se encontra integralmente prestigiado na doutrina e na jurisprudência brasileira, continuando a retórica que a sua aplicação deve ser restrita, sob pena de estimular-se a reiteração de pequenos delitos, diluindo a consistência já atenuada dos freios éticos, fenômeno nítido da chamada pós-modernidade, além de ir contra o clamor da comunidade por uma tolerância zero em relação a qualquer tipo de conduta vulneradora de bens da vida, até como forma preventiva das mais intensas incursões pela criminalidade [31], como se tem visto em dissertações e votos.

12) A tipicidade penal não deve mais ser vista como mera subsunção formal do fato ao tipo, com ainda querem alguns, devendo uma conduta, para ser considerada penalmente relevante, lesar ou expor a perigo o bem jurídico tutelado na norma penal, de forma substancial. É por isso que se tem defendido uma releitura dos tipos penais, no enfoque material, corrigindo-se imperfeições de seu aspecto formal, obra do positivismo exacerbado que vigorou nos séculos anteriores.

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Sobre o autor
Fernando Aparecido da Silva

Professor de Direito penal. Analista do Ministério Público de MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Fernando Aparecido. O princípio da insignificância e sua aplicação pelos tribunais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2624, 7 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17353. Acesso em: 20 abr. 2024.

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