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Confissão ficta e princípio da realidade dos fatos

18/09/2010 às 14:25
Leia nesta página:

Quem milita na justiça do trabalho diariamente se depara com a pena de revelia e aplicação da confissão ficta, quando a Reclamada não comparece à audiência inicial ou de instrução.

Também é sabido que no processo do trabalho, o objetivo é atingir a verdade real dos fatos. Vale dizer que a busca pela realidade dos fatos prevalece sobre contratos, declarações, assinaturas e outros meios jurídicos que criam realidades fictas.

Entretanto, mesmo diante de situações em que a parte ingressa na sala de audiências após o apregoamento das partes, ainda que a parte contrária esteja presente, possibilitando a instalação da audiência, ainda assim os magistrados invariavelmente aplicam a pena da confissão ficta, o que nos parece em alguns casos contrariar a busca da verdade dos fatos, que deve nortear o processo do trabalho.

Revelia e confissão ficta são assim conceituadas pelo festejado professor Sergio Pinto Martins, em sua obra "Direito Processual do Trabalho", 25ª Edição, da Editora Forense:

"Revelia vem a ser a ausência de defesa por parte do réu, que não comparece ao juízo quando é citado na ação que lhe foi proposta. Confissão é a presunção de serem verdadeiros os fatos alegados na inicial. O revel acompanhará o processo no estado em que se encontrar (art. 322 do CPC), intervindo em qualquer fase processual".

Ou seja, revelia é a falta de ânimo do demandado em se defender, o que não ocorre quando a parte revel comparece à sala de audiência instantes depois de se apregoada a audiência, já que está presente o ânimo de defesa ou do exercício do Direito.

Portanto, por questão de justiça e bom senso, quando a parte comparece, ainda que com atraso, quando a parte contrária ainda está presente no local, deveria ser instalada a audiência, em detrimento da confissão ficta.

Nem há que se cogitar em ilegalidade do ato caso nessas ocasiões o juiz permita o ingresso da Reclamada, dando regular prosseguimento à audiência. O art. 125, I do CPC assegura que o juiz deverá dirigir o processo, competindo-lhe a assegurar às partes tratamento igualitário.

Ademais, nunca se deve olvidar que o processo é um meio, um instrumento, e não um fim em si mesmo. Portanto, o excessivo apego ao formalismo e à letra fria da lei não pode prevalecer sobre a finalidade do processo, que é a aplicação da Justiça.

Não é demais dizer novamente que vigora no Direito do Trabalho o princípio da verdade real dos fatos, que deve ser sempre a mira do julgador. Dessa forma, fazendo-se presente a parte, ainda que com pequeno atraso, deve o magistrado se nortear pelo princípio ora invocado.

O contrário atenta não só contra as disposições processuais e princípios do Direito do Trabalho, mas também contra as garantias constitucionais da ampla defesa, contraditório e acesso à justiça, e devido processo legal, insculpidos nos arts. LIV, LV e XXXV da Constituição da República.

Dessa forma, cabe aos juízes, tendo em mente os princípios de Direito e a finalidade da Justiça, fazer interpretação sistemática da lei em consonância com os dispositivos constitucionais supra citados. Não é outra a lição do mestre Cândido Rangel Dinamarco, eu sua respeitada obra "A instrumentalidade do Processo", 9. ed. São Paulo Malheiros, 2001, p. 294/296:

"Para o adequado cumprimento da função jurisdicional, é indispensável boa dose de sensibilidade do juiz aos valores sociais e às mutações axiológicas da sua sociedade. O juiz há de estar comprometido com esta e com as suas preferências. Repudia-se o juiz indiferente, o que corresponde a repudiar também o pensamento do processo como instrumento meramente técnico. Ele é um instrumento político, de muita conotação ética, e o juiz precisa estar consciente disso. As leis envelhecem e também podem ter sido mal feitas. Em ambas as hipóteses carecem de legitimidade as decisões que as considerem isoladamente e imponham o comando emergente da mera interpretação gramatical. Nunca é dispensável a interpretação dos textos legais no sistema da própria ordem jurídica positiva em consonância com os princípios e garantias constitucionais (interpretação sistemática) e sobretudo à luz dos valores aceitos (interpretação sociológica, axiológica). (...) Assim, é dever do juiz afastar posicionamentos, muitas vezes comodistas, que facilitem formalmente o ato de julgar, mas possam torná-lo injusto"(Grifamos).

Nesse contexto, revela-se apropriado transcrever excertos do voto do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n.º 119.885, em 25/06/1998:

"Embora realmente não se possa argumentar com o tráfego em grandes cidades para se configurar motivo de força maior a impedir a realização do ato processual, não é justificável que um atraso de apenas cinco minutos, como o foi no caso, acarrete conseqüências tão drásticas à parte, como a revelia.

Assim, conquanto mereça respeito o horário para a prática do ato, reputo consentâneo com os dias atuais admitir-se um atraso de até quinze minutos, conforme se sustentou no aresto paradigma, lembrando também que a instrumentalidade do processo não admite apego exagerado à forma do ato processual que, na medida do possível, deve ser flexibilizada para atender o comando ou pelo menos propiciar o exame do direito material em litígio.

Colho, por opotuno, a lição do aresto-modelo, da relatoria do Prof. José Roberto dos Santos Bedaque, a dispensar acréscimos:

‘Mesmo sem considerar os motivos que levaram as partes e seu patrono a não chegar no horário da audiência, não parece razoável que um atraso de apenas quinze minutos, conforme registrado na r. sentença, dê causa à revelia e suas conseqüências.

O tratamento severo dado pelo legislador ao réu revel deve ser atenuado pelo intérprete, que não pode desconsiderar a natureza instrumental do processo, cujos escopos de atuação da vontade concreta da lei e de pacificação social prevalecem sobre os interesses privados das partes.

No caso, logo que o MM. Juiz começou a proferir a decisão, os apelantes e o advogado chegaram. Deveria ser relevado o pequeno atraso, possibilitando-se o exercício da ampla defesa e do contraditório, garantias constitucionais do processo que visam a legitimar o provimento judicial.

A revelia, acompanhada de seus efeitos, configura situação excepcional, o que implica interpretação restritiva das regras legais atinentes a esse instituto. Tudo deve ser feito para que o julgamento se realize à luz de um conjunto probatório que retrate a situação litigiosa. Apenas quando tal se mostre absolutamente inviável, admite-se a presunção de veracidade resultante da revelia.

Nessa medida, sendo possível evitar a incidência do art. 319 do Código de Processo Civil tanto melhor, ainda que, para isso, seja necessário flexibilizar a aplicação de outras regras processuais’.

Em face do exposto, conheço do recurso pelo dissídio e dou-lhe provimento para anular o processo a partir da audiência, inclusive, ensejando que outra se realize" (Grifamos).

Observa-se que é pacífico, tanto na jurisprudência quanto na melhor doutrina, que o objetivo a ser alcançado pelo processo é se chegar à verdade real, que não pode ser preterido em detrimento da verdade formal, uma vez que a verdade formal não passa de uma ficção, mentira e afronta ao Estado Democrático de Direito.

Ademais, não obstante o contido na Orientação Jurisprudencial nº 245 da SBDI-1, a jurisprudência evoluiu corretamente no sentido de se relevar pequenos atrasos da parte, privilegiando a ampla instrução do feito quando possível, e não a revelia. A título de exemplo, transcrevemos outras decisões proferidas pelo país:

PENA DE CONFISSÃO. ATRASO ÍNFIMO DA PARTE. PRAZO

RAZOÁVEL DE TOLERÂNCIA. CONFIGURAÇÃO. PRINCÍPIOS PROCESSUAIS. INTERESSE PÚBLICO

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. Admissível um atraso mínimo, pois há previsão de dedução da contestação em audiência por vinte minutos e a instrumentalidade do processo não admite apego ao formalismo do ato processual. Efetividade do processo e acesso à Justiça devem ser valorizados,

cumprindo-se no processo dialético. Rigor excessivo, ao reverso, deve ser afastado para ensejar as garantias constitucionais do acesso pleno à tutela jurisdicional com a busca da verdade real no procedimento em contraditório. Recurso a que se dá provimento.

(TRT da 3.ª Região, 6.ª Turma, Processo: RO-01398-2004-025-03-00-3, Relatora Juíza Emília Facchini, publicado em 01/09/2005).

DA REVELIA E CONFISSÃO. ELISÃO. Hipótese em que o ínfimo atraso da demandada à audiência não importa na aplicação das penalidades destacadas, sobretudo por tratar-se de pessoa física e, ainda, desacompanhada de advogado no ato. Apelo a que se dá provimento. (TRT da 4.ª Região, Processo: RO-00411-2003-861- 04-00-0, Relatora: Juíza Convocada Carmen Gonzalez, publicado em 05/04/2004).

AUDIÊNCIA INAUGURAL. COMPARECIMENTO DA PARTE ANTES DO ENCERRAMENTO. REVELIA E CONFISSÃO QUANTO À MATÉRIA FÁTICA. IMPOSSIBILIDADE. Tendo a representante legal da empresa adentrado a sala de audiência quando esta ainda não havia sido encerrada, impossível o acolhimento do pedido de revelia e a conseqüente confissão quanto à matéria de fato. (TRT da 10.ª Região, 2.ª Turma, Processo: RO-00898/2004, Relator Juiz Brasilino Santos Ramos, publicado em 17/08/2005).

Ademais, reza ainda a favor da Reclamada a aplicação analógica do parágrafo único do art. 815 da CLT, que dispensa tolerância de 15 minutos para o magistrado comparecer ao local da audiência.

Não só novamente se deve fazer interpretação do citado dispositivo legal com os dispositivos constitucionais e princípios norteadores do direito e da administração da justiça, mas a própria Lei de Introdução ao Código Civil (decreto-lei nº 4.657/1942) garante, em seu art. 4º, a aplicação da analogia e dos princípios gerais de direito.

No caso, sendo omissa a lei na aplicação do art. 815 da CLT às partes, mas se atentando aos princípios gerais de direito, bem como ao art. 6º da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia), que refuta haver distinção e hierarquia entre advogados, juízes e membros do Ministério Público, não se pode chegar a outra conclusão a não ser a de que é aplicável também às partes o contido no parágrafo único do art. 815 da CLT. Outra interpretação, além de agredir os princípios do Estado Democrático de Direito, criaria distinção injustificada entre juízes e advogados, o que afronta o Estatuto da Advocacia.

Pelo supra exposto, fica evidente que a aplicação da pena de revelia e confissão ficta, quando pode ser evitada, não se harmoniza com os princípios do Direito do Trabalho.

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Sobre o autor
Eduardo Barbosa Sebenelli

Advogado. Graduado pela Faculdade de Direito de Itu. Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEBENELLI, Eduardo Barbosa. Confissão ficta e princípio da realidade dos fatos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2635, 18 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17438. Acesso em: 18 abr. 2024.

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